quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Coronel e Dona

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O Coronel Sardónia passou, lente e distante, pela rua fora. Quando Sardónia passava, o trânsito parava na Ingombota.
Os meninos ranhosos, de fralda esfarrapada, travavam com o freio de arame o arco feito de aduela de barril.
-- Dona Marina, o Coronel está a passar! -- gritava o mulato Xexé, travando o arco, matulãozinho já, mas agarrado ao brinquedo de criança.
-- Aonde, filhinho de Deus? Aonde? ... sacudia Dona Marina as nádegas opulentas na sua pressa. E limpava as mãos à matiné de chita.
-- Aonde, filhinho de Deus? -- tornava a "patroa" da casa mais conhecida da Ingombota.
-- Ali em baixo, Dona Marina. Ali em baixo, mesmo. Hoje traz um vidro no olho.
E trazia. Dom Belisário de Água-Rosada e Sardónia trazia monóculo.
-- Eh! Eh! Mamã ué! O Coronel vem mesmo com vidro no olho...
Dona Marina sorria desvanecida. Em nova, o Coronel Sardónia pretendera-a; mas ela fora na conversa do branco Bento, chofer do mato, que na altura comprara camioneta própria e prometia mundos e fundos.
-- Tu és mesmo uma mulher bestial...
E dava-lhe beijos de ventosa no pescoço. Marina não aguentara. E Dom Belisário de Água-Rosada e Sardónia, descendente dos velhos reis do Congo, ficara-se numa névoa cor de cada-vez-mais-névoa. Quando Bento acabou, Marina torceu-se para o Coronel voltar. Mas não podia ser, eh ué, mamã ué!
Sardónia casara por despeito (na igreja, mesmo), com a m'ssangana Dona Carlota Ferreira Kifumbe. Grande bomba! Marina, de coração um pouco amolgado, entrou na vida -- sua vocação -- e, durante uns anos, perdeu de vista o Coronel, que lhe contaram ter ido para S. Tomé.
Efectivamente, era verdade. Ali, Dona Carlota, a m'ssangana, passou-se. Paz à sua alma! O Coronel voltou e, sentimental crónico, procurou a antiga pretendida -- nesta altura já estabelecida e dando pelo nome de batalha de "Dona Marina". Desabafou, então, no seio já vasto, a sua aristocrática neurastenia. Teria mesmo espairecido nos seus braços os langores que continha desde o passamento da defunta. Contudo, nunca fora capaz de voltar a tratá-la por Marina. Subtilezas das almas eleitas! No escrúpulo do Coronel Sardónia, imperava sempre a recordação da falecida m'ssangana, que não amara -- é certo --, mas bem-tratara e fecundara pontualmente.
De resto, nem ele nem a antiga pretendida eram já moços. Ele era um cavalheiro de respeito e ela dona de casa conhecida e procurada.
Que diabo! Era preciso conservar o decoro! Que diriam as línguas do mundo? Por isso, ela -- com desgosto e mansa resignação -- ficara sempre "Dona Marina" nos lábios bigodudos do Coronel. Até mesmo nas horas em que este lhe desabafara a neurastenia no seio.
Porque -- isso era verdade -- o Coronel mantinha sempre inálterável a sua linha, fossem quais fossem as circunstâncias. Noblesse oblige.
E, para ela, Dom Belisário de Água-Rosada e Sardónia ficara também, e sempre, o "Coronel". Daí não havia que sair. (Dona Marina sabia-o bem, desde aquele dia de excepcional e humidade, em que de olhar líquido e narinas muitos abertas, acenando com a maçã bíblica, silvara: -- Zairito, venha cá... -- Dom Belisário distanciara: --Dona Marina! Permito-me aconselhar que se domine!)
Dona Marina habituara-se a essa distância formal, cheia de cumplicidades essenciais. E, como sempre, bateu as palmas num enlevo:
-- Eh! Eh! Coronel! Bom dia! Está bom mesmo?
E toda ela arreganhava a dentuça luzidia. Gente vendo. O mulato Xexé tirando do fundo dos calções restos mingados de jinguba. Maria Kadimba chupando tamarindo e enxotando na Kinda as moscas pousadas no doce de coco.
E o Coronel, solene:
-- Dona Mrina, como está?
Gesto lento e grave, a tirar o velho capacete colonial. Leve, muito leve (militar não dobra) curvatura de espinha. E continuando:
-- Acho-a com parecer cansado. Permito-me aconselhar que repouse mais.
-- Não posso descansar, Coronel. Tem muito serviço! Está a chegar barco de guerra! ... Mas entra, entra, Coronel! Senta! Não quer amparar?
E os olhos da Dona Marina prometiam secretos amparos. Sardónia sentiu a curiosidade do mundo. Maria Kadimba parara de enxotar moscas; o mulato Xexé já não comia jinguba. O menino Barroso vinha andando com denguice, correndo as pontas dos dedos no muro da viúva Silveira. O mundo está parado.
-- Impossível, Dona Marina. estou concluindo um trabalho sobre fortificações. No entanto, believe me, fico-lhe muito agradecido mesmo.
E despedindo-se:
-- Bom dia! Permito-me conselhar que não trabalhe muito.
Meditabundo e circunspecto, o Coronel foi subindo a rua. em cada falação, o Coronel permitia-se sempre aconselhar. Era estribilho. E, geralmente, quando o Coronel usava o seu estribilho, ele não dava bota, não. Porque o Coronel era acertado. Apesar da maluqueira e da bizarria, quando Sardónia abria a boca podia entrar mosca -- mas era raro sair asneira.
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páginas 85 - 87

