domingo, 27 de outubro de 2019

Willalee, o Cantor de Gospel e a menina Marybell

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Willalee soluçava de olhos fechados, baloiçando-se de um lado para o outro sobre os joelhos. O Cantor de Gospel, afligido pela crescente certeza de que era o responsável pela situação de Willalee, olhou fixamente para ele, incapaz de dizer nada. Por fim, agarrou Willalee pelos ombros e disse:
-- Sossega, vá. Sossega. Ouve, eles não te vão fazer nada. Estás a ouvir? Eu estou contigo. Agora pára com isso e levanta-te. Eu estou contigo.
Willalee levantou-se e sentou-se na beira da cama de ferro. O Cantor de Gospel foi até à janela e olhou para fora. Por baixo, ao longo de todo o comprimento de Enigma, a multidão redemoinhava agora, num marulhar de cor e som. Por detrás dele, Willalee continuava a falar, num tom uniforme e pesaroso.
-- Tu sempre tiveste comigo. Desque fui salvo, nem um instante tiveste longe de mim, nem um. E eu tou salvo, percebi logo isso quando foi que assucedeu. E sei que continuo a tar salvo, é o que diz no Evangelho. Mas tenho o sangue da menina Marybell nas mãos... no coração.
-- Ouve -- disse o Cantor de Gospel, voltando costas à janela e desejoso de reconfortar Willalee, de lhe contar a verdade, embora ciente de que a verdade causaria ainda mais dano do que aquela fantástica teia de mentiras. Mas o que viu ao virar-se tornou desnecessária qualquer palavra. Ali, sobre a cama de ferro, estava uma enrugada fotografia sua, cuidadosamente alisada, mas velha e a desfazer-se nos vincos. Willalee, cujos lábios se moviam, continuando a falar, estava a olhar não para o Cantor de Gospel, mas para a sua imagem.
O Cantor de Gospel atravessou devagar a cela até à cama.
-- Onde é que arranjaste isso?
Willalee não ergueu os olhos da fotografia.
-- ... ela que fez tudo. Se ela num tivesse vindo no bairro eu continuava a ser a pessoa que era. Um preto ruim, com cortes de navalha nas costas e que se deitava com mulatas. Ela mostrou-me o caminho. -- Enquanto falava, o dedo caloso, tremendo, de Willalee traçava o contorno da cara do Cantor de Gospel na capa da revista.
-- Ela ajudou um preto ruim a endireitar, e depois disso nunca mais cortei-me nas costas, parei de invocar o nome de Deus em vão e de dormir com mulatas. Ela falou-me do Cantor de Gospel. Falou-me como era. A menina Marybell, a menina Marybell. Ela que arranjou a igreja. Que preparou tudo. Que pôs tudo a andar. A menina Marybell. -- Olhou momentaneamente para as suas mãos, voltando as palmas para cima, enquanto abanava a cabeça, ainda a falar, numa voz sonolenta e monótona. -- Congregar. Vamos congregar na igreja quando ele voltar a casa. Arranjamos a igreja, temos tudo pronto e quando ele chegar vai entrar na igreja, vai olhar à volta e dizer tá muito bem. Sim, tamos preparado pra quando ele voltar a casa. Sim. A menina Marybell disse logo que souber quando ele chega vem avisar a gente. Veio a meio da noite. Um home nunca sabe o dia e a hora. Ela... -- Fez uma pausa, inclinando ligeiramente a cabeça, como para ouvir algo. Espetou um dedo no centro da testa e pressionou. -- Ela disse: vim pra te contar a verdade sobre o Cantor de Gospel. Eu disse: quando ele chega? Ela... -- Um cinzento de cor de cinzas humedecidas perpassou pelo rosto de Willalee. Uma veia inchou-lhe na fonte. -- Não -- disse, num sussurro. -- Eu sou pastor. Eu tou salvo. -- Voltou a olhar a flácida fotografia do Cantor de Gospel. -- Não, Senhor, não. Ela disse: Foste salvo com base em falsidade, a igreja é falsidade, o Cantor de Gospel é um falso. Disse: Deus é um home coas calças em baixo, Deus é uma braguilha desabotoada. Ela disse: o Cantor de Gospel... e eu cravei nela o picador de gelo. Agarrei-le pelo pescoço e espetei outra vez, espetei, espetei, espetei... -- Desatou a soluçar, com a cara enterrada na cama e os punhos cerrados.
Mais do que ajudar voluntariamente, o Cantor de Gospel caiu de joelhos. Colocou o braço em volta de Willalee.
-- Por favor -- pediu. -- Por favor.
Willalee ergueu os olhos. Parara de tremer. Já não chorava. Parecia até que ia sorrir.
-- Eu sabia -- disse. -- Eu sabia que contigo ia descobrir o porquê que matei a menina Marybell e fazer as paz co Senhor. Agora tou pronto. Agora já ninguém pode magoar-me porque agora sei o que fiz e sei que ofendi o Senhor. Vou pra casa.
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páginas 212 - 214
'O cantor de gospel'

Harry Crews
tradução de José Miguel Silva
edição Maldoror

sábado, 26 de outubro de 2019

Propostas musicais neste fim de tarde


Na Rua Anselmo Braancamp 345

no Museu Vivo do Tasco Tripeiro
organizado pelo Bazar Esquisito


No Museu Vivo do Tasco Tripeiro
teremos uma dupla DJ
Exultanza Catatonica é Demetrio Castellucci de Black Fanfare,
a sua música move-se em duas linhas paralelas, uma é um som electro-acústico melódico e puramente orgânico, a outra é rítmica, evocando uma batalha de elementos percussivos.
E DJ One Erection é Pedro Augusto, músico e compositor nos projectos Ghuna X e Live Low, tem também conduzido um largo percurso na composição de bandas sonoras nas áreas de dança contemporânea, teatro e cinema




domingo, 20 de outubro de 2019

Sincronicidade

eu não estava para partilhar isto mas o sr. xilre escreveu uma publicação, hoje Domingo,
e eu, como vejo em muitas palavras de bloggers que gosto de ler, pedaços daquilo que Jung chamou de
Sincronicidade,
decidi partilhar, em baixo, um texto que escrevi esta semana, 
tem traços opostos ao do Xilre mas versa o mesmo tema.
não façam caso do protagonismo dado ao eu que fala, eu não sei escrever na terceira pessoa:

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Caro público, vejo o brilho do sol e cores novas em cada olhar, tenho os meus seres como elementos, letras como eus e como amigos, falo com eles como se fosse comigo próprio, não uso filtros nem símbolos de pontuação ortográfica como travessões que indiquem diálogo, tudo é solilóquio:
Eu sou como o psicanalista do livro do Boris Vian, sou um jovem cebola e não aparento a idade que tenho, sou autofágico. Sou muito mais velho, um píton, um mago, um nigromante. Ando é disfarçado entre os pingos da chuva vestido com a personalidade dos meus amigos porque em mim a ela não lhe reconheço os traços. Adopto as amigas como irmãs primeiro, mulheres depois e por fim mães. As cabeças de todos são parte de mim, são os meus seres. Com eles e elas falo, almoço-os a todos, fumo as suas calças de cânhamo acompanhando o café com cheirinho e deito fora as suas cuecas de flanela, varro as cinzas do churrasco dos seus ossos e depois discurso mesmo que ninguém ligue puto, digo urso em estado alterado perante uma plateia de uanabís como eu, todos temos um futuro ainda.
Não li muitos livros durante a adolescência porque poucos os havia interessantes em casa. Os meus pais também não liam muito mas esforçavam-se e encomendavam livros do Círculo de Leitores e das Selecções Readers Digest. Foi assim que não sei como caíram lá em casa obras como A laranja mecânica, A servidão humana do Maugham que jurei nunca ler por causa do título. Eu não queria ler coisas tristes com esta idade, queria livros que me provocassem a excitação dos sentidos e finalmente a desejada consumação sexual, queria livros com amor e sexo, com palavras úteis que me ensinassem. Livros fúteis talvez para um adulto mas livros importantes para a definição e acção emocional e sexual de um adolescente. Havia outros livros que mais tarde surripiaria mas de Anthony Burgess ganhei a ideia que palavras como ultraviolência degeneram em loucura e culpa em encarceramento e reclusão em religião e partido em sacrifício e morte, tudo isto porque o amor, já alguém o cantou, o amor é uma doença.

Mas eu quero começar por algum lado e dizer que, há quatro anos, desisti da religião porque não cria no dogma que aprendi na catequese. Andei lá até aos dezasseis anos para ver se arranjava amigos e namoradas mas os rapazes gozavam-me e as raparigas estavam apaixonadas pelo rapaz da moto. Era isso ou a rua e os meus pais não me deixavam sair para outro lado. No dia do crisma na Sé em Derza os meus pais estiveram ausentes e a madrinha que me levou ao altar para receber a bênção do bispo foi a Irmã Belinda, uma missionária idosa da paróquia que fez esta caridade a mim e aos pobres sem pais. Senti-me um pobre e tão pobre como eles, senti-me condenado. Nesse dia mesmo, mandei foder toda a gente em pensamento e assim apostasiei a água benta do bispo e decidi que era mau, que sou mau e que vou para o inferno. Irei com todo o gosto para o inferno.
Carimbei a heresia na festa de finalistas, oferecendo para o sorteio de prendas uma lingerie em couro vermelho e com um fecho de latão à frente que um tio, que nunca casou com a minha tia, me dera uma noite na feira popular da cidade vermelha onde ele trabalhava. Despachei assim este emplastro familiar indo ele calhar a um santo paroquiano pretendente a caloiro de filosofia. Logo nos rimos uns dos outros, eu ri-me sem saber que me estavam a riscar do mapa e a chamar-me de pervertido, estúpido e louco. Ainda consegui ao fim da noite dar uns beijos numa colega na discoteca mas o encontro marcado para uma tarde, dois dias depois, correu mal, ela rechachara-me com medo e eu sem perceber o porquê dela, fiz cara de patrão mau, fechei a porta e saí para a rua. Nunca mais a vi e não recordo o seu nome. Para me saciar, decidi seguir uma prostituta até à hospedaria, dei-lhe dois contos e subi, ela foi lavar-se e voltou sem a saia, deitou-se, e eu tirei as calças e puz-me em cima dela a beijar-lhe o pescoço para que a tesão me viesse. Ela disse despacha-te e eu bloqueei. Parei. A tesão não veio e eu vesti-me sem dizer nada. Ela disse: se tiveres problemas volta cá. Voltaria ao longo da vida mais duas vezes, a uma dei-lhe dinheiro para a calar, a outra tratei-a com carinho filial, convidei-a para tomar café mas o sucesso não veio nunca. As prostitutas não me seduziram, nunca me servirão, penso que as respeito demais.
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Claudio Mur

