quarta-feira, 29 de abril de 2020

la voce y la guitarra

Pois é, também eu fiz de ti uma personagem e mesmo não tendo a grandeza das palavras dentro de mim para te fazer juz: bela e diabólica, fui o teu rehabilitado richard burton duas vezes, levaste-nos ao delírio e à lágrima e eu: ajudámo-nos, valorizámo-nos, fomos rei e raínha na casa alugada do visconde, tivemos pedintes à porta para comer e tivemos mesmo que dizer que só no fim do mês teríamos dinheiro para nova botija de gás, afinal o remanescente na botija dava para alimentar até ao fim do mês até o poeta que só queria saber da palavrapasse para a rede uífi, foi pena ter-te largado a santa de barro e relíquia de mãe pelas escadas abaixo, desfez-se em cacos, foi causa para me fanares os três cedês do Xano, eram a nossa festa, quero comprá-los e não os encontro em lado nenhum nem no mano que mos vendeu há doze anos, já nada sei dos manos, e até tenho medo de o dizer, mas viva o grande Xano, era o toque do telemóvel, aquele trompete... martrine... mas olha, o Xano cantou quase de certeza esta primeira música: clica no triângulo põe a tocar, valá:


segunda-feira, 27 de abril de 2020

domingo, 26 de abril de 2020

Álvaro the great


'Álvaro the great'
óleo sobre tela
64.5cm por 81cm
2020
ZMB

Este trabalho foi feito a partir de uma fotografia.
Nesta tela recrio igualmente um grafiti do artista urbano Costah



sábado, 18 de abril de 2020

Talvez o desenho seja a forma de o trazer de volta

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Cláudia, quero contar-te acerca de uma senhora que conheci. Ela passa hooras a desenhar, tem sido sempre assim desde que perdeu o marido. O meu avô. Ela passa horas a desenhar em papel triste, acabrunhada preenche de formas esguias o mesmo desenho, com mais ou menos saber, enquistou naquilo e agora não quer saber de outra coisa, é surda e desenha para se afastar ainda mais do mundo que nunca lhe deu nada. Perdeu o marido e vive numa casa com outra senhora, qual das duas morrerá primeiro, pergunto-me nas horas fáceis. Nada ouve e o sorriso sem razão de ser embala-lhe a mãozinha retorcida, enganchada em voos de corvo aleijado, reescrevendo o remorso infantil dos dias, todos os dias repetidos no cismar vago do desenho. É chamada para o almoço, para o jantar, mas nos entretantos o mundo é todo dela, e afaga a possibilidade de uma nébula contínua por onde possa largar suspiros de adolescente comovida. Depois mostra o desenho, a outra sorri, e logo esquece aquele esboço e recomeça o mundo numa folha em branco. Esta mulher perdeu o marido e a casa porque lha tiraram, e agora deu-lhe para se afundar ainda mais no lodo das aguarelas, apetrechada do pincel molengão, lembra-se da casa onde viveu toda a vida, agora penhorada, onde não voltará, e impinge cor a cada móvel, gaveta, planta, tudo no seu lugar exacto, justinho nas suas formas concretas. A outra começa a ficar preocupada, a mulher não faz mais nada senão desenhar, horas seguidas de horas naquilo, só com as interrupções de um banho ou de uma fralda que precisa de ser descartada. Recorda com um sorriso pisco e ergue o fio da casa, milímetro por milímetro, e se lhe perguntarem o que foi o almoço de ontem jura que não se lembra, mas da casa sabe tudo e alisa as suas rugas num papel baratucho, com uma calma redentora de quem espera a morte de mãozinhas afogadas no tormento lento da braseira. A minha avó surda preocupa a outra senhora, e por isso lhe arranjaram agora uma cadelinha para ela se entreter, para largar de vez a mania dos desenhos, e ela pega na cadelinha, ri muito num estertor grosseiro e deita a cadelinha no seu colo, festinha-lhe o lustro do pêlo e diz-lhe coisas improváveis, que só ela compreende. A cadelinha adormece com o festinhar e a mão da avó renasce e é um fogo soprado às aguarelas, ao pincel que recapitula o recheio da casa moribunda. Do meu avô não parece ter saudades nunca fala dele mas talvez o desenho seja a forma de o trazer de volta, nessa discreta paisagem do ódio, quiçá forma menos chula de cumprir as ordens que acatou a vida inteira. A lua empoeirada transtorna-lhe a visão, ciscos daninhos maltratam-lhe a hora sonâmbula, mas ela prossegue equilibrada num finíssimo cordel de mágoa, escavaca a parede do papel com a rosa do seu punho frágil, alheio às cabeçadas do primeiro quebranto, e do pequeno televisor brota árduo o som das caricaturas da telenovela, esses rostos telúricos que devia estar a seguir, como todas as outras velhas do bairro, do país que nunca foi o seu porque nunca se deu o acaso de se apresentarem um ao outro.
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páginas 174 - 175

