terça-feira, 31 de agosto de 2021

Alegoria


 

«Alegoria»
desenho em caneta de preto permanente com ponta em pena (bristle tip) e caneta bic,
colorido com tinta de aguarela sobre papel de 250grms,
50cm por 70cm,
ZMB 2021

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Pedro e esposa



«Pedro e esposa»
óleo sobre tela
41cm por 33cm
2021
ZMB 

Um jovem casal de vizinhos apaixonados

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

domingo, 22 de agosto de 2021

Obrigado mundo, obrigado povo

 


Operacão Fontaínhas, afternoon 15 spot 2 antes do kofi
Obrigado mundo, obrigado povo!
Continuando a ler «a Fome» de Hamsun ou do seu personagem que até este momento não tem nome oficial, deu o nome de uma mítica princesa persa para fazer pouco de um amblíope e deu outro na polícia onde ficou uma noite a dormir e, como disse para disfarçar e por vergonha que era um jornalista que perdera as chaves, de manhã não recebeu a senha de almoço na assistência social.
Há algo de errado nele e isso deve ser porque a sociedade, e ele próprio, considera o vagabundo um triste abominável. E ele que passa fome porque não tem dinheiro para nada, vende ou tenta vender até os botões, não consegue, tem vergonha de si, insulta-se na rua à frente de todos, não consegue escrever, vai pedir um osso a um talho, roi o osso e vomita, passa miséria, mas os capítulos acabam sempre com alguém a ajudá-lo.
Ele tem a consciência de estar louco devido à fome que lhe grassa na barriga, e eu acabo por ter pena dele, ele tem um mau carácter mas tenho pena dele, é humano, um humano que se tornou quase um animal, uma besta devido à fome. Tenho a solidariedade que se deve aos loucos. Não se é louco sempre, não se nasce louco, o mundo é neurótico e, quando rompe as costuras, a loucura, a psicose comportamental, a miséria existencial surge.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Lendo um pouco de «A Fome» de Knut Hamsun

 

Operação Fontaínhas, afternoon 14 spot 2

Lendo um pouco de «A Fome» de Knut Hamsun: o autor consagrado que, na sua velhice, se deu a apoiar o totalitário sistema nazi, não sei se foi só senilidade ou se já havia raízes totalitárias enquanto mais novo, sabendo que o mal como totalidade sempre existiu mas quando cresce começa por pequenos nadas e às vezes não se percebe a tempo o Horror em que tudo terminou (e que nestes anos parece esquecido ou negado).
Lendo por isso com reservas mas tentando perceber como um «pobre» ou desprezado pela sociedade pode querer o mal quando finalmente ganha o seu estatuto e um bom lugar na sociedade. Talvez seja a raiva de ter sofrido angústias e querer que outros sintam o que ele também sofreu, talvez seja ver que outros com menos dificuldades conseguem mais e mais rápido.
A ele e a outros que se possam iludir com totalitarismos, digo aproveitando outras palavras ditas noutros contextos e que, aqui em baixo, adapto e acrescento:
«O presente momento tem que ser recíproco, a comunicação tem que ser bidireccional e franca, e não pensar que temos sempre razão, não deve haver cobrança entre irmãos que se querem amigos, a raíz é o passado, o presente é a árvore, o futuro será um fruto amado mesmo que deficiente, termos que cuidar da árvore e são bem-vindas todas as mãos, haja boa vontade de todos, dividir para conquistar não é boa solução e dá péssimos resultados mas quando não se pode unir o que é desavindo, qual é o local de repouso e o que acontece aos que ficam na berma?»

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

A dança do ventre

 '

-- Ah pá!, qual foi a macaca que te fez mal que você não me sabe dar o isqueiro na minha mão hein?

-- Ó mulher, tás a tripar comigo?

-- Tou, tou a tripar porque tu não és assim... você sempre me deu as coisas na mão, não foi assim.

-- Também tu nunca falaste assim comigo como estás a falar hoje.

-- Eu estou a brincar contigo.

-- E eu estou a brincar contigo também, eu não estou fazendo mal nenhum...

-- Venha aqui, já! Tou mandando! Jornalista ahahah, meu grande amigo... te adoro... você é uma pessoa muito especial para mim, Ru... sabe que é não sabe?