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Ik ben a zombie



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São aproximadamente cinco horas da manhã. Deixei o Armenia em plena paz, hoje diverti-me sozinho, outra vez Muslimgauze e os grilos na cabine de DJ. A chuva continua a cair miúdinha e os poucos candeeiros intactos reflectem-se nas poças de água existentes no passeio. Sei que estou sem rumo definido mas estou cansado, vou-me sentar num banco do jardim. Vou enrolar um cigarro. Tenho, no entanto, a sensação de que alguém me espia, alguém que poderão ser muitos, três mil pessoas a apontar o dedo ao consumo de fumantes no local de trabalho. É melhor ter cuidado.
C deita-se ao comprido enrolando-se na sua longa camisola cinzenta. Quando em estado de sonolência, o sino comeca a tocar a Sexta sinfonia, segundo movimento de Glenn Branca. Quando adormece entra num cenário artificial. Está num leito de madeira usando uma camisa fina, branca com folhas à caubói e umas calças pretas de flanela. Está descalço. Numa fracção de segundo, uma pequena luz branca toca-lhe nas virilhas mas logo se esvai para longe. Então, C acorda sobressaltado olhando para todos os lados, para as seis barreiras que o separam do espaço real. Nem uma só janela. Ao longe, nos cantos dessas barreiras minúsculas fosforênciais, formas que sugerem pirilampos comecam a luzir. Ao princípio inofensivas, depois começando a agitar-se. Alongam as suas espadas de laser em várias direcções mas sempre aproximando-se, os tentáculos chegando perto. Nao sabe o que fazer. Nem uma só janela. Uma luz verde atinge-o no ombro, é a sua cor favorita, a marca fica registada, torna-se o símbolo de uma primeira acção. Um olho verde. Um risco verde imiscui-se na cor branca da camisola que transparece a cor vermelha do seu corpo. Uma voz de igreja diz-lhe: eu perdoo-te C, eu perdoo-te, eis a minha benção. Não sabe o que fazer. Sente calores frios pelas costas abaixo. Nem uma só janela. Agora é a serio. As luzes lançam-se de frente para ele e sem lhe tocar, vão-lhe tirando as medidas exactas, esquadrinhando ângulos, amplitudes. Já não está deitado, sentou-se na borda do leito de madeira. Puxa de um cigarro mas uma luz vermelha tira-lho da boca. Compreende então que está perdido. Nem uma só janela. Repara que, do seu lado direito, um fusil de Napoleão espera que ele lhe toque com carinho. Os calores frios então invertem o sentido da sua marcha, encontrando-se agora ao nível do pescoço. Dentro de breves momentos estarão já a subir pelas faces albinas em direcção às poucas madeixas que ainda possui. Surgem então os tambores. Vêm do lado daqueles poderosos lasers. Começa a limpar o fusil. Repara que só tem um cartuxo, tem ainda, para o caso de precisar, a baioneta Justincase. A luzes continuam a fazer-se notar em movimentos tipo tiro e fuga. Faz tenção de colocar o velho fusil no ombro direito e olhar pela mira telescópica uma rua calcetada ao fim da tarde e ou a fachada de uma casa de pedra. Desce a rua sempre com os olhos na mira, apontando às luzes que continuam a surgir. Pára numa fonte. Do outro lado a casa acabou e tu e ou ele pode ver uma cerejeira com pequenos gémeos idênticos, idênticos e violeta e púrpura, um menino e uma menina. Então, uma luz surge uma vez mais, uma luz púrpura e ele não resiste mais. Foca o alvo e bang... um pequeno melro cai em espiral a seus pés junto aos cantos da fonte. Continua a olhar pela mira e vê esse melro transformar-se num gato bebé com um pequeno ponto cruz no seu peito, o ponto de mira verifico eu. Quando a ferida sara, levanta-se e ronronando vai beber um cálice de Porto e desfrutar deitando-se a seus pés, pedindo alimento enquanto C olha de pé o fusil, que sendo comprido é o seu terceiro membro. Após uma breve interrupção, as luzes voltam, surgem agora aos milhares. Começa agora a suar de verdade. O fusil roda no ar e na ultima extensão do seu corpo, as luzes atingem-no em todas direcções, electrochoques cegam-no momentaneamente, destroem-lhe os nervos. No entanto, não desiste e continua a apontar o mais que pode, consegue até que as luzes se extingam por momentos, sendo substituídas por tambores em compasso de espera. Agora, tambem ele espera, ouve, está sentado numa sanita imunda. Tem o fusil em pé, é o seu terceiro membro, ele espera a descarga, pressiona o esfíncter. Os tambores deixam de tocar e ela surge, a luz negra, o eclipse total. Então, C levanta o fusil, vira-o de encontro a si próprio com a baioneta mesmo à frente do rosto. Ela, esta luz é agora parte constituinte do fusil e pretende engolí-lo. Um ultimo compasso, um ultimo tambor. R puxa para dentro de si a baioneta, a luz apaga-se e tudo termina.
C acorda do banco de jardim todo encharcado e cheirando mal. A seu lado, vê no chão estilhaços de um candeeiro preto. Passa o coveiro com a sua lamparina antiga a óleo. C olha para o relógio. Seis horas da manhã. Decide segui-lo, ele vai completamente nas nuvens, nem parece reparar. Entretanto, C recuperou os velhos sapatos e a camisola cinzenta. Faz agora planos de enrolar um cigarro enquanto sobe a rua atrás do coveiro. Com uma medalha de cem metros olímpicos do fundista Bolt na lapela, este entra já numa álea em terra batida rodeada por árvores enormes, que não consigo identificar e que dão acesso ao cemitério. Do outro lado da rua, vê-se a silhueta de um megaempreendimento de alojamento local com piscina privativa. Quando finalmente C o apanha, o coveiro começa a falar:
Ontem, o meu filho contou-me uma história que ouvira sobre o malogrado regresso de um homem após uma longa estadia no éter. Aterrara no mesmo lugar de onde tinha partido trinta anos antes mas agora nada de pompa ou circunstância. Tudo vazio. À saida, apenas viu uma pessoa velha de bengala. Pensou em chamar um táxi mas desistiu. Comprou a bengala ao velho. Seguiu a pé decidido a encontrar alguém que lhe explicasse o suicídio. Nem sem sequer um ramo de flores. Finalmente, entrou na cidade às dez da manhã, a coelhinha da páscoa vinha na sua direcção, ouviam-se os pássaros saindo dos ninhos numa palmeira, fugiu dela atravessando a estrada fora da passadeira, encaminhou-se por um carreiro em terra, que cortava o caminho, evitando o semáforo. Ao virar a esquina à direita, viu um vulto de cavanhaque e careca mas não o reconheceu logo, ficou com a impressão que o conhecia de algum lado. Foi uma visão de milisegundos. Viu-lhe a t-shirt preta que nas costas parecia dizer Polícia, estava acompanhado de outro homem. A visão foi momentânea e aterradora, fez por não ver mais nada, imaginou uma rusga, que andariam eles cuscando? Passou por eles e, à sua frente, outro elemento os tinha deixado, pensou nele como um paisano indo averiguar as redondezas. Segundo o que o meu filho me disse, o homem, o cientista que voltara do éter, durante trinta anos não tomara a medicação simplesmente porque não havia farmácias no éter. Atacado por delírios paranóicos de perseguição e tendo um flashback ao ver os três agentes de autoridade, ficou petrificado por momentos quando ouviu um deles chamar, viu o terceiro olhar para trás para os seus colegas e também para ele. Foi como se também o homem de cavanhaque o conhecesse. O nome pareceu-lhe um som familiar mas antigo e distorcido, seria eu quem ele queria interrogar? Diz o meu filho que o homem escreveu umas frases assim e meteu-as num envelope que mais tarde foi encontrado. Ficou paralisado mentalmente mas isso não o impediu de ignorar o chamamento e seguir caminho. Não se podia denunciar, não podia denunciar ninguém. Caminhou pela rua apoiado pela bengala e tropeçou numa velha vigorosa que se dirigia para a igreja, de olhos cegos falando-lhe em modos incompreensíveis. Dizem que era a sua única mãe, diz o coveiro fazendo uma pausa. Então, continuou a andar estupefacto, viu três sombras verdes saindo das lojas de conveniência. Resolveu ignorar. À sua frente, viu três velhos vestidos de fato e gravata, mostrando cartões a meninos e dirigindo-se igualmente para a igreja. Pensou em igreja e pensou em pedofilia. Parou nos semáforos dando prioridade aos táxis amarelos e laranjas surgindo desgovernados. Quando finalmente a sua prioridade verde surgiu e atravessou aquela rua, parou numa montra para ver uma serie de quadros com o nome de Cenas de um covil. A princípio, não quis querer mas os seus olhos não o podiam enganar com tanta certeza. O homem, continua o coveiro, ainda não pronunciara uma unica palavra. Mesmo na compra da bengala, avaliara primeiro e oferecera um valor generoso, limitara-se a apontar para a bengala com uma mão e a colocar as notas no bolso do velho. Não dissera uma única palavra, não lhe saíra sequer um ai, um pio que fosse, um insulto contra a desolação, nada. Foi esse o erro. Quando gritou de espanto ao ver aqueles quadros, não reconheceu a sua própria voz, aquela voz doce que a sua mulher, de cabelos ligeiramente pretos, lhe dissera que ele possuira. Então, acreditou que era mesmo ele, aquilo que via no vidro quebrado da montra era ele. Não havia um pingo de dúvida, não havia um moks para fumar, não havia escape para a angústia, nunca mais dormiria oito horas seguidas, nem mesmo recorrendo aos mesmos narcóticos que assassinaram o Prince. Uma cópia, uma imagem, um ser disforme e retorcido, sem dentes, sem cabelo e verde, muito verde. Destroçado, continua o coveiro, decidiu largar a bengala, já não precisava dela, ultrapassou a ponte e chegou a estátua de Cristo, subiu a custo lá cima, observou com calma, com toda a calma possível do momento o espaço, tão diferente de tudo aquilo que deixara para trás em prole da descoberta cientifica, e atirou-se. Morreu na cidade vermelha. Foi transladado para este cemitério.
C interrompeu perguntando: essa historia foi inventada ou está escrita?, que idade tem o seu filho, é albino?
O coveiro respondeu que todos o somos um pouco mas que isso não passa de um pormenor que em nada pode alterar os propósitos pelos quais você me seguiu.
Havendo dito isto, parou num túmulo e disse: aqui pode ver com os seus próprios olhos a campa desse homem que nunca foi reconhecido, pode ver também que, por ele, velam dia e noite, consegue ver não consegue?, um anjo com sombra e um pote de flores albinas.
Sim, vejo um anjo azul, lindo como nunca tinha visto antes. Obrigado.
O coveiro sorriu da crendice e da humildade presente neste agradecimento, esteve uns momentos olhando para C avaliando o seu coeficiente de inteligência e pensou que Lombroso estava definitivamente errado. Sacou, então, de um charuto havano, deu dois bafos profundos, osculou ao som dos pássaros madrugadores porque sofre de doença pulmonar obstrutiva crónica e resolveu-se finalmente, abriu o jogo de modo paternalista.
O homem, sabe, passara uma temporada na Holanda, a única frase que conseguiu aprender foi esta que está no epitáfio, ora veja, veja se consegue ler, o musgo enferrujou as letras, e sabe que mais, quem contou a história ao meu filho foi um amigo numa noite de borracheira, foi o filho do homem e de uma dama evangélica, o filho nunca assumido pelo pai, este homem que morreu nunca soube que foi pai duas vezes. Este homem era violento em casa, na realidade não era nada um cientista, era um mero transportador de malas com dinheiro e sabe-se lá que mais, bares de alterne em Sta onde grupos de espanhóis pedissem para trocar as pesetas... ele saberia que as pesetas e os escudos lá ficariam, fumadas e bebidas, acordariam na tarde do dia seguinte dentro da sua mala. Ele, na realidade, fugiu para a Bósnia, ofereceu-se como enfermeiro numa milícia de ciganos. E fugiu porquê? Porque a mulher baptizara a primeira filha sem lho dizer, sem ele próprio saber o dia. Pois, quando soube nesse mesmo Domingo de baptizado, desfez os cunhados com as próprias mãos. E fugiu, já estava a apresentações semanais por violência dioméstica, um dia faltaram-lhe trinta contos da mala e verificando os passos do dia, lembrara-se de perguntar à mulher, a mulher cuspiu-lhe na cara: sim fui eu, aliás não precisas de tanto graveto. Ele raivoso, deu-lhe uma chapada tão violenta que a deixou com um hematoma, depois bateu no próprio irmão que acudira aos gritos da cunhada, o homem... era um mastodonte, desfizera com um cepo de carvalho um grupo de vizinhos que jurara vingança e lhe fizera uma espera na linha de comboio, quem os fodeu foi ele. Depois fugiu. E não voltou do éter coisa nenhuma, voltou simplesmente num avião repatriando os refugiados de guerra, o seu advogado dissera-lhe que seria amnistiado, o consulado pagou as despesas. Sem cheta e deprimido e sem notícias de familiares vivos, a filha morrera num acidente de viação, o homem, quando soube, saltou da janela do terceiro piso do miradouro sobre o rio. A mãe contou finalmente ao filho a verdade sobre a identidade do seu pai e este filho recolheu os pertences e mandou escrever o epitáfio, este que vê aqui: Ik ben a zombie.
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Claudio Mur