Amaro Monteiro
em

«Antologia do Conto Ultramarino»
edição Livros RTP

Zé Mário Pirata

 

José Mário Branco morreu no dia 19 de novembro de 2019. Lembrar a sua morte não é um acto de nostalgia, é um acto de resistência e continuação da sua vida e obra. Obra essa que, e nas suas próprias palavras, logo deixou de ser propriedade dele para ser livre de uso e abuso: “As canções para mim são como filhos. São gerados, crescem e depois vão à sua vida. É por isso que eu tenho uma relação bastante radical, também, com essa coisa das autorizações para fazerem coisas com as minhas canções, com o próprio conceito filosófico de Direito de Autor. Tenho as maiores dificuldades em lidar com isso. Podem fazer hinos nazis com as minhas canções que eu não tenho nada a ver com isso. As acções ficam para quem as pratica. Depois está aí a comunidade para ajuizar, para criticar, para valorar. Para aceitar, ou não aceitar. Para o que for”.

Depois do projecto Zeca Pirata, lançado em 2009, pensado nos meandros obscuros da defunta casaviva, algumas das almas penadas, sobreviventes ao cavernoso caos que ardia na praça do marquês, pensaram em recriar um projecto semelhante para o José Mário Branco, um Zé Mário Pirata. Tal como nessa altura, a música vem acompanhada de um livrinho.

Duas dezenas de artistas/bandas responderam ao desafio.

domingo, 26 de setembro de 2021

De pequenino se torce o pepino

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 -- Então me diga como correu a entrevista? Desculpe se não acreditei e me ri mas pensei que estivesse brincando...

-- Olha, ainda ontem o senhor me ligou para eu lhe esclarecer algumas dúvidas... mas eu acho que ele não me vai chamar...

-- Mais porquê?

-- Ora, eu fui para lá muito descontraído, cruzei a perna, até parecia que não precisava de trabalho! Lembrei-me de ti e do outro, aquele Sérgio, lembras-te quando tu me disseste depois que na entrevista com ele nesse dia estiveram a falar de negócios? Lembra? Como você parecia estar em igualdade com ele? Tu concorrendo a ajudante de cozinha e ele o patrão a contratar? Até me disseste que ele ligou ao chefe de cozinha a dizer que tinham encontrado a pessoa ideal? E no que deu?

-- Pois, mas eu arranjei coisa melhor.

-- Este senhor despediu-se de mim ao telefone dizendo «nós voltaremos a falar» mas eu acho...

-- É... deixa lá. Hoje gosto de você, gosto dessa camisa, lhe fica bem.

-- Obrigado, também a levei no dia da entrevista, hoje vesti-a porque fui votar.

-- Votou em quem?

-- Votei nos comunistas.

