quinta-feira, 27 de agosto de 2020

No te metas con Carmina Burana



'No te metas con Carmina Burana'
óleo sobre madeira. 
89cm por 73cm
2020 

ZMB 
a partir de 
Carl Orf 


Este trabalho é inspirado 
na música e nas capas destes dois discos:
Carl Orf -- Carmina Burana
Chupame el dedo -- No te metas con Satan




segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A aliança

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-- Onde está a minha mochila azul?

-- Está aqui no guardafatos.

Ela vem e procura e não encontra, diz: -- Não tenho o estojo...

-- Que estojo?

-- O de depilação.

-- Eu arranjo-te uma lâmina, comprei um pacote com cinco no início do mês. Olha aqui.

Je agradece e diz: -- Vou levar a minha aliança.

Eu pergunto então porquê?

-- Ah, ainda não te contei. Na Sexta, quando fui pedir o papel no balcão do metro, um homem me abordou, estava eu à espera da minha vez com senha já tirada e a fumar cá fora, à espera, ele me disse «Dou-lhe cento e cinquenta euros se você ficar um pouco comigo» e até me mostrou as notas na carteira.

-- Palhaçada! Era novo ou velho?

-- Uns cinquenta anos talvez... Não tenho sorte nenhuma. Vou levar a aliança e depois digo que sou casada.

-- Ok.

Je vai arranjar-se e eu preparo-me para sair igualmente, acompanhá-la à estação, receber o seu contributo mensal para este período da nossa vida, ao qual chamamos de férias, e com o seu magro rendimento recebido hoje eu vou aproveitar para pagar a conta da água e da luz, aproveito e já fica pago, é incrível como o seu rsi é só de setenta e quatro euros enquanto o do ex-marido com rendas e ajuda da mãe é o de lei.

-- Estou pronta Ru.

Saímos. Calor. Hoje almoçámos o que restou do jantar de ontem. Massa tricolor com sardinha com picante e tomate. Tomei o meu café de saco, ela preparou o seu cremoso e ela disse já a caminho da estação do metro: -- Gosto mais quando é você que escreve.

-- É natural. Afinal eu leio todo o dia e escrevo de vez em quando enquanto que você gosta mais de ver os seus filmes de terror no tubo. Mas eu gostei do que você escreveu. Pelo menos é autêntico, Vê-se que foste tu a escrever e o que tu escreveste pode fazer com que te perdoem a multa. Eu escreveria outras frases, outras palavras, mais finas, mas não seriam verdadeiras, nunca me lembraria de escrever a palavra humildade e sei que fiz errado. Eu já te escrevi para uma candidatura a um anúncio na net e escrevi e só depois de enviar reparei: obrigado por uma oportunidade. Compreendes? Uma mulher diz obrigada e não obrigado. E eles ou elas ao lerem a tua candidatura podem ter achado estranho e te ter posto de lado.

Ela olhou para mim e penso que concordou comigo. Ela nunca precisou de preencher um formulário para o que fosse. O marido na altura fazia tudo por ela, divertia-a com luxo e cerveja e nem sequer a deixava conhecer mundo e arranjar um emprego como qualquer mulher que quer ter dinheiro seu e ser minimamente independente. Tirou-a de uma padaria porque o patrão quis abusar dela, passar a mão na bunda dela, e o marido não tem mais nada, em vez de dar dois tabefes no infeliz, foi buscá-la de carro e lhe deu cartão bancário e a transformou em esposa-amásia. Banca de luxo.

Eu sou diferente, eu não lhe dou nada e dou-lhe tudo, partilho o que tenho com ela, arroz, massa, frango, sardinha, tabaco, mortalha, ganza, ela dá-me um pouco de dinheiro para suportar o aumento de renda que o senhorio impôs, e ele foi bom para nós, ele chegou a dizer que eu ter posto alguém a morar em casa sem o seu conhecimento era motivo para despejo, eu sei eu sei, disse-lhe eu com quase olhos a chegar à lágrima, foi traição mas não havia outro jeito, arrombaram-lhe a porta às três da manhã, ela ligou-me às quatro e eu fiz que não ouvi ou era tarde para atender, e ela esperou até eu acordar e às nove da manhã me ligou.

-- Eu até posso acreditar em vocês, mas diga-me lá senhor Ru, vocês fazem vida de cama, são um casal?

-- Já fizemos essa vida, não digo que não viremos a novamente fazer, mas agora somos apenas amigos, quase como irmãos.

-- Ela está aqui há quanto tempo?

-- Há três dias.