Hare, hunter, field : music from the misfit generation for your pleasurable moments



Bel Canto Orchestra : Ti Amo




Muslimgauze & Hesskhe Yadalanah : Zarm


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Re-adaptando e distorcendo mais uma vez o real

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Três da tarde. Estou de folga do part-time laboral hoje. Também não tenho aulas teóricas. Estou convidado para uma festa no Armenia amanhã à noite. As aulas são uma grande seca. Não gosto nada daquilo. Ainda só agora comecei e já estou farto, estou farto daquilo. O que eu quero é conhecer gajas e damas, bejecas e martinis, quero conhecer o haxixe, quero festas, conhecer pessoas situações ganza e aprender, aprender a vida, quero lá saber dos livros técnicos que alguém mos fotocopiou e que não me servem para nada.
O part-time vai correndo mais ou menos mas surgiu um negativo e tenho de ver se aproveito para o resolver ainda hoje. O meu trabalho é bater às portas, casa a casa, é angariar sócios para uma sociedade livreira. Recebo uma comissão por cada novo sócio que faça. Eles inscrevem-se na sociedade encomendando um livro, um disco, uma cassete do catálogo que lhes mostro e quando, três dias depois, o cobrador da sociedade lhes vai bater três vezes à porta para lhes entregar o livro e o catálogo trimestral, eles recebem-no e pagam, também podem pagar logo a mim.
Um negativo é quando a pessoa diz que vai pagar e que quer muito se inscrever e depois, na hora de pagar, não paga. Além disso, estas massas incultas que só lêem os desportivos ou as gordas do Correio da Manha, do Jenê, do Púdico e do O Escândalo e é quando lê alguma coisa que cheire a tinta impressa... bem, esta gente a quem nós prestamos um serviço nacional de cultura, esta gente às vezes lança-nos os cães. Ora, há quinze dias, uma família pobre, um pai, uma mãe, uma menina pequena de seis anos, uma família de um bairro social, essa senhora mostrou-se interessada em receber livros, disse que os queria para educar a filha. Havia um problema, a senhora não tinha dinheiro, só no fim do mês e eu pensei, disse: a senhora assina, escolhe um livro, e depois, quando lhe vierem entregar o livro a senhora paga. Ela tentou ganhar tempo folheando o catálogo, afinal o fim do mês era já no fim da próxima semana, escolheu um livro infantil ilustrado, custava seiscentos escudos. Eu pensei, vou-lhe dizer, disse: não se preocupe, fica entre nós, a senhora recebe o livro, paga se puder e depois todos os três meses encomenda um novo. Pensei: eu recebo a minha comissão por ela assinar, ganho quatro mil escudos por ela já que atingi assim um novo patamar de vendas, e digo na empresa que assumo os seiscentos escudos da despesa, se ela depois não pagar a cota comprando o livro paciência.
O meu chefe alertou-me para o possível negativo. Este aconteceu e agora tenho eu de ir recuperar o meu investimento dos seiscentos escudos porque assim não recebo a minha comissão, o marido chamou o cobrador de todos os nomes, o sogro despejou um balde sanitário para as escadas, rasgaram o cartão de sócio e disseram que nunca mais votavam, que somos como os ladrões da electricidade e do gás e dos telefones, andor dê à sola que o desfaço!
Agora tenho de lá voltar para cobrar pessoalmente porque não quero perder o meu dinheiro. Tenho de apanhar dois autocarros até chegar lá e chego. Bato à porta de casa e não está ninguém, caminho para trás, mais à frente há um parque urbano onde vejo pessoas, dirijo-me a elas na intenção de perguntar por aquela família: não conhecem a dona X? Que mora no bloco 6 apartamento 9? Digo que venho para receber dinheiro que me deve. Vem logo um velhote com ar ameaçador, cabelo desgrenhado e tricológico, bleizer azul marinho gasto, dirige-se a mim, falando muito alto, insultando, pergunta quem sou, que é que quero à sua filha, vai-te embora vai-te embora, sai daqui corno cabrão fdp, e vem para cima de mim e eu fico a pen... sar... talvez seja... eu fico com medo, sou jovem, estou rodeado agora prá aí de vinte populares que assistiam ao futsal no ringue do parque, estou com medo agora que ele se aproxima de mim, a maneira que eu tenho de me defender é meter os braços à frente da cabeça e estender a perna prá frente. É um acto mágico, ele vinha em direcção a mim e eu acerto-lhe um pontapé nos dentes, ele cai ao chão com a cara em sangue, a minha perna na cara dele, reparo que ele está a sangrar, digo logo: eu só quero o meu dinheiro, os meus seiscentos escudos, dê-mos e depois vou-me e nunca me verão mais, eu desapareço, eu não quero bater em ninguém.
Chega o marido que fala comigo, eu explico, vamos a sua casa perguntar à mulher se é verdade o que digo, ela diz que sim, pagam-me e eu venho-me embora, foda-se. Nunca mais lá ponho os pés. Nunca mais saberão de mim.
No dia seguinte, de manhã no escritório nada falo sobre isto. O L que é novato na associação mas se tem revelado um bom filiador, diz-me que de tarde tem uma prenda para mim: ó J vou-te mostrar o que é bom, depois à noite hás-de tornar-te homem. Vamos almoçar. Logo à tarde, nas torres junto ao rio, vais ver o que é bom.
Eu sei do que ele fala, já tinha havido oportunidade uma vez em casa de uns colegas do ensino secundário, ouvia-se techno, viam-se vídeos porno e fumava-se, eu via-os a queimar umas cenas na mão e sentia o perfumo inebriante dos cigarros enrolados na atmosfera naquela sala, senti-me um pouco desajustado no meio do fumo e acho que senti qualquer coisa de estranho na minha consciência dentro do autocarro de volta ao quarto, ficou a vontade e na biblioteca requisitei Os paraísos artificiais.
De tarde, a carrinha deixou-nos à porta da torre Um do bairro rico, o nosso novo chefe andava muito exigente, sempre a verificar os nossos dossiers para verificar se batíamos mesmo às portas, sempre que tocávamos a uma campainha tínhamos de iniciar uma nova linha.
L diz: não há-de ser nada, encontramo-nos no terceiro piso subterrâneo no elevador às quatro ok? Terás a tua primeira vez.
Ok.
Entramos na torre e separamo-nos, eu vou para o lado direito, meto-me no elevedor A e saio no primeiro andar, toco à campainha e nada, toco outra vez e aguardo, acendo a luz do corredor, toco a outra e também nada, toco a uma terceira campaínha e abre-me a porta um casal de italianos. Eles não falam português, eu não falo italiano e não nos conseguimos entender. Não há língua franca que me valha. Xau.
Não faço nenhuma entrevista válida. Atendem-me mais uma vez mas não encontro as palavras certas. Bloqueio. Estou ansioso. Olho para o dossier. Dois andares, doze campainhas, duas entrevistas numa hora e meia. Nenhum sucesso. Estou ansioso. Olho para o relógio. Quatro menos cinco. Dirijo-me ao elevador. Aterro no piso do parque de estacionamento. L já está em Lá.
Olha J, esta pequena língua, tiras um pedaço de meia unha do dedo mindinho, arranjas uma mortalha king size Elements, arranjas por quinze escudos na tabacaria do centro comercial, fazes um filtro com a senha do autocarro, tázaver?
Eu vejo, ele saca de um cigarro Português Suave Amarelo e desfaz parte na palma da mão, põe o pedaço em cima e queima, depois mistura, isto é a sopa, enrola, e agora vamos fumar, duas passas calmas retendo o fumo nos pulmões e passamos o charro ao outro ok?
Eu fumo, tusso um bocado porque não estou habituado, assoo o ranho ao lenço de pano, dou uma segunda passa longa e passo. Retenho o perfumo enquanto ele dá duas directas e me passa de novo. Fumamos tudo e voltamos ao trabalho.
Eu não dou conta bem do caso mas sinto-me diferente, uns sons agudos nos ouvidos, uma inflação ocular, e sede, estou seco mas, agora, tenho de ir trabalhar o sexto andar. Bato várias portas até que uma me é aberta, um casal de hípis holandeses, cotas louros e rosados de cinquenta e poucos anos. Sinto-me alegre e falador, eu não me dou conta mas eles devem reparar, acho que eles conhecem o cheiro, o perfume do haxixe, eu pelo menos reparo em dois pósteres na parede, um do Che e outro uma folha de erva com a inscrição Bob Whitman, aqui dá uma vontade tremenda de cagar a rir mas controlo, sinto-me vermelho, o sangue vêm-me aos olhos, os ouvidos quentes e inflamados, ouvindo tudo e cada pormenor, acho que invento sons. Falo-lhes da associação a que pretendo e qual o meu papel, mostro-lhes o catálogo, recomendo varios livros, eles folheiam divertidos, é tudo tão barato nesta revista, este livro... o autor é anónimo?
Sim, é uma colectânea de contos anedóticos, eu já li e recomendo, uma história é a história da meia-foda, half fuck understand?, o personagem está doente, os vizinhos mandam vir uma ucraniana, ela recusa-se a fazer o serviço, diz que no mínimo seis contos mais o táxi. O personagem aceita e paga. Começa a foda, estão a transar já e o personagem diz que tem de ir ao wc e vai. A ucraniana esperta sai disparada vestindo as roupas à pressa. À saida do wc, o personagem pasmado tem à espera os vizinhos, e a gaja? Foi-se embora. Foda-se, eu só tive vontade de mijar.