-- Não imaginava você comunista... você podia andar mais vezes de camisa, lhe cai bem no corpo.

-- Ó, eu sei que fico galante mas aí eu penso «pra quê vestir bem se eu não vou galar ninguém»...

-- Ah muito me conta...

-- No fundo, eu sou como você, eu gosto de andar vagaba, desportivo, sem preocupação, mas quando preciso eu componho-me...

-- O que eu disse é que não gosto de me vestir para estar em casa... sabe que agora me lembrei de minha mãe? Minha mãe hoje estava tão bonita, muito bem arrumada, eu disse: ó mãe, você vai passear? Não. E porque está arrumada? Mas pia! Ela não gosta de dizer mas olha... e eu disse: mas mãe... não é mas pia, é mas olha. e por acaso você é uma professora? Não sou professora não, mas a palavra é «olha» e não «pia».

-- Eheh

-- Eu disse a ela: quando eu digo uma palavra errada, a senhora me corrige, não é?, e ela: bico calado.

-- Eheheh

-- Eu disse: pois, aí fiquei pensando: a minha mãe, 78 anos, não vai passear mas mesmo dentro de casa, ela fica sempre bem vestida muito bem parecida, e eu pareço uma gata borralheira... é fodido não é?

-- Mas tu pareces porque queres, tu tens roupa bonita...

-- Mas por acaso, eu tenho algum prazer de andar bem vestida dentro de casa, prefiro ser uma gata borralheira, não tenho prazer de estar bem arrumada pra quê?, e pra quem?, ôxe deixa eu parecer uma gata borralheira, um dia aparece um príncipe meio doido olha sei lá!, a vida não pára, eu estou viva ainda, tudo tem a sua hora, agora não me dá prazer nenhum me vestir, me pintar, pra quem?, e com que propósito?, não, deixa eu assim que estou bem.

-- É como eu. Mas às vezes desmazelo-me. Tenho falado nisso com o meu novo colega de casa, ele veste sempre camisas de bom corte e com punhos ajustados pela costureira, ele preocupa-se com o parecer bem, tem tudo a ver com o seu trabalho, com o contacto com o público. Agora, com a internet e o feedback dos clientes, não queremos que a empresa receba uma avaliação negativa porque o serviço não estava de acordo, falei-lhe até de um chefe que tive, eu era um chavalo que não gostava de gravata, e ele chamou-me à parte dos nossos colegas, um dia no final do almoço e disse «Ru, tens de usar um fato e uma gravata, camisa branca de preferência, considera-o como o teu fato de trabalho, eu próprio tu vês-me hoje assim mas quando vou à discoteca, eu levo até texanas!, compreendes?»

-- É, a minha senhora também me enche de roupa, quer que eu a acompanhe sempre impeque...

-- Mas eu já me desleixei tanto no passado, chegava a ir trabalhar com camisas furadas, sabes?, mesmo a ver-se o brinde da mixaria, sabes?, doutra vez, eu tinha um casaco azul polar que gostava muito e andava sempre com ele por causa do frio, e lá no escritório, fui discriminado e senti-me mal, não fui mandado embora, vim pelo meu próprio pé, mas lembro as palavras, ela a queixar-se à chefe que eu cheirava mal... pois é!, eu nunca havia lavado aquele casaco, andava com ele há dois anos, os brindes a queimar uns em cima dos outros, parecia que não tinha mais nenhum, enfim...

-- Olha, eu estou a começar a separar a minha roupa, está lá em casa do governador no sofá da sala, vou dá-la a uma associação lá na Vendana que ajuda os pobre, para dar a quem precisa, vem aí o Inverno e o frio, tem muita gente que dorme na rua pá, eu tenho tanta roupa que não uso eu sei que tem muita gente que passa frio na rua, vou fazer uma coisa boa pelos outro, eu acho que é uma boa acção, eu pra lá com roupa amontoada, a gente também tem que pensar nos outro.

-- Sim, a minha mãe também recolhe roupa mas sim... entrega lá à porta de tua casa, que é sempre quem está mais perto de nós que a gente pode ajudar quem precisa, não é?, se a gente puder ajudar o vizinho...

-- Eu acho que estou fazendo bem a mim e ao próximo...