Digo eu mentindo mas ele aceita as minhas palavras, a minha sorte é que nunca lhe dei problemas, pago-lhe as contas que chegam, entrego-lhe o seu correio, informo-o das novidades. Aumenta-nos a renda. Ele gostou da Je. 

Agora estamos a caminho do metro, ela tem de ir ao balcão da estação entregar a carta de pedido de perdão da multa. Bem no final do prazo de quinze dias para reclamação. E até ao fim de semana, a multa é de sessenta euros. Depois duplica. O bilhete de multa até referência multibanco tem. Uma eficiência. Onde vai ela arranjar dinheiro para pagar? Só espero que se ela precisar de tirar o passe não lhe exijam o valor da multa já liquidado.

-- Paga-me um café.

-- Não tenho troco.

-- Destroca.

-- Não tenho notas e mostro-te, olha. Vamos ali ao multibanco, olha podemos depois tomar aqui o café.

- Está bem.

Sentmo-nos. Pedimos os cafés e tomamos. Depois levo-a ao metro.

-- Cuidado com os picas. Entra sempre no fim da plataforma e depois lá dentro vai caminhando para o início do comboio. E sai em cada estação só para ver se eles entram...

-- Ó vou lá fazer isso. Assim toda a gente vai reparar.

-- Olha, já vi uma vez duas vintonas fazerem isso e não pareciam das que não tinham dinheiro, só não queriam pagar, elas entravam e saíam a cada paragem, e ficavam a falar junto à porta.

-- Sei lá, a gente ainda faz um telefonema e me delata.

-- Há chibos e bufos e aquilo que no Brasil vocês chamam, os xisnove, mas eu acho que neste caso... há um mínimo que as pessoas não fazem.

Ao chegarmos à plataforma do metro, caminhamos para o fundo e passamos pelos bancos. Reparo num senhor que tem um livro na mão mas não lhe consigo ler o título. Está sentado ao lado de um jovem que eu faço questão de ignorar, porque acho que o conheço, não tenho nada contra ele, ele é filho do Zé que morou comigo na casa do visconde aqui há quase oito anos, só não falo porque ele cresceu e nada sei desse pessoal, cortei com eles porque eles quiseram roubar a minha Sanea, e na altura tudo entre nós acabou. Agora este Nuno terá vinte e um, vinte e dois, vejo-o várias vezes na rua, ele também me conhece mas nada me diz, respeito de algum modo, ele sabe que eu fui bom com ele na altura em que o pai era meu colega, também ele uma criança já perturbada, já a tomar lorenin com treze anos, e bem depois da ritalina, problemas na escola, pai ex-tóxico, mãe ex-tóxica e seropositiva, não falo com o Nuno mas respeito. Espero que ele não vá anunciar que eu estou com a Je.

Ela entra no metro e eu venho para casa após pagar vinte e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos de água e de luz. Ponho-me a restaurar a capa do livro do Jorge Amado que estou a acabar de ler. Tereza Batista, que mulher!, faço um charro, descanso um pouco a ouvir um lp de Carlos Casas e Je liga.

-- Oi, está em casa?

-- Sim.

-- Vou praí agora. Só amanhã vou à Vendana. Não me estou sentindo bem.

-- Passou-se alguma coisa. Onde estás?

-- Estou na fila do balcão. Depois eu ligo quando estiver a chegar.

Ela desliga e eu vou fazer o café da tarde. Olho-me ao espelho e decido fazer a barba. Ela chega.

-- Então, é tontura?

-- Não, eu já acordei mal-disposta, é um mal estar...

-- Barriga, cabeça?

-- Não sei te explicar, é um mal estar que se sente. Olha, nem com aliança!

Eu olho para ela que mostra os anéis e os retira. 

-- Porquê? O que se passou?

-- Um sessenta anos me abordou e me disse você fica feia de máscara, devia tirar, não quer vir comigo. E eu disse: eu sou casada e você é mal educado e não está a dois metros de distância, ele estava sem máscara...

-- É o que eu digo: você agrada a novo, velho e até mulher, você é bonita por demais. Devia vender a aliança.

-- Eu gosto dela.

-- Era dinheiro fácil.

-- Eu não quero dinheiro fácil, se não ia fazer programa para a Fa!

-- Sim eu sei que não. Mas geralmente as mulheres divorciadas vendem a aliança, a ela está associado um homem e elas querem desfazer-se dessas recordações pessoais. Davam-te quarenta, cinquenta euros por ela.

-- Ah, ele pagou bem acima de duzentos.

-- Então é isso que recebes, o ouro está forte.

-- Mas eu não quero vender, pelo menos para já.