Eles riem-se e eu rio-me também, desato num griso hilariante e digo-lhes: agora imaginem isto bem escrito, este autor é muito bom.
Às seis horas, na hora de recolher à carrinha com o L e os outros colegas, digo-lhes que fiz um sócio, um casal de friques holandeses. E a moca J que tal? Curtiste?
Não me apercebi bem na verdade, digo eu.
Estás com uns olhinhos, tu meu tu estás eufórico, os teus olhos são avionetas, logo é que vai ser, vais à festa ao jantar no Armenia? Sim, vou-te contar uma anedota para te pôr bem disposto.
Uma vez no tempo do botas e da velha senhora, um grupo de caravanas ciganas chegou perto de uma cidade à beira mar. Naquele tempo, eles não podiam instalar o acampamento por muitos dias e foi grande a preocupação da polícia em os controlar. Vai daí, aconteceu que num aviário, ou num simples galinheiro, deram por falta de sete galináceos. Não sabiam quem podia ser o infame pilha-galinhas mas, logo que lhes chegou ao nariz que havia calés por perto, a ronda começou, naquela altura os polícias não faziam greve às horas extraordinárias, a noite caíu e eles repararam numa fogueira ao longe na praia, dirigiram-se para lá a cavalo.
Os calés. Ao verem quem lá vinha, apagaram a fogueira, os guardas desmontaram e aproximaram-se, perguntaram: não sabem que não é permitido fazer fogo à noite? Foram vocês que roubaram as galinhas ao Tone Manco?
O cigano, que contou a história ao meu amigo que ma contou ontem, respondeu ao guarda: Não, não fomos nós!
E aquelas penas... de quem são? Pergunta do guarda.
Ah, são as roupas das nossas mulheres que foram tomar banho e nós estamos aqui a guardá-las.
J não percebe o alcance mas L explica: foi-me contada por um cigano, é natural que se tenham perdido pormenores de riqueza oral mas, como li nas entrevistas a Olivier Rolin nestas últimas semanas, escrevemos para que a memória que nos rodeia não se perca. Bom jantar. Porta-te como um homem. Juízinho
Venho para casa, tomo um banho, barbeio-me, visto uma t-shirt lavada e saio para a noite. Nada o previa mas os avisos e as anedotas do L, começo a pensar: e se for hoje que meto os dedos pela primeira vez numa rata molhada?
Chego ao Armenia e reparo logo nela, ela está na sala de bilhar vestida de vermelho, cabelo comprido amarelo, é da minha altura, está com um galã a jogar bilhar. Olha para mim. Noto-lhe um brilho. Devolvo o olhar. Ela desvia-se e continua a jogar. Terminam o jogo. Sentam-se. O galã desculpa-se e diz que vai dar uma volta. Eu sento-me. Ela chama-se Dina. Eu chamo-me J.
Falamos, pedimos uma garrafa de Monte Velho, falamos já não sei do quê, falamos do tempo, dos cabelos lindos, das flores, da ganza e dos discos, da paixão dos discos, olha, o L tem um primo que se chama Z, olha, o Zulmiro é tão insolente que chega a ser fino, um mano gentil para todas as lojas de discos. Quando lhe chegam as notas azuis à mão, o Z que também é Maria faz a festa, começa por acordar sem despertador precisamente antes de se inciar a transmissão do programa Palavras de bolso na rádio clássica e felizmente pública, para qual o Z M, que é Belo de apelido, paga uma taxa na factura da luz àquelas três gargantas chinesas e ao Ameixa, Ximenes Laurindo, seu primo que também beneficia por ser o homem do cadeirão. Depois de ouvir as vozes do programa, levanta a pressiana, oscula o ar e verifica se o sol está presente. Dirige-se à cozinha, prepara café, toma uma chuveirada rápida no polivã, recolhe a chávena de café, volta para o quarto e, enquanto os jornalistas culturais da rádio falam e apresentam as novidades do dia, ele começa a pensar em listas. Ele não sabe o que nasceu primeiro: se as notas azuis, se as listas de discos a obter, aquela reimpressão daquele álbum lendário que acaba de chegar à loja da taune, o Z pensa: ora, disco é cultura, cultura é droga fixe, a droga mata a fome, com esta nota azul vou comprar o Gonçalo F. Cardoso e as suas Impressões de uma Ilha, vou ouvir o disco e vou ser feliz ao imaginar-me em Zanzíbar a viver da pintura de cocos, diz Z que também é M que também é B, que se vestiu de fato branco do melhor tecido e com um gorro branco a dizer Hamster D, para ir à loja. Como habitual em todas as lojas que frequenta, em que é um habitual, de cada vez que lá vai é bem tratado, gostam dele em todas as lojas, gostam também quando ele compra aquele disco que mais ninguém compra. Z sente-se extasiado quando sente que chegou ao disco primeiro que outro vagabundo qualquer e tão insolente quanto ele, gostam tanto dele que a M chega a ter ciúmes de tanto sorriso e apertos de mão e promessas que transpiram, porque o mundo vive de promessas, eu cá acho que eles pensam que ele é rico, porque gasta tantas notas azuis em discos como o vizinho em tabaco Regina, os padrinhos em jantares a dois com licor Beirão. O que eles não sabem é o que eu vou contar a seguir, eu que sou o espelho do Z que também é M e também é B, fui eu que lhe dei o nome, uma homenagem orgulhosa à tia, e ao maior surrealista António Maria Lisboa e também ao Ruy, o saudado e saudoso Belo. Tenho a dizer-te o seguinte: o Z é um drógado, é um viciado em música em suporte físico, também faz dauneloudes mas se gostar do som, ele quer obter aquele disco, aquele capa em cartão, ah!, como ele gosta de observar aquela serigrafia em cartão e capa do segundo disco dos Cassiber à luz do sol, como ele gosta de desmaiar quando ouve o sax do Albert Ayler a chorar em Vibrations... só visto!, eu sei do que falo, estou presente como espelho de canto de quarto nesta sua nova casa, vejo a moca que ele apanha quando pôe o cd gravado da k7 Super dos Nihil Aut Mors, enfim que dizer... eu quase que aceito o modo de vida dele, ele é feliz assim sendo um drogado musical. Mas para muita gente põe-se um problema: donde vêm as notas azuis? As lojas não se importam, querem é que ele consuma, mas os vizinhos já o acusaram de ser contrabandista e traficante, chegaram a dizer que a droga entrava à noite em casa pela calada, palhaços!, grandes estrumpfas do calhau mais longe do sol!, nem sequer imaginam que a droga vem via postal e entregue pelo carteiro, ainda hoje chegou uma edição de 180 gramas em vinil preto da banda sonora do filme do Gainsbourg, sim o Jetaime!, mas aí o Z até que ficou desiludido, achou que a música era como droga marada, daquela rena que sabe a petróleo ou parece pinheiro, quando não é mesmo louro como na cidade vermelha, chegou a acontecer, tanta versão do jetaime e nem uma única cantada pela Jane e pelo Serge. Mas o Z arranjou solução, sabe que um dealer nos Países Baixos tem para venda uma reimpressão do single, vejam lá!, sete polegadas de droga com a voz da Jane e do Serge por apenas um conto de kenga mais portes... o Z espera ansiosamente o próximo dia oito, o dia em que chegam as notas azuis, entretanto ele mandou-me dizer-te que mais tarde, não tenhamos pressa, bebamos o vinho com calma, saboreemo-lo, vivamos o momento, tão bom estar aqui contigo... mais tarde... podíamos passar por minha casa e ver no vhs um filme concerto de um jamaicano chamado Eek a mouse em San Diego, que dizes?
Ela diz que mora para os meus lados e aceita. No Armenia ouve-se Hare, hunter, field, uma compilação da Johnny Blue. Reconheço a última faixa que termina com grilos, não dizemos nada, saímos e começamos a caminhar a cidade, é tudo tão natural, penso, tão belo, tão simples, ela é bela, a Dina é linda. Não sou eu que a engato, ela é a que me engata. Caminhamos, falamos, tudo tão simples, falamos dos versos do pai do Tarkovsky, falamos das Asas do desejo que passou na última sessão do cineclube, chegamos a casa.
Subimos ao terceiro andar pelas escadas. Abrimos a porta e cansados vamos para o sofá da sala, ela diz que tem ganza, eu digo que sim, temos de ir para a varanda e aqui em casa ninguém fuma, ela faz o charro e fumamos. Outra onda de energia, mais paz, os músculos relaxam, não há mais ansiedade, beijamo-nos naturalmente, naaturalmente como se estivesse destinado nas estrelas que nos encontrássemos esta noite e nos fizéssemos homem e mulher juntos, acabamos o charro, voltamos para dentro, naturalmente tiramos a roupa um ao outro, ela deita-se no sofá, eu por cima mas a posição é-me incómoda, sou virgem, ela toma a iniciativa, rebola e vira-se como uma gata, convida-me, acaricia-me, guia-me o membro na direcção certa, escolhida por ela, penetro-lhe a cona. Ela diz para eu ir e vir devagar, ir e vir devagar e sentir. E eu sinto. Sinto-me bem dentro dela, sinto os espasmos do meu membro, tão agradável estar dentro dela, vou e venho, venho-me dentro dela, é como uma tontura, uma quebra de tensão em que perdemos por momentos a consciência e entramos em blackout e os espasmos vão e vem, a pequena morte, compreendo agora perfeitamente o verso, o prazer.
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Claudio Mur