-- Sim... e por falar no governador, como está ele, já lhe contou?

-- Ele está doente, é o remorso, ele sabe o que fez, quando eu lhe disse que ia embora de vez eu vi as lágrimas rolarem pela cara dele abaixo, no dia seguinte me comprou estas botas e foi pagar o seguro do meu carro, mas eu lhe disse «não pense que vai me comprar com o seguro não, você me ameaçou de pôr na rua várias vezes e me pôs mesmo, que miséria me deu você nestes quatro anos?, não adianta agora chorar, é como minha mãe disse: deixa chorA!, não tem pena que água quente não tire, eu sou como a minha filha, ela tem paciência, eu espero um ano, dois anos, três anos e depois sou igual a Pandora, dou o bote.» Mas tenho pena dele, está com trinta e nove e meio de febre. Ele agora colhe o que semeou. Eu já aprendi a lição, gata escaldada tem medo de água quente

-- É... agora ele vai desaparecer da sua vida e do nosso livro, aliás acho que devemos pensar em terminá-lo. Não vamos contar a tua nova e futura vida, agora que o sol te começa a sorrir. Acho que deveríamos acabar o livro com o teu caderno de pensamentos, seria o anexo final.

-- Ele escondeu o caderno mas ele aparece, é só tomar um porre! Mas ainda falta contar a história do poste e dos macacos no poste, acho que foi o dia mais maravilhoso que passei aqui, que mais nos rimos eheheh...

-- Eheh quase que te dava uma congestão de tanto rir, foi quando eu disse que tu parecias como os cavalos que têm palas nos olhos para só verem para a frente! Mas eu já reparei que você mudou, hoje você agora olha todo o pormenor na rua, agora já olha para os lados, é..., vou pôr a gravar... já está, começa:

« ... mas essa vai ficar na história vai mesmo»

« ... é... eu a querer ajudá-la a não apanhar chuva»

«... mas é que eu não vi ninguém, só via tudo preto, tudo negro, negrinho da silva, eu não escutava barulho de carros, eu não escutava vozes, tu podia falar o dia todo ali que eu não estava te escutando, nem estava te vendo, nem estava vendo o poste, nem estava vendo a chuva nem estava vendo o guardachuva, eu só via o passeio, e portanto, aquele passeio só dava para eu andar, não dava para mais ninguém, e tinha um gaiato que na imaginação, na minha imaginação tinha um gaiato que queria tomar o meu passeio...»

« ... ihihih...»

«E... eu olhava para um lado e via preto, não via nada, olhava para o outro, ‘tava também negro, não via nada, e o gaiato queria me pôr fora do meu sítio!, eu disse cumué... eu vou botar ele para correr daqui para fora, ihihih e pus, meti ele no poste ahahah»

«Pois!, foi aí que eu me queixei...»

«Só dei conta quando ele disse que eu tinha atracado ele no poste ahahah»

«Mas tu nem viste poste nenhum!»

«Só acabei por escutar ele depois ahaha e aí eu disse olha que mentira cabeluda!»

«Eheheh ai que caralh...»

«Doeu doeu?»

«Ui por acaso não doeu...»

«Ahahah...»

«Porque eu tinha de levar o guardachuva na mão, e aí o que bateu no semáforo foi o meu braço, não foi o meu corpo não é?, a minha mão ia à frente a segurar o guardachuva, o que bateu foi a minha mão...»

«Mas se não tivesse o guardachuva... você tinha levado uma trombada ali...»

«Sabes que isso já me aconteceu uma vez?»»

«Mas não foi comigo!, ihihih»

«Tinha praí 17 anos ou quê...»

«Tava com quem?»

«Tava com os meus amigos vizinhos, nós tínhamos...»

«Mais eles fizeram como eu?»

«Peraí eu explico, foi uma coisa completamente absurda... nós estávamos naquela fase de ir comprar roupa às lojas sabes?, pares de calças, estava naquela fase meio beto, e então... eles iam comprar calças levis, coisas assim, calças caras de ganga, e eu ia com eles e com menos dinheiro, também naquela de pertencer ao grupo, eu tinha ganho dinheiro e ia comprar umas calças também, e era ali na Baixa, vê lá, nós fomos de autocarro, para nós era uma festa vir à cidade, e para mim também...»