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Claudio Mur

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Domésticas da vida de cena

Ela: Me ajuda aqui

Ele: Estou na cozinha, agora não

Ela: Anda

Ele: Que é afinal?

Ela: Ajeita aqui o pinguélo da parafuseta

Ele: O pingarelho da parafuseta? Ah não sei

Ela: O pinguélo está prá banda dali.

Ele: Dali... Dali o pintor?

Ela: Não. A lupa do computador

Ele: Ah já sei, para fazer zoom e ficar normal

Ela: Eta ocê é inteligente

Ele: Pois bate certo, sou papagaio e faço o que manda a gente.

Nós: ihihih fixe kkkk porreta


E depois ela veio e me disse que não

Deu-me a bagana, eu acendi

E fumei cartão

Troca de galhardetes:


Ela: Homem é como biscoito.
Ele: Mulher é como autocarro.
Ela: Some um e aparecem dezoito.
Ele: Os autocarros estão sempre a passar.

E no final foram felizes para sempre

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Estereótipos

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-- Foi quando eu tirei o blusão que ele saiu disparado.

-- E você ficou fazendo lá?

-- Ora fiquei vendo televisão.

-- Claro que ele gosta ainda de ti, apesar do que ele te fez, tu teres-te oferecido para o acompanhar à cirurgia marcada no hospital tocou nele fundo, ele pensou: apesar de ela só ter ido embora porque eu mandei, mesmo assim ela pensa em me ajudar...

-- Noto aí nas suas palavras um certo ciúme...

-- Ciúme não, eu sei qual o seu trabalho, você gosta de ajudar os idosos e você não esquece quem cuidou de si nestes dois anos. 

-- Ele não cuidou de mim.

-- Cuidou sim, você viveu lá, partilharam tudo, você abandonou os antigos amigos que só queriam brincar na areia e você fez isso por causa dele. Agora também sei que ele te pôs fora a meio da noite e você ficou na paragem do metro até eu atender de manhã a tua chamada, e da segunda vez te deu um prazo de quinze dias para sair, já foi mais humano, quinze dias é um minimo, já se consegue um pouco de ar para respirar, e você disse: fizeste uma vez, fizeste duas e agora não há volta a dar, e é por isso que ele te liga a chatear, é porque é casmurro e só vê em frente, ele diz apesar de tudo o que fiz e quando não bebes és uma santa, mas ele sabe, ele não consegue admitir que não respeitou a tua dignidade e te deixou de pijama e chinelos na rua às quatro da manhã, é como diz a canção: os homens só gostam da mulher depois de as mandarem embora, onde está a minha sopa, a minha cantadora de novidades, a minha cerveja, a minha saudade?

-- Ah já te falei que podia estar hoje no Japão casada, ele falava e eu não entendia uma grama, mas a minha mãe não deixou...

-- E que ia você fazer no Japão, tu lá não tinhas com quem falar.

-- Ora aprendia...

-- E depois ele chateava-se contigo e fazia de ti sushi, pegava nesta bela perna e pendurava no talho.

-- Puxa, você parece a minha mãe! Já te contei que tive um namorado filipino.

-- Contaste-me dum coreano...

-- Mas também tive um filipino.

-- É, eu também vou agora falar dos meus amores. Já te contei daquela que apareceu lá no cais?, senhora de vison de setenta anos na cédula, a dizer que sabia de um sítio onde eu podia expor de graça, e eu claro fiquei logo interessado, e lá fui com ela a pé, meia hora a subir o monte e ela a dizer: quando me levares a passear, e depois chegámos lá, e apresentou-me o filho com umas trombas que me disse: são cinquenta euros por semana, e eu tomei nota, pedi para me escreverem o telefone no papel, e despedi-me, apertei-lhe a mão, saí, deitei o papel fora e nunca mais a vi.

-- Olha pois devia ter aceitado.

-- Para quê, para ela me bancar como vocês dizem, para ter jantar pago, umas bebidas e um charros de graça, talvez até renda de apartamento para a madame me visitar? Se ainda fosse bonita e da minha idade, ela me bancava e eu bancava ela.

-- Então quer dizer que para o Acá eu fui um troféu.

-- Sabes que foste o que os portugueses chamam de a brasileira, o estereótipo sabes, para muitos de nós vocês só servem para a limpeza ou para a cama. E tu és mais nova, quase filha, os velhos gostam de novidade, mas as velhas também, olha o caso que te contei, ela queria me enganar...

-- Virge!