Re-escrevendo a história

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Por isso, digo-te irmão, esta foi uma relação frustrada que me ensinou a desistir perante um não e a dizer que. no fundo, tem de ser só quando a mulher quer. Por muito que custe à virilidade do homem, é assim que deve ser, devemos desistir da barbárie e regenerarmo-nos do erro e da pena.
Foi por isso que me apanharam, eu denunciei-me nos absurdos que fui praticando, escrevi um opúsculo gongórico que foi treslido e mal interpretado pelas autoridades e pelos paladinos que o leram, perguntaram-me nomes, apresentaram factos, perguntaram pelos meus pais, chamaram-nos às urgências da casa rosa, quem eram eles?, borrei a pintura, confundi tudo de propósito, mudei nomes, cometi excessos, mudei mesmo o género identitário dos nomes, vomitei alarvidades dada vividas por outros que orgulhosamente mas legaram, versos musicais, slogans publicitários, vozes de filmes, ama-me Ma, ama-me Jo, ama-me Ga, fui troglodita e quase violador, todas as ganzas me mandaram passsear ao verem no que me tornei ou quem eu era na realidade... e esta menina que imitava Portishead, esta Dina não era, na verdade, nada similar à primeira Dina. Essa ganza amara-me e expirara sobre mim o bafo da sabedoria e da segurança com que eu faria a Maria feliz quando ela me aparcesse, estava há muito escrito na pedra rupestre. Esta sucedânea da Maria que eu perdi, esta nova e desejada Dina não passou de rena, ganza marada a saber a acetona. Não, eu não amachadei cabeças como orgulhosamente assumi, não chutei cabeças sangrando pelos cantos mas ganhei inúmeras dores de cabeça, os sentimentos de culpa assolaram-me o miolo, a cebola como lhe chamo, a retrete, e o miolo apodreceu, a merda tornou-se carbono e depois diamante, primeiro melancólico, receoso do novo e sem vontade de conhecer o mundo real fora dos livros, depois uma abjecção cheia de desvios de personalidade, de desvios de identidade de género. Os funcionários fizeram-me a folha por fim. A universidade é uma prisão, a escola é um hospital, a prisão é um iq hospital, um wc hotel.
Dou-te a seguir um vislumbre do que foi a escola, as urgências da casa rosa:
Para se entrar no WC Hotel é necessária uma prova presencial de admissão. O ritual consiste em dizermos uma data de baboseiras e anedotas, muito alto até incomodar os restantes aspirantes e nos dizerem para falar mais baixo e nos acalmarmos.
A sala tem seis metros por três de largura. Num dos lados, existe uma janela com pequenos rectângulos de vidro e um sofá onde está pousado o jornal que leio todos os dias e o sobretudo azul que pertence a C. Na parede mais larga, estão várias estantes contendo os meus livros e frascos que poderiam ser soluções caseiras de nitroglicerina ou veneno, igualmente um aquário. Do outro lado, um quadro branco contendo uma tabela com vários nomes listados e onde a letra C aparece repetida aleatoriamente tanto como nome como apelido. Na coluna seguinte, às vezes, aparece a palavra Tribunal. A sala é alta e termina numa porta de madeira pintada de branco. Estou sentado no sofá e discurso, ou melhor, descrevo a sala e associo cada objecto a algo que conheço. Numa secretária, está sentada uma mulher atraente, de cabelos ruivos e calças pretas apertadas que ouve o que digo, às vezes noto-lhe um ar de aflição, às vezes estranheza. De pé, uma mulher de bata branca. É obviamente uma conspiração, o terrorismo psicológico que o sistema faz para, por meio de lavagem cerebral, obter a confissão da verdade. Não! Não estou interessado em confessar a verdade nem estou interessado em lavagem cerebral. Eu sei que estou a pequenos passos da cela. Só confessarei se me aplicarem o soro da verdade.
Levanto-me e continuo a descrever a sala, tentando com isto desconstruir a conspiração, aproximo-me do quadro e leio os nomes, pessoas ficcionadas eu sei e enfatizo o nome C que aparece em mais de metade das linhas. Mostro-lhes a evidência.
O tempo vai passando. A porta abre-se e vejo aqueles que colaboraram nesta conspiração. Ele olha confiante, quase cínico, agradado talvez com a minha reacção. Ela... não sei, só olho para ele. Outros aspirantes à prova de admissão, ou mesmo já caloiros de teatro, olham assustados e curiosos para dentro da sala. Quem são? Não sei dizer. Não são prisioneiros, pois senão não estariam aqui, estariam recolhidos na sua cela, serão talvez figurantes contratados pela autoridade que me interroga, serão actores para somar a tantos outros.
A certa altura, a mulher ruiva, sentada e quase chorando, diz que vou ter de levar uma injecção.
Ora aqui está! O soro, a evidência.
Grito que não tomo, querem porventura ver se tenho tatuagens no cu.
Ela e a mulher de bata branca olham-me, outra mulher mais velha aparece igualmente de bata branca. Peço um copo de água porque estou com a garganta seca de tanto falar. Esta última mulher sai e reaparece dois minutos depois produzindo um copo com água, pousa-o com cuidado na secretária enquanto eu leio o jornal.
Finalmente, pego no copo e bebo um gole. Descubro a evidência, a água tem sabor, olho e descubro na água bolhas de ar. O que puseram vocês na água?
Ouço uma voz dizendo baixinho foi por causa dos comprimidos que...
A minha voz, a minha raiva, eu acalmo-me subitamente, o que puseram no copo resulta. Decidem-se por uma injecção no ombro esquerdo e dizem-me para os acompanhar.
Entro numa sala mais ampla onde estão outros actores ou mesmo hóspedes ou mesmo prisioneiros não sei, sentados em mesas de madeira, jogam cartas.
Os hóspedes são muito interessantes!
Sento-me e olho para a televisão. Passa pouco das oito da noite, vejo no telejornal uma reportagem sobre uma greve e respectiva marcha sindical de protesto, todos vão alegres, um deles tropeça ou olha para o sapato desculpando-se por algo, assumindo algo ou tentando dizer que também tem dificuldades em comprar calçado. Não recordo a cor deste sapato.
Alguns minutos depois, dois homens de bata branca vêm ter comigo, dizendo-me para os acompanhar. No corredor longo, de um lado existem janelas, do outro lado portas pintadas de branco. Paramos numa que tem como epigrafe a palavra QI, ironizo: Coeficiente de Inteligência.
Entro, ou melhor, forçam a minha entrada. Esta sala é mais baixa e termina em duas portas, abrem uma e vê-se a escuridão. Nao quero entrar. Forcam-me, resisto, chamam reforços, serão agora talvez quatro os actores tentando segurar-me e, além disso, aquele copo de água e a dor provocada pelo torcer do braco esquerdo onde me picaram obrigam-me a entrar.
Colocam-me numa cama baixa, prendem-me os braços com algemas, vestem-me uma camisa de forças e injectam-me na veia da mão direita vários frascos de um líquido chamado Lagarctil. E afastam-se, fecham imediatamente a porta desta solitária, ironicamente chamada QI.
E esperei... senti o coração bater mais forte até me perguntar se aquele líquido venenoso me ia matar. Não sei quanto tempo aqui estive. Talvez uma noite ou uma noite dia noite. Sei que gritei e bati à porta para ir à casa de banho mas ninguém respondeu, mijei na parede como um cão.
Obviamente, este ritual destina-se a vencer o medo de morrer aprendendo a confiar nos superiores.
Quando novamente me abrem a porta para a luz do dia durante a manhã, sou convidado a sentar-me à mesa por Romeu que me apresenta o Sérgio. Romeu tem o cabelo preto e comprido, cor morena e está vestido como um guru oriental. Sérgio tem o cabelo curto e preto, piercings na orelha e no nariz, veste uma camisola vermelha. Romeu diz que Sérgio está connosco porque se tentou suicidar. Digo a Sérgio que ele deverá despejar, deitar fora toda a merda para aprender a viver.
Romeu passa os dias a escrever em folhas de papel, a desenhar com lápis de cor, a queimar as folhas com pontas de cigarro e a tentar oferecer-me estes trabalhos. Não aceito nenhum, não por não gostar mas porque ele nunca me disse o que pretende ou o que os textos pretendem significar, por isso não me mostro interessado em ler o que ele escreve.
Ao fim de alguns dias, digo-lhe que me não deve considerar nem como um professor nem como um aluno. Quanto a Sérgio, com a excepcao da primeira manhã, nunca mais o vejo.
Numa das primeiras noites, Romeu convida-me para fumar um charro e eu aceitando sigo-o até ao fundo do corredor, sentamo-nos e ele improvisa um cachimbo com prata de maço de tabaco.
Manuel está presente, é um tipo magro, alto, quase careca na casa dos trinta anos usando um bone de basebol. Está connosco porque também se tentou suicidar mas dizem as más linguas que ele o fez para poder receber um subsídio do estado. Manuel sai todas as tardes do hotel para comprar ganza e recebe com frequência a visita de duas amigas loiras, interessantes, boazonas que olham espantadas para nós, os hospedes.
O Cordeiro é um chato. Está sempre a pedir cigarros quando nem se importa de esconder o seu maço de SG Filtro. Além disso, parece um mentecapto que mente, um captomante, diz a espaços palavras que mal se compreendem e fuma cigarro atrás de cigarro. Numa das noites em que se fuma ganza, descobrimos que ele nunca experimentou. Então, Romeu e eu, concordamos em iniciá-lo nesta mesma hora nos mistérios de Eleusis. Fica romântico, profético, adivinha a desgraça de todos nós, diz que o diabo vem aí e que agora já sabe o que é ser drógado, acaba a glorificar o pai, um ex-tóxicodependente, hoje um iúpi admirado pelo seu percurso como terapeuta da fala na Sociedade Alfa Beto.