«Pois era um bando de matuto!»

«E então, estávamos todos na rua, todos a falar e não sei quê e eu... ia a falar falar falar a olhar para o lado e de um momento Pum!»

«Ahahahah»

«Bato num parquímetro!»

«Eheheheh»

«Bati sabes?, mesmo no peito, sabes daqueles antigos mais baixos e de meter moedas sabes?»

«Ahahah queria estar lá para ver...»

«Bati e voltei para trás...»

«Claro!, não ia voltar para a frente ó intéligente!»

«Não claro... é que o corpo bateu lá e fez aquela...»

«Pressão...»

«Os meus colegas ahahaha a rirem-se...»

«Babaca.»

«É, às vezes queremos impressionar os outros e fazemos merda, por isso é gosto de estar na sombra. Fui bem gozado nessa tarde...»

«Olha... eu queria estar lá para ver, eu cagava de rir...»

«Pois é, fazias como eles...»

«Ah pois... eu fazia como no outro dia do guardachuva em que você levou uma trombada...»

«É... tu quase que morrias a rir a seguir... quando eu te expliquei o que tu fizeste, partiste-te a rir, parecia que ia ter um chilique, um ataque cardíaco é...»

«Ahahah pena foi eu não te ter visto, um dia vou contar às minhas neta ah vou vou, elas vão cagar de rir, é sim senhora, esse foi o dia mais engraçado da minha vida, eu nunca ri tanto, sinceramente...»

«Nunca se meta no caminho da Shivana eheheh»

«Ihihih isso é so o começo, se se meter no caminho dela ela atropela, ui nem é bom, me faz lembrar o Brasil, eu e o imperador da primeira vez que eu fumei com ele, nós fumámos em casa e depois saímos, nóis ia na rua para ir para a discoteca que era a Broadway, nois caminhava, dum lado bares, do outro igual, e eu reparava, e via os postes de luz, os candeeiros, e em cima de um poste havia um macaco, eu caminhava e só via macacos, em cada poste que eu passava lá estava um, e eu dizia ao imperador, e ele perguntava: você está se sentindo bem?, e eu dizia: tou vendo macaco, ele estão a me observar, ele dizia não, você está vendo coisas, e eu ficava com medo que os macacos não me deixassem entrar na Broadway...»

«Porque tu pensavas que os macacos...»

«Sim... que iam me prender por eu ter fumado marijuana eheheh»

«Eh, às vezes dá esse efeito, a gente imagina coisas.»

«A Shivana atropela... naquele dia contigo de tanto rir eu quase que faço chichi nas calça, foi me’mo, a Shivana atropela, é por isso que eu era dona da escola, praticamente os menino quando me via saltavam o muro na hora do recreio, olha vamos embora que ela vem aí, era mesmo era, eu estou falando sério, quando a professora estava dando a aula antes do toque de saída eu me levantava para ir ao banheiro, e então, pegava um lápis e começava pela carteira do fundo furando eles de lápis, eu fazia tipo um ésse, uma ziguezague, uma estrada, e só depois que furava o último é que eu ia pra casa de banho...»

«Eh...»

«Mas quando eu voltava eu ia de castigo, na hora da merenda eles comiam descansados mas na hora da saída eles tinham de pular o muro, quando eu levava suspensão de três dias em casa eu ia para a directoria, para a directora, a Dona Eusébia, todo o mundo falava mal dela, que era osso duro de roer tásaver?, botava os meninos de costas e virados para a parede, e a mim... eu olhava assim para a cara dela, baixava a cabeça e começava a rir, pegava a borracha dela, e um lápis de tinta, daquele azul, na altura tinha um programa de televisão, que era assim: Mulher TV, e eu botava: Dona Eusébia directora mulher tv, e depois sentava, ela ficava de pé, escrevendo não sei o quê, falando com a mãe de um aluno qualquer, o quê, eu cruzava as pernas, sentava na cadeira da directora e ficava igual a uma patroa, cabeça erguida toda dura toda imponente, e ela virava para mim depois que a mãe do aluno saía, e dizia: Qu’é que você está fazendo aí?, eu dizia: Eu estou vendo a senhora trabalhar!»