-- E ainda não te contei da doida nossa amiga, essa queria roubar-me de ti, engraçado que só me compra quadros quando eu digo que estou chateado contigo e que não temos falado, olha este último que continua aqui, pagou e ainda não o veio buscar nem sei morada para enviar, essa é rica, não dá valor ao dinheiro, não precisa de trabalhar, anda por aí, não estás lembrada do filme que ela fez quando ela nos conheceu?, interrompeu a sessão de poesia para falar connosco, fez-se nossa amiga, disse que me ia organizar uma exposição de aguarelas e tal, e depois quando uma vez nós já não nos víamos ela comprou-me um quadro, até parece que só compra quando nós não estamos juntos, é para me comprar, até dançou para mim...

-- E dançou bem? Você gostou?

-- De nada, bocejei, ela fez cara feia e depois trouxe-me a casa, cheio de sono e de seca, ainda tentei que ela entrasse, mas ela fugiu, viu que eu não me sentia atraído por ela. Não és só tu que tens ou tiveste pretendentes. 

-- Muito você me conta.

-- Agora vou fazer este, foi o nosso amigo que arranjou, é bom.

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Claudio Mur

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Mas Zacarias tinha apego à vida

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Viu o povo de Buquim coisas de assombrar naqueles dias da bexiga negra. Viu o director do posto de saúde, jovem doutor de Faculdade, fugir em tão desabalada fuga a ponto de tomar o trem errado, fazendo o trajecto para Aracaju via Bahia, pela bexiga expulso da cidade. A correria do fujão, descrita com detalhes pelo farmacêutico na noticiosa porta da botica, causou risos em meio ao choro pelos mortos. Onde vai assim com tanta pressa, oh doutorzinho? Vou a Aracaju pelas vacinas. Mas esse trem não vai, ele vem de Aracaju, vai pra Bahia. Me serve qualquer trem, qualquer caminho, o tempo urge. Mas as vacinas, doutorzinho, eu as trouxe, estão aqui comigo, estoque suficiente para vacinar de cabo a rabo o estado de Sergipe e ainda sobra. Pois que lhe façam bom proveito, fique também com os eleitores de Buquim e, se tem dinheiro e competência, com a rapariga, é de chupeta.

Viu o povo de Buquim coisas de assombrar naqueles dias de bexiga-de-canudo. Viu as putas de Muricapeba, singular e diminuto batalhão, sob o comando de Tereza Batista, espalhando-se pela cidade e pelas roças a aplicar vacinas. Boa Bunda, de colossal traseiro; a magra Maricota, para apreciadores do género esqueleto, muito em moda; Mão de Fada, nos tempos de donzela assim apelidada pelos namorados, até que um deles foi além da mão e lhe fez a caridade; Bolo Fofo, balofa, gordalhona, para os apreciadores do género jaca-mole ou colchão-de-carnes, há quem goste; a velha Gregória, com cinquenta anos de labuta, contemporânea do doutor Evaldo, pois chegaram os dois a Buquim na mesma data; a menina Cabrita, com catorze anos de idade e dois de ofício, um riso arisco. Quando Tereza as convidou, a velha disse não, quem é doida de se meter no meio da bexiga? Mas Cabrita disse sim, eu vou. foi brava a discussão, além da vida, que tinham elas a perder? E a vida de uma puta do sertão, morta de fome, que merda vale? Nem a bexiga quer vida tão barata, até a morte a enjeita. Gregória ainda não está farta de miséria? Foram as seis e aprenderam com Tereza, Maxi e com o farmacêutico a vacinar, rápido aprenderam -- para quem trabalha de rameira nada é difícil, acreditem. Recolheram bosta seca nos currais, lavaram roupa empesteada, lavaram enfermos com permanganato, furaram pústulas, cavaram covas, enterraram gente. As putas, elas sozinhas.

Viu o povo de Buquim coisas de assombrar naqueles dias da bexiga-mãe. Viu os bexiguentos andando nas estradas e nas ruas, postos fora das fazendas, buscando o lazareto, morrendo nos caminhos. Viu o povo fugindo, abandonando as casas no medo do contágio, sem rumo, sem destino -- quase deserto ficou o arruado de Muricapeba. Dois fugitivos foram pedir pouso no sítio de Clodô, este os recebeu de clavinote em punho, caiam fora, vãos pròs Infernos. Insistiram, choveu bala, um morreu logo, o outro penou, não sabia Clodô já estar contaminado; ele, a mulher, dois filhos e mais um de criação, não sobrou nenhum, todos no papo da bexiga.