Um dia, surgem na sala de convívio três novos hóspedes. Dois deles caminham ao longo do corredor falando baixinho, enquanto que o terceiro passa duas ou três tardes a dormir. Quando este finalmente acorda, vem sentar-se a meu lado. Chama-se David e também fuma tabaco de enrolar mas tem uma técnica diferente: usa uma rede com goma para enrolar. Como tem duas, oferece-me uma delas e olha para o meu dicionário de símbolos, abre-o, lê e comenta qualquer coisa. David diz que trabalha à noite em roulotes ou vende em feiras peças da sua autoria onde utiliza peças recicladas de equipamentos mecânicos e electrónicos. Está connosco a fazer uma cura de desintoxicação de heroína. Comenta sobre um chavalo sentado atrás de nós com as mãos nos bolsos a tremer por todos os lados contra a parede.
David apresenta os seus dois amigos que também estão connosco a fazer curas de desintoxicação. João tem vinte e seis anos, é casado e pai de uma menina de seis meses com cabelos loiros como a mãe. João diz que quando sair nunca mais dará um bafo mas é interrompido pelo Paulo, desempregado, com trinta e oito anos e com aparência de gajo género relações-públicas, que ajudará Manuel a escrever um requerimento para o subsídio estatal.
Comenta ele irónico: Isso até ao momento em que pedires à mãezinha quinhentos paus para ir tomar café! Rimo-nos porque sabemos que é verdade. Todos dizem mal dos ressacados mas todos os ressacados fazem igual. David tem trinta e seis anos, está separado da terceira mulher, tem uma filha de catorze anos e diz que é descendente dos Heredia, uma família cigana de origem espanhola. Paulo é diferente, é alemão na cor da pele, tem cabelo curto, fala pouco, fuma filtro e, ao contrário de nós, não tem uma história para contar, gosta só de ouvir contar histórias. Além disso, não fuma ganza.
O clube dos fumadores é, então, composto por Romeu, Manuel, David, João, C, o noviço Cordeiro e o ouvinte Paulo. Diz-se que a ganza liberta as pessoas, é verdade, relaxa e faz dialogar.
Cordeiro expõe algumas das suas paranóias como ser virgem ao fim de quase quarenta anos, ter vontade de violar uma menina como se ela fosse uma puta. Obviamente, se assim fala, talvez se justifique a estadia neste hotel, estamos a tentar libertá-lo do fantasma, talvez nunca cometa nenhum acto violento, talvez seja só léria. Aliás, as más línguas dizem que a sua estadia aqui no WC Hotel será prolongada, uma vida inteira. Cordeiro é um menino impertinente com trinta e oito anos.
Fernando aparece de fones nos ouvidos. Pede uma passa, diz que só quer sentir o sabor do berlinde mas, hoje à noite, diz que não me empresta o walkman com música espanhola, quer sentir o sabor do charro e continuar a curtir o som.
Dias depois, sou chamado ao escritório onde me dizem que vou entrar naquilo que pode ser descrito como terapia ocupacional.
Uma bata branca acompanha-me ao local, um pequeno barracão com duas salas. A mais interessante esta, apinhada de pinturas e trabalhos gráficos, tanto homens como mulheres pintam, fazem tapetes ou colagens. No entanto, esta sala está lotada. A segunda sala mais parece uma oficina. As pessoas fazem malha, lêem o jornal, discutem política e futebol, cosem livros, fazem pequenos sacos de papel ou caixas de cartão e vêem televisão.
Sento-me e trazem folhas, lápis, etc. Decido fazer um desenho descrevendo o que vejo, a janela à minha frente não tem gradeamento e, então, esta prisão torna-se menos real e mais humana.
Passado algum tempo, entra uma mulher com muitos cabelos grisalhos e algumas rugas. Senta-se a meu lado. Cumprimentamo-nos e ela começa a interessar-se por mim, pergunta-me o nome, ela chama-se Mónica e tem quarenta e dois anos, gosta do meu desenho e diz que também desenha, passara alguns anos em Belas Artes mas não tinha concluído. Mostra-me os seus desenhos: figurações muito simples de mulheres a caneta de feltro preta e, em geral, desenhos do tamanho de uma carta de poker.
Uma mulher na idade dos vinte e tal anos, de cabelos castanhos, bata azul clara, entra indo falar com o guineense, responsável pela sala, e os seus outros compinchas que lêem o jornal. Falam do bijou dela. Ela ri-se, eu tambem me rio e digo: Ah... eu tambem gosto do bijou!
Venho a descobrir que tem um anel no dedo e que o bijou é o marido. Obviamente, não fica bem querer foder uma mulher casada e, ainda por cima, uma elegante.
Ela ignora e diz que é hora do café. Dizem-me que se deve pedir ao chefe uma ficha vermelha de plástico para depois com ela pagar a cevada. Saio com Mónica em direcção ao café.
Os empregados são simpáticos, existem batas brancas, azuis, masculinos e femininas, uma mesa de ping pong, quatro ou cinco mesas, o café cevado é uma merda.
Sentamo-nos e começamos a falar enquanto fumamos. Aborda-se os livros e os melhores autores e, já nao sei porquê, digo-lhe que o meu escritor favorito é o Jean Genet. Ela responde instintivamente com uma expressao de espanto ou choque mas sem repulsa:
Sim, a prisão é uma grande escola!
É o suficiente para já a considerar uma amiga, afinal é a minha terceira amiga que conhece ou já leu Genet.
Fala-me que é dependente de um fármaco líquido chamado Haldol, que lhe resolve um problema de saúde relacionado com os seus ossos, rigidez, tremuras do corpo. Diz também que não se considera uma condenada pois apenas vem todos os dias voluntariamente à terapia ocupacional porque quer. Além disso, o estado paga-lhe as injecções uma ou duas vezes por semana mais uma pequena pensão para a renda.
À noite antes de adormecer, esta conversa suscita-me questões metafísicas: é claro que é uma condenada, ela disse a verdade mentindo, ela sabe-o. Afinal, está dependente para toda a vida de uma droga. Porque são as pessoas boas, humildes e interessantes, aquelas que mais fazem e aquelas que mais sofrem e vivem na miséria e morrem?, a gente olha para o mundo e só vê corruptos no poder ganhando bons salários, ajudas de custo e motorista do estado, falando merda ou respondendo evasivamente em talquechuis e etc, bem... vocês conhecem a historia.
O dia sem terapia ocupacional é uma rotina e todas as rotinas são maçadoras. Acorda-se às oito, toma-se banho, pequeno almoça-se, vai-se buscar o tabaco guardado no escritório, alguns tentam endrominar o hóspede ao lado na ânsia de lhe cravar a prisca fumada de bico amarelo, lê-se o jornal, dorme-se encostado ao radiador térmico, almoça-se, vai-se buscar lume para acender os cigarros, joga-se cartas ou dominó, vê-se televisao, fuma-se cigarros, fala-se, dorme-se, janta-se às seis e vai-se para a cama às nove apòs se entregar o tabaco e sermos interrogados sobre os isqueiros que são proibidos.
Um dia, um senhor distinto por volta dos cinquenta anos aparece bem vestido com um relógio de ouro, senta-se, puxa de um cigarro, fala calmamente parecendo reflectir as palavras.
Dias mais tarde, tenta pegar fogo a si próprio na cama. Noutro dia, oferece o relógio de ouro.
Um dia, durante a tarde na terapia ocupacional, faço um desenho do qual não gosto e que Mónica acha interessante. Resolvo ir fumar um cigarro à porta do barracão. Senta-se a meu lado um rapaz da minha idade que se identifica como António.
Ele começa a falar do tio que está preso por tráfico, diz que tem um esquema para arranjar ganza, é-lhe permitido sair durante uma hora todos os dias. Não sei porque aborda este tema, talvez por eu fumar tabaco de enrolar, todas as pessoas acreditam que todas as pessoas que enrolam cigarros enrolam ganzas ou pior. E depois ele não é da minha ala, não está hospedado na mesma ala de urgência desta casa rosa, logo não pode saber do clube dos fumadores. Mesmo sabendo que é um risco, e intuindo que em cada ala deste hospital hotel rosa há um clube de fumadores, entrego-lhe quinhentos paus para a minha dose. Ele diz que às seis da tarde me dará a prenda.
É óbvio que tudo o que sei sobre o sistema prisional se torna claro quando ele só aparece no dia seguinte, parecendo ignorar o facto de eu lhe ter passado para as mãos quinhentos paus, aqui a ética não existe e nem se deve abordar o assunto.
Mais tarde, numa ida ao café a troco de uma ficha vermelha, ele aparece com um colega que despeja a sua razão em poucas palavras: Estou aqui porque atrofiei com o teatro.
António produz um charro, ou melhor, uma quase prisca, dou duas passas que não me batem, é obviamente mais um truque psicológico, primeiro roubei-te, agora faço passar-te por lorpa. Digo que me bateu.
Uma certa altura, os gerentes, contentes connosco, decidem organizar uma festa de Natal, que se revela uma verdadeira seca mas com a verídica excepcão de Sandra -- uma bailarina empregada nos serviços de limpeza do hotel, que é escultural dentro das calças de licra e que me surpreendera ao me oferecer um isqueiro com o nome terreno da minha princesa.
Durante a festa, volto a encontrar Mónica que vem acompanhada de uma amiga com boné da polícia de segurança bíblica, casaco preto de cabedal, calças de fazenda em xadrez preto e branco, botas altas e falando com autoridade.