''Fazer de morto''
Frederico Pedreira
edição Língua Morta

sábado, 11 de abril de 2020

La dansa del agua discrepant


'La dansa del agua discrepant'
óleo sobre tela, 
50cm por 70cm
2020 
ZMB a partir de Juan Barabani
Juan Barabani and his work can be found at http://behance.net/barabani
Este trabalho é baseado nas
imagens de capa do álbum 'La dansa del agua'
editado pela Discrepant

sábado, 4 de abril de 2020

Largar, à aventura!...

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A cidade amanheceu toucada de neblina. Líquido, o Sol trespassou-a, derramou-se irisado sobre os altos, escorreu pelas encostas, inundando praças, avenidas. E ainda as finas transparências se desprendiam suavemente da beira do rio, já o céu era todo azul, profundo e puro, salpicado de nuvens brancas.
Na frescura do ar, o recorte colorido e nítido das ruas cruzava-se de pessoas, carros vozes. O rumor dos gestos, jogo de luz e som, subia da cidade.
-- Que bela manhã, ó freguesa!... -- saudou, sorrindo, a mulher da fruta.
-- Linda!... -- ecoou a freguesa, sorrindo.
-- Como estas maçãs! -- disse a mulher da fruta.
Sorriram uma para a outra, junto do dourado monte de maçãs, que o carrinho trazia.
-- Vem aí o autocarro -- avisou o homem da lancheira.
-- Quero lá saber do autocarro! -- sorriu o camarada. -- Nem que me descontem meio dia na féria, hoje vou a pé!
-- Tens razão -- responde-lhe o da lancheira, metendo-se a caminho. -- Manhãs destas não se fizeram para um homem passar por elas a fugir.
-- Não te esqueças! -- prevenia a mulher, debruçada da janela.
-- Ia-me lá esquecer!... -- gritou o homem, que saía da porta, a piscar os olhos à viva irradiação da luz. -- Esquecer, eu!...
Mas durante muito tempo, esqueceu tudo, caminhando na surpresa ofuscante da manhã.
-- Não és capaz de me apanhar!... desafiava a menina, correndo leve e furtiva como um pássaro.
-- Ah!... -- gritava o rapazinho, que a perseguia cheio de esperança. -- Se eu te agarro!...
O guarda-nocturno da fábrica, ao chegar à portaria, viu-os desaparecer à esquina com a mala dos livros a voejar-lhe nas costas. Só então se apercebeu da manhã que fazia. O céu, as cores do casario a descerem até aos iates das docas, até aos cargueiros e aos transatlânticos e às barcaças atrás dos rebocadores, pelo rio. E o porteiro ouviu-o murmurar.
-- Ter um homem que ir deitar-se!...
E disse a rapariga, que ia no segundo piso do autocarro a olhar através da janela:
-- Ir para o escritório numa manhã assim...
Ao lado, a colega ainda não acreditava que isso pudesse ser:
-- Numa manhã destas!...
-- Não sei que tenho... -- inquietou-se o sinaleiro. -- Pois não me está a dar vontade de mandar seguir todos os carros ao mesmo tempo!...
-- Largar, à aventura!... -- pensava o homem, no comboio subterrâneo, a caminho do emprego. Os olhos vogavam-lhe pelo mar, vasto e verde, lá longe. E a sensação de amplitude ansiou-o. -- Que manhã para partir por esse mundo fora!...
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página 49-51

''Tempo de solidão'

Manuel da Fonseca
Edição Arcádia, 1973