Viu por fim o povo, num assombro, a citada Tereza Batista levantar na rua um bexiguento, com a ajuda de Gregória e de Cabrita metê-lo num saco de estopa e pô-lo ao ombro. Era Zacarias, mas nem a velha nem a menina reconheceu o frustrado freguês da outra noite -- expulsos da propriedade do coronel Simão Lamego, ele e mais três variolosos. Não queria o coronel contaminação em terras suas, fossem morrer na puta que os pariu e não ali ameaçando os demais trabalhadores e membros da família ilustre. Quando Zacarias e Tapioca caíram com bexiga, o coronel estava de viagem, por isso ali permaneceram os dois, sendo que Tapioca logo morreu, não sem contagiar mais três. Com a chegada do patrão acabou-se a pagodeira, o capataz recebeu ordens terminantes e os quatro enfermos, sob ameaça de revólver, arrastaram-se para loge da porteira. Três se internaram mata adentro, buscando onde morrer em paz, mas Zacarias tinha apego à vida. Nu, as chagas expostas, o rosto uma postema só, bexiga-de-canudo, visão do Inferno, por onde ia passando punha o povo em fuga. Sem forças foi cair na praça, em frente à igreja.

Tereza veio e, com o auxílio das duas putas -- pois nenhum homem da localidade, nem sequer Maxi das Negras, teve ânimo de tocar o corpo podre do trabalhador --, como um embrulho o enfiou no saco e o pôs ao ombro, carregando-o para o lazareto, onde já estavam, tendo ido pelos seus próprios pés, duas mulheres e um rapaz do campo, além de quatro outros procedentes de Muricapeba. Atravessando a aniagem, o pus de Zacarias vinha grudar-se no vestido de Tereza, escorria-lhe viscoso pelo corpo.

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páginas 240-242


'Tereza Batista cansada de guerra'

Jorge Amado

edição Círculo de Leitores


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domingo, 16 de agosto de 2020

Duplo laço

 Ah, como gostam as pessoas de passar entre os pingos da chuva

quando ignoram aquele que se diz louco -- até pegam no telemóvel para disfarçar.

Mas de vez em quando lembram-se

e vêm incomodar o louco com analfabestices

e o louco que tem consciência da reciprocidade manda-os dar uma parabólica no bilhar mais próximo

É o momento em que as pessoas fazem escândalo e pedem explicações

Não compreendem o louco

Não sabem que fizeram ao louco o que não gostarão que o louco lhes faça um dia.

O louco neste momento tem um duplo laço no pescoço apertando-lhe a carótida:

Sabe que não tem ninguém com quem falar

Porque as pessoas não falam com loucos, dizem que ficam loucos ao conversar com um louco.

-- Mais vale jogá-lo pra debaixo do tapete.

E o louco fica um pouco mais louco e as pessoas cada vez mais falsas no seu espelho de marfim.


Dois poemas de Miguel Torga e uma reivindicação para o Brasil

 



segunda-feira, 10 de agosto de 2020

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Livraria Cassiber

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A Capítulo 0

Cassiber: Not me

 

Resolvo agora sair de casa para ir ao centro comercial. Ao fundo da avenida, viro à esquerda e chego finalmente ao semáforo. Atravesso no limite e, quando chego ao passeio, vejo um atleta a parar na passadeira à minha frente. Passo por ele e quase atropelo uma avozinha porque continuo a andar e a olhar para trás. O atleta treina boxe e, enquanto espera o verde no semáforo, simula ganchos com as mãos e movimenta os pés como se estivesse no ringue. A rua é larga e desce uns cem metros. Depois dos táxis, as lojas são à face da rua. Passo por um restaurante, uma papelaria, um escritório da rodoviária e uma florista. Chego ao largo de acesso em calcário, tem um lago com árvores de pedra e bancos de jardim. O centro divide-se em duas alas opostas e nas portas giratórias, às vezes, as crianças brincam dentro e fora. Estas portas abrem-se para agradáveis salões com ar condicionado. Caminho através das galerias espaçosas e o movimento é pendular, alguns vêm e eu vou no tubo de acesso ao parque de estacionamento. Imaginemos que este túnel se transforma numa casa de cão à beira dos pântanos de um rio. É onde ficam os estabelecimentos de renda mais barata deste centro comercial. São todos em forma de casota duplex e estão situadas nas traseiras junto aos salgueiros e perto da água.