-- Dá-me outro!

-- Não! Ó Ru, te adoro muito, você é a única pessoa que eu tenho aqui em Portugal e que nunca me virou as costas...

-- E não vou virar...

-- Apesar...

-- O que eu puder fazer por ti eu faço...

-- ... de tudo... nós os dois... eu sei que você não tem, não é rico...

-- Não...

-- Mas é rico numa coisa... e ninguém vai roubar eu...

-- Rico no coração é?

-- Na alma! Você é rico na alma...

-- Pronto, eu sei que sou e gosto de ser assim.

-- Apesar de ser ateu...

-- Eu sei... mas há coisas piores.

-- Eu te respeito e te digo uma coisa: você mora aqui dentro do meu coração e não paga imposto, e vou dizer uma coisa: você está sendo, não me vira as costas e isso eu não vou esquecer... nunca. Nas minhas orações e mesmo sabendo que você é ateu eu peço a Deus por ti, Ele pode até nem me escutar porque eu sou uma pecadora, mas você meu amigo não exige... tive muitos amigos e amigas quando tive dinheiro no bolso e hoje, ninguém me vê, isso pra mim é muito importante, da mesma forma que você não está se esquecendo de mim mesmo que eu estiver no Brasil não vou esquecer de ti...

-- Tá, fuma.

-- Como é que eu posso fumar se está apagado? Eu vou voltar para o Brasil, eu tenho fé no meu pai da terra, ele não se esqueceu de mim, lá eu tenho internet e eu vou me comunicar com você, vai ser a única pessoa que eu vou ter o prazer de dizer: eu tenho um amigo eu tenho um irmão eu tenho um home que gostou muito de mim em Portugal, que se chama Ru, o jornalista!

-- eheheh

-- E quer saber tudo em primeira mão...

-- É, o jornalista apaixonado!

-- Você está apaixonado por mim?

-- Eu gosto de ti, mas não sei quanto, gosto muito de ti, agora se te amo ou não te amo?

-- Eheh diz lá!

-- Não sei definir... se calhar iria querer que estivesses sempre comigo, faria birra sempre que tu não estivesses, ficava chateado quando...

-- Eu sei que eu não sou uma boa pessoa para viver junto não é?

-- Pois, eu já vi, nós já morámos juntos e não deu certo.

-- Ópa, eu gosto ali do meu cantinho e de ver o meu filme de terror... e... só falo o mínimo...

-- Pois!

-- Me habituei com essa merda quando estava sozinha no palácio do imperador, e estava lá no computador vinte e quatro horas por dia tásaver?, não falava com ninguém e me habituei àquela merda...

-- Pois mas viver com outra pessoa não é o mesmo que...

-- Não é fácil, para mim não é fácil... às vezes dava-me vontade de ir à tua beira mas... eu pensava assim: se calhar, ele vai me dar patada...

-- Patadas! Porquê?

-- Ópa, o meu pensamento era assim, posso falar? Quando um burro fala os outro amoucha as orelha, aprendi isso em Portugal e eu amo Portugal mas sou brasileira da pontinha do dedo mindinho até à raiz dos meu cabelo, eu é assim: sou portuguesa por um acaso e tenho as minhas manias, eu não perdi aquele costume do Brasil, amo Portugal, por mim eu não saía daqui de jeito nenhum, eu morria aqui, mas... olha, a vida é madrasta, eu procuro me encaixar numa coisa, dá errado, procuro me encaixar noutra e sai torto opá, eu já não aguento, eu já fui humilhada, já fui jogada na rua, passei fome, já comi pão com água opá, qu’é que tu queres que eu faça?, pedir esmola debaixo de uma ponte e tu passar por mim e dizer: foda-se esta não foi a Raíssa que eu conheci, isso é tão triste, isso dói tanto pá, mas é isso que eu estou passando aqui em Portugal, é isso snif snif, ai meu Deus me ajude ai, eu não fiz mal a ninguém snif porque estou passando por isso, desculpa se estou chorando...

-- Chora snif chora vais te sentir melhor depois desabafa tudo...

-- Eu nunca passei por esta merda, Ru, tu não me conheceste assim...

-- Não... desabafa tudo.

-- Eu tenho vergonha...