Pergunto como lhe correm os dias e ela responde que vai melhor, acrescentando que conseguiu fazer uma exposicão breve, há quinze dias, numa associação de dissidentes sociais. Fico contente. Digo-lhe que a ruiva da secretaria me deixou ler a revista quinzenal do jornal Escândalo ontem, tento partilhar uma frase alegre, ela gosta do Saramago.
Olha, lí uma coisa que vais gostar, o Saramago foi traduzido para inglês, até vão adaptar um filme, vai-se chamar Blindness,
Sim, gostei desse mas gosto mais de O homem duplicado e de As intermitências da morte.
Ao fim de três semanas na Quinta-feira, chamam-me à secretaria e a oficial ruiva diz-me, confiante e com um sorriso nos lábios, que vou sair em precária no fim de semana para ir à casa familiar em Triza e que, depois na Segunda-feira, terei de me apresentar num novo centro de estudos vigiados, o CREeA. Apresenta-me um formulário. A partir de agora, tenho um tutor que me gerirá o dinheiro e a responsabilidade, é a ele que eu deverei imediatamente reportar quando me apear do comboio de volta a Derza.
Na Sexta-feira, o último dia da minha breve estadia no hotel, David que também conhece Mónica pergunta-me se eu sabia que ela é lésbica. Eu respondo que já desconfiava mas escondo a minha fantasia, o meu flerte com esta causa. Lá no fundo concluo: então, se ela gosta igualmente de mulheres, será sempre o melhor lado, o lado feminino da relação. Digo-lhe que vou sair depois de almoço e despeço-me com um abraço. Ele pede-me para trocarmos os contactos telefónicos e sentencia que, logo que saia, irá ao Bairro das Lagartas buscar qualquer coisa e que depois me liga para irmos à bouça fumar.
Não te preocupes, xau.
À tarde na sala da terapia ocupacional, despeço-me de Mónica, ela dá-me um dos seus desenhos esculturais e eu tento dar-lhe o meu melhor desenho, aquele que tinha feito no primeiro dia, mas o responsável impede-me e diz que tudo o que eu fiz durante a terapia ocupacional ficará arquivado para futura análise por parte dos psicólogos da instituição.
Vamos fumar um cigarro à porta do barracão. Ela menciona algo saído da boca de Mario de Sá-Carneiro como se quiseres podes vir as quintas-feiras, sinto-me perto dela, ternamente perto dela, beijamo-nos na cara e dizemos adeus.
Regresso a Triza ao fim de três semanas nesta precária de dois dias, na Segunda irei directamente para Derza e para o CREeA, onde passarei o resto do tempo de reclusão, ainda sem me terem dito o porquê de estar dentro.
No Sábado, saio de casa para ir ao café. Pensando em reler algo que escrevi, sou interrompido ao subir a rua por David que aparece num automóvel. Confia-me que saiu umas horas depois de mim, ou melhor, desistira do tratamento, talvez por não conseguir mijar para o copo de análise de urina. Resolveu logo vir procurar-me tendo entrado no meu cafe habitual e perguntado sobre a minha morada.
Decido ir com ele a um café que não costumo frequentar, conversamos durante alguns minutos e, após pagar os cafés, David convida-me a ir até sua casa. Entramos e vamos em direcção ao seu quarto.
Olho para os discos e peço para ouvir Kashmir dos Led Zeppelin, e ele, um pouco contrariado, tem um trabalho enorme para ligar os fios à tomada de electricidade por detras da estante. Diz para passarmos a outro quarto. Abre a porta e vejo dois tipos em cima da cama preparando-se para fumar pó, viram-se para David e resmungam que não querem ser incomodados. Vou sentar-me na outra cama, de costas para eles a folhear um livro do Lucky Luke, olho de relance e vejo-os a dar uma passagem muito rápida do isqueiro e algo distante da prata para queimar efectivamente a castanha.
David pergunta-me se eu vi a sua filha que acabara aparentemente de sair.
Paulo bate nesse momento à porta de entrada, conversamos um pouco na garagem e saímos na direcção de minha casa com Paulo ao volante de um Renault 19.
David pergunta-me se memorizei o caminho e eu digo que não. Além de ser muito sinuoso, não me interessa lá voltar.
Chegamos a casa e resolvo dizer a David para fazer um charro para os dois, ficando com um pico para fumar à noite.
Então, surge a evidência, um sino toca dentro da minha cabeça, David pergunta-me com um sorriso nos lábios acompanhado do sorriso de Paulo, aonde comprei eu aquele pedaço de droga, eles riem-se para tentar serem informais, amigáveis como se fôssemos amigos. Um gajo que fuma pó em casa, além de a ganza ser talvez uma coisa de chavalos e não combinar muito bem com a poeira dos grandes e este David é um grande, deve certamente saber onde se arranja a ganza. Além disso, nunca se pergunta aonde se comprou, quando muito pergunta-se se lhe podemos fazer o favor de lhe arranjar.
Então, respondo: Tenho um colega que sabe quem tem e que, às vezes, me arranja alguma.
É tempo de ir tomar o último café da reunião e, desta vez, dirigimo-nos ao meu local habitual. Paulo, antes de se levantar para pagar a despesa, sai-se com uma frase algo enigmática: tambem nós fizemos algo pelos hóspedes daquele hotel.
Despedimo-nos.
Na tarde de Domingo, lembro-me de algo que com ele queria comentar e telefono a David, Alguém atende a chamada e eu digo que sou o C, aquele que esteve com o David no hotel. Desliga-me o telemovel na cara.
Compreendo tudo, as dúvidas desfazem-se.
O Sérgio nunca se tinha tentado suicidar; o Romeu era um informador; David, Paulo e João são agentes infiltrados no hotel que permite que se fume abertamente lá dentro, apesar dos sinais para não fumadores nos corredores; David nunca foi cigano, nem tem uma filha de catorze anos. Os gajos que moram com ele não fumaram realmente castanha. Paulo, o desempregado, não apareceu por acaso no seu Renault 19. Provavelmente, a casa era um disfarce de conveniência. Andavam, isso sim, à procura de provas, à procura de uma evidência comprometedora, de uma denúncia. No entanto, como bom hedonista que aprendi a ser digo que, para o futuro, aprendi uma nova maneira de fumar um charro, recorrendo a uma vulgar maçã.
Na Segunda-feira, cansado da viagem de comboio, sou recebido pelo funcionário no CREeA, diz-me por palavras científicas que me vão estudar e que se tinham cansado de procurar debaixo da cama. Enviaram-te, rapazinho céptico e escritor desviante, para aqui. Isto já não é uma urgência de agudos. Isto é uma autêntica ilha em Derza, a verdadeira baixa da cidade, um oásis no deserto, aqui vais ser recuperado socialmente, vamos aproveitar os teus estudos académicos e vais passar mais três semestres sabáticos, vamos-te ensinar a profissão de sociólogo cibernético, não te devia dizer mas... temos uma parceria com o reactor quântico da cidade vermelha, de vez em quando irás até lá trabalhar no openspace e no gestor de conteúdos, ficarás hospedado com todas as despesas pagas, aprenderás com a nata da nata, todos os nossos professores são superiormente certificados e prepara-te para ser avaliado periodicamente em referendos internos no que toca à higiene e limpeza do alojamento, isso é indispensável ao processo de requisição da Bolsa de Sobrevivência.... mas será igualmente avaliada a tua miséria existêncial, cognitiva e sexual, a tua capacidade de desenrasca, de desengenhocas. Diz ele, depois, apresentando-me a minha nova identidade, agora sou o I com o número de identificação Id 8267. Boa merda, o mesmo é dizer, já o sabes, boa sorte, agora andamento, some-te da minha vista.
É isto irmão, termino dizendo o que depois, ao recolher ao alojamento que o tutor contratualizou com o senhorio, escrevi numa folha posteriormente rasgada com medo do cão grande: o mundo será sempre feio enquanto for habitado por humanos e as utopias foram escritas por extraterrestres. O Id, sendo aquilo que o pai Freud descreveu, é naturalmente uma besta, mal começa a gatinhar agarra-se ao varão do parque para se pôr de pé. Quer ser grande. Quer viver como os grandes. Depois, se não se consumir nas chamas do inferno que criou, envelhece facilmente em seis meses, caem-lhe os dentes todos, fica careca e político. É aí que aparece o ego que lhe diz: meu crápula ignorante, ora bamos lá a ver se tu tens um restolho de tino e me deixas pintar o teu retrato de modo a que todos te possam admirar como o mais otário ou como o mais sublime dos cônsules-do-nadistão. Por fim, vem o super-ego, que pode ser o funcionário da repartição de finanças do museu que fuma às escondidas ou a rainha de latão que anseia pelo mar enquanto manda beijinhos e mostra as nails ou esfaqueia mortos-vivos e os mete na arca congeladora, dizer: Sim, continua, tens aí material interessante, a tua vida parece um filme europeu dos bons, mereces ser divulgado, até te vou levar comigo para Vlad Moro, ocê gosta de mi não gosta? O pobre do Id, que até poupa nas telhas e as retira para que as pedras lhe caiam bem lá no fundo da consciência, perante os factos lembra-se da anedota e diz: deixa-os pousar, aprendi a fazer churrasco de urubu-vigilante-de-cabeça-preta, nome científico Coragyps atratus.
Agora, o rapazinho que eu fui está marcado para sempre, acabaram por me dizer: você é esquizofrénico e se tomar a medicação pode viver uma vida perfeitamente normal. Mas para mim, estou rotulado e marcado para sempre. Se desejei o cartão do partido PDSC agora sou membro vitalício. Irmão, vota em mim no referendo.