É nesta zona tão pouco frequentada que existe a loja que hoje procuro, transacciona livros em segunda mão e tem espaço para as excentricidades mais variadas e outros objectos de antiquário. Não passa de um esboço, ao qual chamarei de inexistente no presente mas é certa esta imagem virtual, é uma vontade preanunciada e localizada na margem do rio, um plano para escrever o futuro, fazer-me à vida como futuro comerciante zeloso de pagar os meus impostos. No entanto, sempre que lhe leio a montra encontro preciosidades inestimáveis e livros dos bons, literatura maldita e rebelde mas também alguns livros de estudo e, sobretudo, muitos meios de conhecer outros povos, outras pontes, outros poemas. Na minha primeira visita, comprei uma pirâmide hieroglífica que se juntou a tantas outras montanhas e muros que me servem, hoje, de companhia nestes tempos de solidão, neste mau estar tratado com recurso a ergoterapia e pintoras de chiquebem.

Conheci a loja por acaso, fica mesmo ao lado da lavandaria que precisei um dia de encontrar para lavar os tapetes do quarto. A culpa foi da bezana do aniversário de uma sista no Gungunhana, uma festa com bolo e bons hambúrgueres, finos, bagaços, submarinos e ave-marias, Gauloises, Gitanes e vários SGs. Um eu que conheci na festa sugeriu irmos beber uma garrafa de uísque para o jardim em frente, sentámo-nos cada um em cada balouço, falámos das diferenças abissais entre Pink Floyd e Pixies dando tragos, balouçando e passando a garrafa até esta secar. Quando nos separámos por volta da meia-noite eu parecia o baloiço, a festa já tinha seguido o seu rumo para outro lado e o resto é a história sem interesse de como, sonolento e bêbado, fui varrendo as paredes até chegar à porta do prédio, acertei com a chave na fechadura e subi os três andares cantando eu não eu não, os meus filhos estavam doentes, estava muito ocupado, não pedi para nascer até vomitar no tapete. Era tal o fedor rescendente, tão enormes os bocados mal mastigados de hambúrguer que o meu colega de casa, que dormia habitualmente na outra cama, nessa noite dormiu no sofá da sala.

Hoje, esse eu do uísque trabalha nesta loja chamada Livraria Cassiber. Um dos meus sonhos por fim realizado, uma qualquer poligénese talvez literária, talvez psicocinética, talvez a mente gerando a matéria, e tão perigosa de se pensar talvez verdadeira. Mas talvez possa aprender com a sua experiência.

Paro na montra e reparo num machado, longo com a lâmina ligeiramente curvilínea. Uma antiguidade da época de Ana Bolena, segunda mulher de Henrique VIII, uma das que ficou sem cabeça, diz no letreiro.

Subitamente quando avanço para entrar na loja, tenho um flash luminoso e paro, penso que as luzes do centro comercial se apagaram e, ao ver faróis ao longe, soletro com a melhor dicção de guna para um minidisc que trago sempre comigo: carros-patrulha circulando descaracterizados no quarteirão das piscinas à procura de índios e ciganos? Na verdade, não tenho uma gamela de certeza. Aliás, posso ter descrito essa emoção e asseguro-te da sua veracidade, como tão certo estar hoje aqui e de a ter experimentado um dia mas não posso, no entanto, recordar o tempo exacto em que tudo isso aconteceu, porque aconteceu ou mesmo se aconteceu.

Alarmadas com estas frases reveladoras de carácter, as luzes voltam a acender-se e eu, que falo pondo os óculos escuros a filtrar a visão do real e apagando do momento as escutas visuais e os faróis, fico irreconhecível em caótica invisibilidade de fantasma. A voz sussurra irreal na névoa verde como se saindo de um livro, a voz diz: porque as verdades, que foram cortadas do papel e coladas no ecrã-tela da televisão com fita-cola e que, depois em frente dos bófias que os falecidos chamaram, foram jogadas no número vinte e sete da roleta, só porque três vezes nove vidas dá vinte e sete, essas verdades transformar-se-ão em mentiras, quando a leitura da matrícula real for transposta para a escrita usando os óculos escuros e a caneta. Aí, eu direi a frase exorcista: real não real, caríssimo não te amofines, eu hei-de aparecer à vista de todos, não hei-de ser um fantasma fumador e, ao mesmo tempo, chibo.

Largo o microfone e pego na caneta, escrevo no caderno preto de frases poema:

Colapso, título de um livro pensado há seis anos. Ah! Como será bom fumar já aqui uma ganza e experimentar o prazer consumista das belas novidades...

Entro finalmente na lojae, ao passar por um espelho, tiro os óculos e cumprimento-me porque sem óculos vejo alguém no espelho. Convido-me para fazer as honras da casa e entro para a sala de baixo da loja Cassiber. Apercebo-me do êxtase em ser reconhecido e volto a colocar os óculos de sol. De novo me torno fantasma, eis-me eu contra eu, voz dialogando com voz.