-- Não tenhas, eu estou aqui para te ajudar, estás assim porque estás a passar uma fase difícil...

-- Eu não quero ir embora...

-- Tu já passaste muito mal aqui, tu vais conseguir vender o carro, a tua mãe vai mandar o resto do dinheiro e você vai comprar a sua passagem e vai voltar para a sua família é melhor e nós vamos falar pela internet.

-- Eu não vou esquecer você, promete que não vai esquecer de mim.

-- Não, não vou, não se preocupe.

-- Obrigada, meu amigo.

 

-- Queres que faça um charro hein?

-- Que merda... nunca chorei na frente de um homem...

-- Há sempre uma primeira vez... deixa estar... queres um lenço?

-- Não.

-- Queres o meu lenço?

-- Não.

-- Queres um lenço novo? Tenho lenços de pano...

-- Não, querido.

-- Queres um de papel, tenho papel higiénico...

-- Never, faz um charro pra gente e põe Raça Negra a tocar, pelo menos é uma música de pagode, você vai gostA...

-- Como é que se chama a música?

-- Eu tenho que me ir embora daqui a bocado... que hora é, Ru?

-- Ainda não são dez.

-- Que música é essa?

-- É o Porto Sentido do Rui Veloso.

-- Ei, deixe passar, adoro essa música, é meu amigo ele, sabia?

-- Sei...

-- Ei pá já errei, já mentia, deixe estar, ele não é meu amigo...

-- Conheceste-o...

-- Eu conheci ele num festival que houve lá em Lisboa, tava ele, tava o Rolis Stone que eu vi ao vivo, ai menino, tomei um porre que você não imagina, eu caí de cu acredita!, e fiquei lá, estirada feita uma estátua, ai jesu, no show quando os Rolis Stone entraram... aãh pum desmaiei...

-- Não viste concerto nenhum!

-- Vi!, quase no finalzinho, e depois entrou o Rui Veloso e o irmão negro, estava eu e o imperador meu ex-marido, o Rui Veloso entrou na turma e ficámos ali, no maior bate-papo, e ele contando as histórias... eh ei... porqu’é que te tou contando isto?!

-- Conta, querida!

-- Ué hoje eu estou doida, não estou?

-- Tás nada! Tás-te a libertar das tuas angústias, conta!

-- Ó hoje eu tou doida!

-- Tás nada, tás feliz!

-- Não estou batendo bem, Ru!

-- Tás feliz por estares comigo...

-- Eu acho que estou precisando do meu diazepam...

-- Tás nada, vais chegar a casa, vais tomar o comprimido, vais dormir...

-- Que casa? A rua?

-- Vais ver... ele vai abrir-te a porta... tu vais chegar daqui a pouco... bebe a tua cerveja...

-- Calma!

-- Ainda tens ali a outra...

-- Porquê? Tu queres que eu vá embora? Tás-me expulsando é?

-- Eu não estou a expulsar mas tu tás a dizer que tens de ir embora...

-- Sim...

-- Pronto, enquanto não vais bebes a tua cerveja...

-- Cála-te please...

-- Fala atão tou-te a ouvir...

-- Helo?! Vá lá que eu tenho um casaco, não passo frio...

-- Pois, tu estás outra vez de calções e chinelos, estás assim, às três da manhã vais ter frio...

-- Eu tenho aqui um casaco...

-- Mas ele vai abrir-te a porta.

-- Se ele não abrir eu arrombo eheheh ai jesus meu eu sou é corajosa! Olha, cansei dessa música, põe lá Raça Negra.

-- Como se chama a música?

-- Espera aí, qui penaa...

-- Chama-se assim eheheh não se chama nada assim ah tem aqui uma música com esse nome tem...

-- Que pena, é um pagodinho... olha só você, depois de me perder, que pena, ahahah põe mais alto, agora do princípio.

Raíssa começa a cantar em estilo karaoke a música que toca através do youtube, eu faço um charro, depois ela diz:

-- Eu já vi o show dele lá no meu país, ui, foi bom demais.