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quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A cabeça limpa

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«Se os soldados limpam latrinas, eu também posso limpar a minha casa, ora que raios!»
Foi com estas palavras que Zulmiro se encarou lá bem no fundo da sua alma quando o senhorio lhe disse: «Sr. Zul, eu nem acredito como você consegue comer em cima desta toalha encardida, tem de ganhar brio ou arranjar uma mulher, o senhor ainda é novo, acho que você tem pouca estima por si próprio, sei que ganha pouco mas cinco euros numa loja de chineses fazem milagres, experimente e surpreenda-me no próximo mês.»
A Zulmiro retiniram aquelas palavras, fez delas um aviso, chegou a pensar que se não limpasse aquilo que designa por «a cabeça» poderia muito bem ver-se a morar debaixo da ponte, brevemente o senhorio nem conseguiria entrar em casa por causa do entulho respigado pelos cantos cheios de aranhas e moscas mortas, das baratas esmigalhadas pela bota atenta, da colecção de canudos de papel higiénico. Lembrou-se do que a mãe lhe dissera em pequeno sobre os ciganos que, há quarenta anos quando foram morar para o bairro pronto a estrear, puseram os burros à janela e a dormir na banheira e sim, Zulmiro disse: «Como os compreendo... e eu afinal pareço um deles, pareço um tolo a correr no meio da ponte comunicando afogueado com as estrelas por intermédio de um braço de chuveiro a servir de telefone e arrancado à lama e ao verdete do mármore da casa de banho... mas eles sempre viveram na natureza, junto ao pó da terra, sem água nem luz, nunca foram à escola, não têm geracionalmente a rotina de ir à escola aprender os conceitos que dizem nos irão servir no futuro... eles estão num processo de aprendizagem, de sedentarização e eu parece que estou num processo inverso de nomadização, a mim deram-me educacão, estudei e agora... ando a perder qualidades, isso é que é, o senhorio deu-me um aviso, vou ter de me pôr fino, os turistas podem alugar quartos, eu não, estou aqui em condições muito favoráveis, não consigo igual em nenhum outro lugar. Depois percebe-se porque a minha amiga desapareceu, foi isso que disse ao pessoal: olhem lá, lá por vocês acharem que a minha casa é um brinco, a verdade é que se houvesse uma gaja gira na qual eu estivesse interessado, e a convidasse a vir a minha casa, ela quereria ir fazer um chichi e assustava-se!» A Zulmiro tinha o senhorio dito: «Ela olhava, abria a porta, dizia-lhe que tinha uma cólica, desculpava-se, saía porta fora e nunca mais, senhor Zul, você a via.»
Zulmiro já uma vez tinha ouvido falar do ácido muriático, uma amiga usava-o na limpeza da sua cabeça, ele fez o mesmo. Primeiro passou no chinês e comprou uma escovinha de esfregar, depois foi à drogaria e explicou o seu problema, perguntou se tinham ácido para limpar cabeças, e a senhora que o atendeu recomendou-lhe uma garrafa de Gavecal, disse-lhe «sete partes de água e uma deste líquido», vendeu-lhe uma esponja Nossa Loja, e recomendou-lhe, afirmou-lhe mesmo que devia usar luvas porque a mistura líquida é ofensiva para a pele das mãos. Zulmiro sabia que tinha luvas em casa e por isso não comprou um novo par, fez mal porque em casa só encontrou a luva da mão esquerda, mas como bom epicurista disse «quem não tem cão caça com gato». O problema é que os gatos trabalham só quando lhes apetece e às gatas Zulmiro só lhe apetece que elas façam ronrom, que bebam e disfrutem. Elas andam longe e Zulmiro teria mesmo que fazer sozinho o trabalho de limpar a cabeça. Fê-lo num Domingo imediatamente após tomar o café das duas da tarde.
Zulmiro pegou num copo de plástico e encheu-o de água, despejou-o para um alguidar, e recontou sete vezes a operação, abriu a garrafa e despejou um copo no alguidar, vestiu com dificuldade a luva na mão direita e começou o trabalho. Ajoelhou-se, molhou a esponja no alguidar e começou a esfregar a cabeça lentamente. À medida que ia esfregando os minutos iam passando e ele ia-se lembrando outra vez dos ciganos, ia pensando: «Eu acho que os portugueses ciganos andam a ser endrominados pelas igrejas evangélicas, mais até pela Igreja de Filadélfia que pela igreja católica... se não veja-se o caso dos sapos, nunca percebi, uma vez perguntei e os vizinhos disseram que a coisa ganhou fama com a curta-metragem da Leonor Teles, nesse filme a cigana destrói os sapos que estão à venda na loja, dizem que os sapos metem medo aos ciganos, que eles deles fogem, e que é uma atitude racista e discriminatória pôr uma sapo em louça ou cerâmica à janela de casa... é Zul, tu que agoras limpas a tua cabeça, vês como os resíduos nos dentes, nos buracos do nariz se vão clareando aos poucos, esses olhos estão quase brancos, essa mosca no queixo já não é castanha escura como se fosse saída de uma cabeça jovem mas sim um cavanhaque de cor cã como ele é na realidade... eu na realidade perguntei-lhes o porquê dos meus amigos ciganos se sentirem discriminados por um sapo e eles falaram-me que houve um dia uma história em que um cigano rico tinha um stand de automóveis e oferecia crédito ao cliente mas... a coisa correu mal... os clientes conduziam os carros de chave na mão mas saldar os créditos não havia maneira de tal se concluir. Então ele próprio começou a dizer: vai-te cara de sapo, vai-te embora!, e começou a colocar louça de sapo no stand com fins decorativos e paradoxalmente com um fim igualmente exorcista...»
Durante à vontade vinte minutos, Zulmiro pensou neste assunto enquanto esteve a limpar a sua cabeça, ela agora estava a ficar um mimo, alva como a neve, riu-se quando deu conta que agora já dava vontade de sujar de novo, não se esqueceu de, como a drogueira lhe recomendara, verter um copo inteiro de Gavecal nas amígdalas da cabeça e deixá-la assim de um dia para o outro, de manhã era só dar uma puxada do autoclismo, lavar-lhe os dentes por assim dizer. Sentiu-se bem e contente com o seu trabalho, a cabeça estava tão bem lavada que parecia nova, que parecia viva, que parecia que inspirava, que podia ouvir as suas palavras de reflexão, lembrou-se que os antigos celtas cortavam a cabeça dos líderes das outras tribos e as empalhavam e as colocavam no altar de casa e com elas falavam.
Zulmiro sentou-se e começou a falar com a sua cabeça: «Mas os celtas desapareceram quando os romanos lhes mostraram o cavalo continental, os gregos pintavam as estátuas com cor e hoje isso não se faz, e também os ciganos estão a perder as suas raízes, a sua cultura ancestral, estão a deixar de ser pagãos para ser evangélicos, qualquer dia estão a votar nos seus próprios algozes, eu li um livro de um francês que foi iniciado na sabedoria esotérica pelos manouches em França -- um previlégio restrito a outros leigos e a ele dado por ter ajudado a salvar a vida de um curandeiro homem de leis da tribo --, e, se bem me recordo, no livro fala-se que o sapo ou a imagem metafórica de um sapo tem uma significação esotérica para os ciganos... olha, vou à estante buscar o livro de Pierre Derlon e procurar a frase certa.»
Encontrou na página 129 e leu em voz alta: «O sapo, como o mocho e o morcego, é um dos animais favoritos dos feiticeiros. Representa a sabedoria, a luz e a feminilidade.» Zulmiro reflectiu: «A sociedade está a normalizar todo o mundo, qualquer dia as ciganas já nem a sina sabem ler para conseguirem ganhar uns trocos, com a tentativa de normalizar todo o mundo estamos a criar pedintes à porta do supermercado.»
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Claudio Mur

[ A citação de Pierre Derlon é retirada do livro:
''Tradições ocultas dos ciganos'', edição Livraria Bertrand, 1977 ]


domingo, 6 de outubro de 2019

Dia de Voto



I looked at my watch and I saw I had no time.
Didn't notice all the clocks on television,
Controlled violence on sale in new streets.
Don't delay in boring studios!
Whatever happened to Emancipation Act '73?
I think it's lost, yes it's lost
In a world of satisfaction. No delay!

[Chorus]
Like a crazy singer in a band that's lost the words.
Like a crazy singer in a band that's lost the words.
Like a crazy singer in a band that's lost the words.
Like a crazy singer in a band that's lost the words.
Caucasian walk, Caucasian talk
Because I can't do nothing, can't do nothing.

Seen is only truth in a shell of lies,
Distributed feelings to a race that doesn't comprehend.
I don't smoke, I just do it for the company.
Political problems, sexual frustration won't end.
It's the type of poison that doesn't count in life.
I think not of the glasses but of the drink.

[Chorus]

Glitter stardust in dull camp void,
Hero are you out there or is it just a shadow?
I could give you words if the world gives me vibes.
Tell me what's the position between the man and beast?
Impressions on a mirror for everyone of you to look at.
It's the type of happening in a weird situation
And that's the reason for doing nothing.

[Chorus]

I looked at my watch and I saw I had no time.
Didn't notice all the clocks on television,
Controlled violence on sale in new streets.
Don't delay in boring studios!
Whatever happened to Emancipation Act '73?
I think it's lost, yes it's lost
In a world of satisfaction. No delay!

[Chorus]

I have no words, no words
Caucasian walk, Caucasian talk...