 

Então C?, tá tudo?

Tudo. Tás fixe, D?

Que te traz por cá?

Não tinha nada para fazer e resolvi passar por aqui para ver uns livros. Mas na montra reparei naquele machado, é mesmo ingalês?

Acendendo-se uma chama nos olhos, dirijo-me à montra e pergunto: Interessa-te?

De certo modo, em teoria...

Bem, é um machado respigado recentemente duma antiga casa senhorial há muito abandonada que foi demolida para permitir o prolongamento de uma rua.

Mas quanto vale?

Não está à venda. Rio e continuo: Ou melhor, custa um pedaço de dinheiro. Mas para que queres tu um machado?

Para nada. Só me fascinou ao primeiro olhar.

Levo a mão ao nariz, aperto-o, escondo um sorriso, rodo sobre mim próprio e digo:

Lembro-me de ver filmes sobre o rei Henrique de Inglaterra... é isso.

Esquece lá esse crápula, olha, tenho aqui algo melhor, livros que talvez te possam interessar. Queres ver?

Sim. Que andas a ler no momento?

Ando a ler este, As alucinações de um drogado do Burroughs.

Porquê?

Por causa do que as pessoas gostam de falar, tudo merda e mentiras!

Que andas a ouvir no momento?

Engraçado, serviram-me um café há dias no Gungunhana e perguntaram-me se poderia ser café de saco pois a máquina de cimbalinos estava avariada, azar.... são coisas que acontecem, no entanto apenas e só por causa disso, ando a ouvir o álbum que tem o Aum dos Mão Morta pois lá o narrador, ou autor ou leitor ou actor ou mesmo pessoa normal?, entra num café onde ainda servem café de saco.

E qual foi o melhor filme que viste nos últimos tempos?

Eh... nem sei o nome, porque quando ele estava para começar deu-me uma diarreia tão grande que não deu para ver o título, os fumadores sabem que os vegetais dão soltura, não sabes? De qualquer modo, acho que era um filme do Raul Ruiz onde o Marcello Mastroianni fazia quatro papéis ao mesmo tempo, tinha portanto quatro casas espalhadas por ai...

Ah...! Já me lembro, é aquele filme onde existe uma personagem que caminha a falar durante uma data de segundos com um martelo enterrado na cabeça até que o sangue aparece e ele cai no chão... é esse, não é?

Sim. Olha este livro.

Recebo do meu eu o livro, observo a capa cinzenta, pergunto o tema, eu respondo:

É mais ou menos uma história construída a partir de pequenos acasos, pequenas coincidências. Uma história construída por uma data de pessoas que por aqui passaram, folhearam, compraram e vieram mais tarde entregar o livro com os seus próprios acréscimos manuscritos. É uma edição da casa, eu apenas transcrevi e paginei. São memórias para uns, escapes para outros então.

Ah!, isso agora tem um nome, chama-se bookcrossing aplicado.

Pergunto-me de novo o que ando a ler no momento:

De momento ando a ser iluminado pelo Stig Dagerman e A ilha dos Condenados.

Tenebroso...

Porquê? Já ouviste falar de Stig Dagerman?

Não.

Tenebroso, se calhar, mórbido, depressivo e tudo mais. Deixa-me tentar adivinhar o teu pensamento... se calhar, é só por causa do título?

O título faz-nos muitas vezes escolher um livro. Muitas vezes o motivo pelo qual se pega num determinado livro é uma crítica de alguém num jornal, uma opinião de alguém que já leu ou se interessou uma vez pelo seu autor.

Fazendo uma pausa.

É tudo muito subjectivo. Já li livros que nada têm a ver com o título. Por exemplo, O outono em Pequim do Boris Vian não fala nem de outonos nem de Tiananmen. Mas o Arranca corações bate toda concorrência, excelente registo de quem andou sempre a fazer uma data de coisas diferentes sem se comprometer com nenhuma delas... e, depois, sabe rir-se das vozes, de todas as personagens projecção, de todos os pseudónimos duplicação. Talvez, no fundo, seja apenas o prazer em fazer que move montanhas, as definições de estilo serão sempre para os estudiosos. No entanto é preciso fazer bem, já que se faz alguma coisa deve-se fazer bem, deve ser esse o objectivo.

E o que acontece quando se começa a ler um livro e se verifica que o seu conteúdo é uma grande merda?

Às vezes, frequentemente aliás... Pode ser que a tua percepção seja diferente da percepção da pessoa que te indicou o livro. Ou pode mesmo estar mal escrito, ser soporífero, também acontece. Mas... em teoria, nunca se pega num livro ao acaso, existem pequenos algos, responde-se sempre a um estímulo, uma sensibilidade, um meme.