A música acaba, ela diz: --Bota Alcione, ontem escutei lá em casa tomando uma cervejinha

Eu estou a escrever o nome da cantora na caixa de pesquisa no tubo e o telefone dela toca, ela fica atarantada, surpresa, curiosa, feliz: -- É o meu amigo do Michigan. Atende a chamada, é uma chamada de voz através do sistema de mensagens do facebook, esta chamada é possível porque eu partilho a minha internet com ela, em minha casa tenho uma pequena caixa branca, tecnicamente um hotspot, que dá internet para dez possíveis dispositivos, sou cliente antigo, não tenho limite de tráfego, pago pouco.

-- Oi, tudo bem?

-- Oi como vai você querida?

-- Bem, e você?

-- Use the voice translator...

-- O quê?

-- Use the voice translator...

-- Ah Ru, ele está a falar inglês, eu não entendo uma grama!

Eu acabo por não pôr Alcione, ponho, zangado e com raiva dela, Tim Maia a cantar «Me dê motivo», começo a gritar-lhe: -- Desliga, desliga a chamada!

Eu a pensar: ela aceita amizade de toda a gente online, já a safei de ser enganada, já lhe pediram morada, conta bancária, o nome do familiar mais próximo prometendo depositar três milhões, enfim, foi difícil de convencer nessa vez, mas ela ouviu-me, não deu os dados e homem desapareceu-lhe da rede, desamigou-se logo. Ela desta vez ouve-me e desliga a chamada, eu compreendo-a, eu percebo que ela arranja estas amizades onlines no intuito muito juvenil e ingénuo de arranjar um príncipe que a salve deste martírio de pobre, eu percebo o seu plano de fuga desta realidade, mas não o aceito, está sempre a arranjar-me concorrentes (e não é que com a ex-mulher do Zaine deu certo, arranjou um chinês de hongkong no face e ele mudou-se para Portugal, casaram, ela engordou e está feliz, até é ele agora que lhe gere as redes sociais), mas tão depressa vêm como vão, ela no fundo é uma mulher antiga e das católicas e se o marido lhe pagar as contas e a respeitar como mulher «ela abre as pernas», dizem os broncos, ela considera-o mesmo um dever matrimonial mesmo que ele feda caruncho, ela é uma mulher que já não sendo nova tem carisma e nem posso dizer que abuse, se ela aceitasse todos os pedidos de amizade agora teria cinco mil amigos, há dias diz que se riu quando um fazendeiro de Minas Gerais lhe propôs casamento logo na primeira chamada online, não, ela não abusa, ela procura o príncipe como se isto fosse uma aventura, fosse o filme da sua vida, diz até que já a vieram esperar ao aeroporto e a contactaram de lá, ela só precisaria de levar uma mala com roupa, o passaporte e o árabe lá a levaria para o harém.

Harém, digo eu a rir zombando dela, ela diz com pena: -- Nunca mais ele falou para mim, ele que tocava alaúde e cantava em árabe para mim...

Sim, Raíssa tem carisma e leva muitos homens à loucura de lhe oferecerem vantagens para que a consigam ter, ela aproveita o que consegue aproveitar e dá o mínimo que pode, bebe todo o álcool que lhe oferecem enquanto vai oscilando entre a divina que bebe o sangue dos enciados e negoceia o que vai obter deles cobrando cada promessa, dizendo «homem que me quer tem de me assumir», enquanto vai sendo empregada de limpeza e dama de companhia de velhas senhoras morando em mansão, até ao dia em que acorda de manhã numa cama que não conhece e com uma voz que lhe diz:

-- Eu dou-te tudo, tenho torradas e café para ti, toma a minha chave, esta casa é agora a tua casa, descansa, come descansada, eu vou ao talho buscar o almoço.

Ela ainda tenta perceber onde está e quem é ele, mas Acá logo lhe diz: -- Não aconteceu nada, não toquei em você, eu amo-te profundamente.

A partir deste momento, os penetras do face começam a rarear, Acá não tem net em casa mas Acá é bom, dá-lhe tudo o velho mastodonte, um homem à antiga é o que ela precisa.

Até eu sou descartado por uns tempos, meses longos em desespero de saudades e sentindo-me trocado por outro, um outro que «assumiu», que paga as contas, que põe comida de rei na mesa, que banca cigarros, vinho e cerveja, não passa frio, não chove no quarto, não pinga fazendo eco e alagando o taparuere estrategicamente colocado para não molhar os pés da cama, não tem pulgas nem aranhas mordendo-lhe a pele deixando-a cheia de pintas que parecem casquinhas de picos de castanha, não, tem tudo do bom e do melhor, não falta nada e assim o Ru... eu fiquei para trás.

