segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O que não sabe como foi

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C.. F.. é um velho morfinómano! Ufana-se da sua intoxicação como de uma glória -- visto que resiste, há vinte e tantos anos, a doses violentíssimas de morfina e heroína. Magro, duma magreza aflitiva, ossuda, esquelética -- a sua aparência impressiona, comove... Aquele corpo já foi revestido de carne, estofado de gordura. Mas o morfinismo tudo lhe vampirizou, deixando-lhe apenas os ossos, contorcionando-o, como nos subterrâneos do Santo Ofício... As pernas bailaricam dentro das calças; a cada passo os frágeis arames que lhe suportam a cabeça gingam -- como na ameaça duma desarticulação completa. Lívido, o seu rosto segrega permanente suor viscoso, gotejando umas bagas grossas e baças -- dir-se-iam pingos de estearina... O seu coração é um acrobata inverosímil que ora espinoteia em cabriolas de circo, ora faz greve em suspensões tão longas que aparvalham os médicos mas que deixam o seu proprietário em absoluto indiferentismo...
Um dia perguntei a C.. F.. como tinha começado...
-- Não sei! -- respondeu. -- Como já te disse, vivi muitos anos em Paris, frequentando a Sorbonne. Em Paris casei-me com uma senhora francesa... Da nossa lua de mel floriu, logo passado um ano, um delicioso bebé... Eu ignorava a elasticidade das paixões paternas -- e por isso exagerei, numa idolatria obcecante, o meu amor pela criança... Uma manhã, aquele berço espumante de rendas em que eu sonhara ver uma caravela de venturas pela vida fora -- naufragou, transformando-se num túmulo, em poucas horas, as horas mais amargas que sofri até hoje... Se as lágrimas matassem -- teria sucumbido sobre aquele pequeno cadáver de dois palmos... Mas o que as lágrimas não conseguiram -- alcançou-o a dor, anoitecendo-me numa crise de loucura o espírito... Desde que perdi a razão e me levaram para um manicómio -- até que, um ano depois, amanheceu de novo o meu cérebro, voltando a mim e vendo-me a embalar nos braços uma boneca -- ignoro por completo o que se passou, o que fiz, o que me fizeram. Coagulou-se-me em trevas esse período tristíssimo -- numa escuridão tão espessa que nem uma pepita de luz brecha a minha memória... O que sei, sim, é que já era então morfinómano e que nunca mais conquistei a alforria da droga... Como foi? Como comecei? Desconheço-o!
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,página 107-108

"Memórias de um ex-morfinómano"
Repórter X
Edição Propaganda, 1976

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