Então que livro leverás devar?

Hum... talvez o livro cinzento.

Porquê o livro cinzento?

O conceito interessa.

Muito bem.

Bem, vou indo, tenho de passar no supermercado e comprar azeite.

Até à próxima.

Saio da loje e decido fazer a viagem mais longa até ao azeite, tudo porque quero passar no parque de lazer, às vezes encontram-se prendas no chão, berlindes e berlaites dos bons, e, além do mais, é sempre um regalo ver as raparigas a fazer crosse de óculos de sol e walkman colado ao ouvido.

Hoje nada a assinalar neste caminho extra e posso dizer que não vi a pantera cor-de-rosa.

Chego a casa, tiro os sapatos, bebo um pouco de água e sento-me, enrolo um cigarro e começo a folhear o livro. Reparo nos nomes estranhamente esquisitos dos capítulos, o índice faz aumentar a minha curiosidade. Será anormal ter interesse em palavras esquisitas, será depressivo, será decadente?

A página zero tem como epígrafe: se eu voltar durante a minha ausência, mantém-me aqui até eu regressar. Termina dizendo: para mim e dedicado a G.

Viro a página e continuo a ler: 

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Claudio Mur

sábado, 1 de agosto de 2020

Férias




Neste momento estamos de vacanças. Eu e ela. Mas não é como no livro e dois castelos. Reduzimos os castelos a quartos e mantivémos o número dois. Logo, em vez de vacanças nos dois castelos estamos em parceria em dois quartos, decorados com peças curiosas de arte. O pintor diz: precisava de vender uns quantos quadros para ver se ganho espaço na parede para pôr a secar novos quadros. O pintor pensa que se vendesse alguns dos que estão emoldurados... mas ultimamente não tem havido movimento no ramo mecenas e, por isso, o pintor diz: já viu, aqui uma santinha? Ela diz: sim já vi. E o pintor diz: E aqui uma diabinha... e eu no meio... lendo o jornal, até pensei em pôr uns chifre mas não, é só eu a ler o jornal. O que acha do quadro?
De modo que, as férias têm sido boas, o Guliani lá veio acrescentar mais duas frases ao seu escrito de juventude no seu próximo livro, por mim... a melhor frase seria «editado» mas eu não tenho nem sou editora, talvez a melhor palavra seja «produzido» pois eu fixei o texto, paginei, fotografei a fotografia de capa e preparei para impressão final, dia 8 não porque é Sábado mas dia 10 a reforma cai no banco, meu, do Giu e de todos os reformados por invalidez e, por, isso dia 10 teremos por aí a bombar mais uma cópia de um novo livro encadernado em argolas do poeta índio, a quem eu nas minhas divagações de blogger chamo de Giuliani. Não é um grande poeta, é um poeta menor cujo destino será um milagre não ser o oblívio mas... é um poeta, escreve todos os dias há cinquenta anos e sacrifica-se pelo que escreve, as suas palavras são o seu fio condutor no dia-a-dia. Tem os seus defeitos, muitos, é um homem pequeno na obra mas tem um coração grande.
Quanto ao resto, a guerra continua as suas tréguas. Apesar de um insulto de vez em quando, que se ignora colocando o Strategies Against Architecture a tocar no leitor de cedê em alto som. nada de novo a assinalar. Podia assinalar os reveses do comandante que até comprou um carro mas não conduz porque não tem os documentos em ordem, mas fora este pormenor, as vozes que me chegam através da janela são poucas e normais, sinal de que a calma voltou à ilha. 
Estou de férias e agora tenho companhia, ela gosta da minha comida ou pelo menos come-a, já me ajudou a fazer a limpeza aos dois quartos e wc, falta os azulejos da cozinha e o frigorífico, talvez amanhã Domingo, dia do senhor, depois de almoço entre dois charros e duas canecas de café, somos como irmãos, cada quarto é um mundo, o mundo de cada um e, de vez em quando, comunicamos e chamamos o outro à nossa presença, a net dos dois computadores é de graça, a cerveja que temos consumido é pouca, ela tem-se quase habituado a fumar do meu tabaco de enrolar pois arranjei-lhe uma e ensinei-lhe a enrolar cigarros com a máquina de enrolar, e, por isso. o gasto adicional de fazer umas férias, e umas não solitárias comme d' habitude mas em duo, o gasto adicional tem sido inexpressivo e quem cozinha arroz para um, cozinha para dois: é só meter mais arroz.
A razão das férias ficam cá entre nós. Beijinhos para a Costa!