«Ahahaha»

«Ihihih pra eu aprender não é? Ela dizia: olhe, vá masé embora e depois amanhã, vem para a escola estudA e se não estudA... aí quem vai dar suspensão sou eu, não é a professora. Eu dizia: Tábem obrigada até logo, já fiz o meu expediente, agora vou embora para casa, trabalhou bem, é isso mesmo!»

«Ih era isso que dizias à professora?»

«Não, à directora. Quando era no outro dia, não ia para a escola, ia directa para casa dela, tomar café com ela...»

«Tomar café com ela?! Ihihih»

«Ela telefonava pra minha mãe, na altura minha mãe tinha telefone fixo, Shivana tá aí? Eu gostaria de falA com ela por favor. Primeiro, ela dava bom dia pra minha mãe, não é?, era bem-educada, era directora de um colégio, gostaria de falA com ela por favor. Eu chegava ao telefone: Bom dia, estou cheia de sono, não fui pra escola hoje, estava cansada e dormi demais. Era tal e qual assim o que ela respondia: olhe, tome banho, e venha a minha casa que eu quero tomar o café da manhã com você. Mas a propósito de quê? Ó directora, não pode ser por telefone? Não... porque eu quero conversar com você sobre ontem! Estou lascada... eu cá comigo eu estou lascada, eu vou ficar mesmo de suspensão... E depois, a mulher pegou um tal amor por mim que queria que minha mãe passasse um papel, assinasse um papel para eu ir morar na casa dela, para ser como filha dela. Eu disse cumué! Nunca na vida! Deixo meus pais nunca na vida, só se Deus os levA. E a partir daí, eu comecei a ir para casa dela, dormir na casa dela, almoçar na casa dela, e a aprontar na escola, um dia... me botaram pra correr de lá! Tu sabe da escola das freira em que eu mandei as freira tomar no cu quando eu levei um choque eléctrico e quase que caio dentro da cisterna de água, eu disse à madre: olhe, vai tomar no cu, que eu não estudo mais aqui, vocês deixaram a cisterna aberta e eu levei um choque e fiquei com a cabeça do dedo inchada de pôr na tomada, ficou desta grossura a ferida. A madre chorou tanto pá, eu disse: não adianta...»

«Eheheheh»

«Fui expulsa porque mandei tudo tomar no cu, estudei nas escola toda, ninguém me quis lá, eu disse: melhor assim que eu não tenho de aturar ninguém, não gosto de vocês mesmo, mentira!, eu gostava de tudinho mas não dava o braço a torcer, mas eu gostava delas toda, e não tinha um Dia da Professora que eu não desse um presente chique, na altura os meus pais tinham condições, minha mãe vivia de confecção meu pai era marchante de gado, ah fôdasse foi o tempo melhor que eu passei, eu era ruim quando era adolescente: leu escreveu o pau comeu, eu era menina ruim, por isso é que eu estou pagando ihihih»

«É... por isso é que hoje estás pagando...»

«Olhe... brincar com o coração dos outro ihihih eu já te falei de uma cubana que tinha um bar em Cochabamba, uuuuui o que eu não bebi de graça ihih eu bebia os melhores uísques que ela tinha ihih no final ela sempre queria dançar comigo... mais menino olha, comia de graça, bebia de graça, cada petisco bom ui e no final queria dançar comigo: e desde quando eu sei dançar cubano ihihih eu não sei dançar não, eu sou pé duro. E acabava por não ir, ai não... e na Venezuela, que a patroa me dava dinheiro para dançar em cima do balcão!, olha pra isso, a dona do bar, olha pra isso, olhámerda...»

«Pois, eras empregada dela, aqui quando eu ia às discos também havia empregadas contratadas pela discoteca para dançar em cima das colunas... para nós... chavalos, a olhar todos extasiados elas ali e íamos logo beber mais uma cerveja para ganhar coragem, faz tudo parte do negócio...»

«Você não entendeu...»

«Pois, ela punha-te em cima do balcão, era para tu atraíres os clientes a beber...»

«Você não entendeu o espírito da coisa, ela queria que eu dançasse em cima do balcão mas era quando todo o mundo fosse embora...»

«Ah pois era...»

«Você não entend...»