Até ao dia em que eu volto a ser importante e ela me contacta de novo, afinal eu não exijo, eu não obrigo, eu não mando e o Acá, agora, enquanto a convida para ir à garagem falando-lhe da caçadeira que trouxe da guerra, lhe vai dizendo que se a vê falando com alguém mata o infame, mata a infeliz e depois dá um tiro na boca, diz-me ela que ele lhe mostrou a corrente com que a pretende prender, «porque se você não faz amor comigo também não vai mostrar as coxas pra mais ninguém, fica aqui amarrada à cama, não se preocupe com a Pandora, eu mesmo vou comprar desta vez os ratos para ela, você não sai mais de casa.»

«Quero que seja feliz. Me dê motivos pró jogo sujo e agora eu fujo pra não sofrer» canta o Tim Maia no tubo.

-- Ah Ru, se eu mandar abrir a boca você abre, esta música é a tua cara ahah.

-- És tu a mulher infiel desta música eheheh?

-- Noto aí uma ponta de ciúme, não quero isso não, nós somos só amigos.

Ao ver que ela está a trocar mensagens com o Ali, digo-lhe com um olhar que tem tanto de dor como de psicose: -- Tenho que te arranjar uma concorrente.

-- Não gosto disso não. Estou com frio.

-- Estás com frio, porque está frio e tu vieste assim, estás toda suada do calor da tarde...

-- Bota o cinzeiro aqui.

-- Tu onde tens a chave, não vais perdê-la?

-- Que frio, a casa é fria!

-- É fria no Inverno.

-- Que hora é?

-- Dez e dez.

-- Tenho que ir embora...

-- Disseste dez e meia...

-- Sim, mas primeiro que cheguemos ao metro...

 