«Era um show privado que ela queria...»

«Ela tinha bom gosto, eu também gostaria que me fizessem um show privado eheheh»

«É o que eu digo... você acha? Danou-se!»

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anónim@s do século XXIII






sexta-feira, 24 de setembro de 2021

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

I am air

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A mim, às vezes, apetece-me invocar o princípio da reciprocidade e internar compulsivamente todos os chulos e todas as bruxas que me levaram ao suicídio e ao desaparecimento da lista de vivos. Quando morrer de vez hei-de morrer casmurro de velhice.

No fundo facho gera facho, um insulto absurdo e autoritário gera respostas absurdas e autoritárias. Olho por olho dente por dente. O mundo é uma selva. Steal while you may, bad poetry here inside: só te salvando me poderei salvar e deixar de me considerar uma vítima e esquecer o herói… peço-te meu filho, faz-me as perguntas que teu avô nunca me deu vontade de lhe fazer, para quê mais um desgraçado como eu no mundo?

Quase que apetece ser absoluto e escrever: irmãos malucos de todo o mundo calai o vosso segredo, façam os psiquiatras trabalhar, façam com que eles se interessem pelo que vocês sentem. No entanto, a realidade em que caio, em que caí, diz-me para escrever: a tua cabeça não aguentará tanto sentimento, ela vai explodir. E como se fosse um missionário resigno-me a escrever: sede sinceros, se tiverem de chorar, se tiverem de amaldiçoar, se tiverem de vomitar, se tiverem façam-no, libertem-se do vosso segredo. Eu não sei qual a solução. Não há solução. Apenas a sensação de doom para sempre. Se usares metáforas eles dirão que és delirante. Se usares muitas vezes o pronome «eles» numa frase ou numa pergunta eles dirão que és paranóico. Eles farão o diagnóstico e este será a pedra que o mundo te atirará, será a cruz que carregarás, será o teu fígado de Prometeu.

No entanto, digo-te que ainda me falta encontrar a tua mãe.

Uma das tuas avós adoptadas, a cigana cidália moreira, canta que a saudade se cansou de esperar por mim, nunca a vi nem fumei com ela mas até a imagino ao lado das musas em fragmentos góticos dizendo que não sabe o que dizem os meus olhos quando «trabalho» à noite no lado este da cidade vermelha, perto de uma mansarda e, com a companhia da companheira do vento cantando, vejo umas quantas janelas com luzes acesas, acho interessante e no dia seguinte volto, na rua do arménia as fadas conversam alegremente à janela enquanto dão pão às pombas, anita lane, diamanda galás e lydia lunch conversam à luz de pequenas velas vermelhas, observam a rua e para elas serei talvez um pivete de dez anos tentando dar o seu primeiro golpe ou serei talvez aquele primo longínquo que mora em bilbau com o céu em névoa,

digo-te, meu filho, que os poucos candeeiros reflectem uma luz amarelecida nas grandes tílias e carvalhos que formam o boulevard, aparece até a voz de uma menina de sete anos talvez, talvez convidada dos cranioclast a gritar «like a propeller running» até à exaustão, vem sua mãe e diz «dorme enquanto podes my dear», esta mãe é nem mais que katherine blake e eu arrepio-me, I am very lazy in love, dorme menino dorme,

sabes, meu filho, que acordo no dia seguinte no cemitério inaugurado recentemente com a morte do prefeito mas posso também ter sido acordado por um pontapé de um samaritano na porta traseira de uma igreja em paris, acordo com a voz dessa diaba perguntando-me as horas, recordo que tive a oportunidade de iluminar mais um professor e, usando o relógio, verifico a descarga da tensão sexual reprimida, ele dando-me aulas de cinema quando eu ainda tinha dinheiro para investir, penso que ele acabou por me compreender e respeitosamente se afastar, dirijo-me para casa no fim da noite de delírio e pego na minha lata de chocolate em pó. Ligo a rádio num programa com outras músicas de título «jesus almost got me»,

é aí, meu filho, que descubro que «tua mãe» morre supostamente em passeio de bicicleta e me dá um «irmão de sangue», um dos muitos que estão aqui comigo nesta sala de fumo, aliás eu até penso que, para melhor me escrever, levo a autoridade a internar-me mas isso é apenas a ilusão de me pensar ao leme,

sabes, meu filho às vezes, a gente até provoca pensando que nos vão respeitar depois disso e que vamos ser quem toda a gente lambe as botas a…

só para ser, sabes?,

viver o bilhar dos livros é ocupação para tardes de melancolia, viver a eternidade do dia, viver a noite e se possível acompanhado… é esse o falhanço que tu nunca verás,

eu rejeito pôr-te no mundo e pores-te a pensar que teu pai está sempre ausente na doença, que tua mãe sofre… eu não tenho vontade de tal sofisma.