Levo-a ao metro e venho para casa a pensar: se fosse jovem não perderia tempo com ela, mas estou a ficar velho e o meu carisma começou já há muito tempo a desaparecer, aliás, às vezes já nem tenho paciência, quando recordo os loucos vinte anos e os trinta por uma linha que eu fazia, as situações mais incríveis, insólitas, em que me metia para ir ao fundo e tentar, às vezes com sucesso, conhecer a mulher que no momento me atraía... agora penso, avalio primeiro, digo «não tomei banho, não tenho um preservativo na carteira, a farmácia está fechada, não lhe vou dizer ao chegarmos a casa que vou tomar um banho primeiro -- ah foi isso que viemos aqui fazer?, os homens são todos iguais, diria ela», de tanto as respeitar, de não forçar nada, não impôr chantagem nem corrupção para obter o mínimo que seja delas, de tanto deduzir que ao não impôr um mínimo que seja estou quase a sentir indiferença por ela, e ela repara, é como se não fosse mais desejável, como se eu não a quisesse, não gostasse dela, ela não fosse nem rainha nem troféu, fosse nada, e ela repara, chama-me gaiato, pensa-me um broxa e assim elas se vão e eu nada consigo, com a idade avançando torno-me um rapazinho que não quer assumir a necessidade de corromper e ser corrompido para colher o fruto gerado seja ele qual for (não é tanto o fruto mas antes os efeitos do fruto), desperdiço assim as mais belas mulheres cujo olhar se fixa em mim, não aproveito, não sou já sexual, sou social, afinal se a corrupção é a raiz da paixão fica provado que quando um homem tem paixão para lá do amor, tem paixão pelo dinheiro e pelo desejo de poder, corrompe todo o mundo e é igualmente corrompido. Ouço estas histórias e fico-me apenas com histórias, com a caneta e com o pincel, já não tenho mais ninguém, tenho ou Raíssa ou a solidão de não ter uma presença feminina na minha vida, ela pouco dá, eu sei, já deu mesmo que os dois já o tenhamos esquecido, deu-me sensações novas no momento, foi bom, mas acabou por terminar, tornámo-nos demasiado íntimos, sabemos ler a mente do outro, já não há mistério e já somos mais irmãos que qualquer outra coisa, já nos esquecemos do que é ser um macho junto de uma fêmea, um homem tem que querer consumir, consumar a carne, quase violar o hímen da mulher, com paixão, com carinho, com arrebatamento com a sensação que atingimos mutuamente o ponto do eterno desmaio abraçados um no outro, e nós jogámos esse jogo, o sublime viveu no nosso riso, e na nossa energia até exaurirmos o desejo de um pelo outro. Agora marcados um no outro, resta apenas e nela -- só a infantilidade de me fazer sofrer com as suas falsas facadinhas no amor, mais pelo cônjuge em união de facto do que por mim; e em mim -- eu sempre a tentar fazer-me de apaixonado perante ela tentando ajudá-la nas coisas mais básicas, agora o Acá às vezes não lhe faz comida e não lhe dá dinheiro para ela comer e, quanto a ele, bem, ele come fiado no café e paga quando recebe a reforma, eu tentando ajudá-la a suportar o inferno que ela própria ajudou a criar... e que sobra para mim?, que ganho eu agora que o sexo não é o motor da nossa relação? Sei lá, talvez ganhe karma points, sou a madre teresa de Arrombadeiras de Baixo, mas está na altura de seguir em frente, é o que eu quero, quero fazer o que estiver ao meu alcance para que ela arranje um trabalho com contrato legal que a faça poupar o suficiente para voltar para casa, a casa que eu nunca quererei visitar, Brasil é bom na música e nas mulheres e os índios salvos sejam, mas tudo o resto é mau, três por quatro a querer disparar bala sobre ti, jogando-te na mata a curtir o sol cheio de formigas a nascer na tua boca, jagunço virando presidente, enfim, Raíssa... tu vais conseguir abrir esta noite a porta de casa, e eu vou sonhar com a espanhola que me entrou em casa, convidando-me para ir a Sevilha e propondo-se fazer obras de graça em casa enquanto diz que dança o ventre ao som de música indiana just like Raíssa before... ah uma nova duplicação, a repetição de uma música minimal, a repetição de um meme introduz variações sempre diferentes, sempre eternas e de mínimas variações, adoro descobrir a nuance que torna a mulher única, diferente e particular num universo de mulheres iguais e as mulheres não são todas iguais, ela agora assume uns cabelos jovens para eu aspirar o perfume, uma nova musa num novo filme do qual me rio já dinamitando-o com a anedota daquele que com a espanhola apareceu, ele que quer que eu lhe ofereça um quadro por causa dos seus olhos bonitos e eu pergunto:

-- E se eu não gostar dos teus olhos?

-- Olha, não ofereces!

A puta da lata é tão grande que digo ao alazão desculpando-me: -- Prefiro vender...

O quadro está há anos a ganhar pó no meu quarto. Não tem valor em pilim, todos me querem o trabalho de graça, pintor sofre, já tive mulheres que me depositaram dinheiro para me comprarem quadros e depois nunca os quiseram ter em sua posse (porque no fundo o que elas queriam era comprar o pintor e não a obra), e de vez em quando tenho homens, supostos amigos que só me apresentam propostas de chulice, colam-se-me ao café de saco que tenho de lhes oferecer, cravam-me sucessivos cigarros de enrolar, suplicam pelo meu último charro, enfim... agora tenho este a querer-me um quadro de graça... pintor sofre, o sonho do pintor é ter uma dançarina no quarto a fazer stripetize só para ele.

'

anónim@s do século XXIII


 

domingo, 8 de agosto de 2021

Santa Ganza



«Santa Ganza»
óleo sobre tela, 
50cm por 40cm
2007-2021 
ZMB

As minhas primas e a minha mãe (católicas) me desculpem ou ignorem a heresia.
Tenho a dizer em minha defesa que santas há muitas e eu, ao chamar este quadro de Santa Ganza e não de Nossa Senhora da Ganza, pelo menos não me meti com a «mãezinha».

Mr. Sorry's Ghosts



«Mr. Sorry's Ghosts»
desenho a grafite, marcador de preto permanente com ponta de .7mm e pau de pastel de óleo 
sobre papel de 250grms
70cm por 50cm
2021 
ZMB

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Operação Fontaínhas, afternoon 7

 

brevemente ontem, enquanto o frio não chegou:

Operação Fontaínhas, afternoon 7:

lendo à paisagem um pouco de «A Grande Arte» de Rubem Fonseca