A verdade: não participo da tua fecundação porque não te quero junkie como eu ainda que a tentar salvar o progenitor.

Isso ou mudar de nome, invento-te mesmo um nome que truncado soa japonês,

tem tudo a ver com ciclismo mas agora vou telefonar à tua avó, é dia da mãe, o meu primeiro amor, a primeira juíza final,

não te farei passar pelo mesmo, os tios, soldados ou não, foram morrendo.

Tu perguntas: pai, é a tua vida um artifício, uma dissimulação?

Não. Só aquela que escrevo e o modo como transcrevo a minha realidade,

o teu pai na vida real é do mais humilde, do mais simples que há-de haver, sempre explorado e nunca se sentindo bem ao explicar,

o teu pai é do mais humilde e, às vezes, até parece absurdo, sabes?,

de só hoje ter reparado que o gasoline man do trio suiço the young gods poderia ser a continuação do trabalho daqueles trio de tios velhinhos do texas com cavagnacs, óculos e guitarras em forma de zz top just outside la grange procurando companheiras do vento,

sabes, meu filho, que na verdade podias ter tido uma mãe na vida real

e o teu próprio ser existir em osso, carne e sangue na vida real.

Não contraí sífilis mas pensei-me tão eficiente a secar-te no umbigo dela que então duvidei.

Fiz os testes todos menos o de fertilidade, esse factor de psicose resolve-se agora, quando acontece, com protecção.

Imaginei mesmo a minha psicose saindo de um aborto não-real. Nunca fui informado se…

Não há nenhuma mãe que te mereça. I am not here and I am not there I am air.

É-me preciso conhecer esta fraternidade de uma cabeça em pedaços, há muito tipo de poetas mas sinto orgulho hoje de poder fumar um charro com um poeta da obra e, entre a partilha de eternidades sónicas e ovnis enevoados no youtube, aludir em conversação a este relato antes de me deitar e fumar o último porro… transcrevo então, meu filho ouve este penúltimo relato já nostálgico rejeitando as últimas musas e já farto do masoquismo platónico quando se começa a sentir que, de facto, perto daquele limiar que, por convenção, se chama de «os quarenta», mas que pode ser antes, se começa a comentar a vida que antes se viveu, acho que houve até um alemão que o escreveu, um tal de talvez «chopenaure», perdoem o meu ubuntu cof cof:

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manuelle biezon

domingo, 19 de setembro de 2021

Plant Science

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A casa fica dentro de um condomínio, entramos e seguimos por um corredor estreito até chegar à porta do apartamento. É um edifício semelhante àquele onde morei uns seis, sete meses, até à altura em que incendiei por descuido o apartamento com duas velas vermelhas roubadas ao colega John. Deixei-as acesas no quarto quando, numa noite de Sábado, passava pela sala de estar e reparei que dava na tevê um programa sobre o Sinatra que tinha morrido nessa semana, sentei-me a ver e esqueci-me das velas a queimar: desenhos, fotos, livros da biblioteca, o rádio despertador, o edredão, a mesa, as portas de segurança contra incêndio, vermelhas, fechando automaticamente, celas vermelhas com um número gravado na porta. Bom, eu fiz tudo à minha maneira, com certeza. Fui recambiado para outro apartamento no mesmo edifício porque a minha renda era paga pelo meu empregador, e ainda lá estive mais um mês mas as regras ficaram mais apertadas e eu sob vigilância, repararam que eu lhes sujei o chão com tinta e fizeram-me a folha, e eu saí para outro lado, convicto que ia ter liberdade por fim. O resultado negativo é: passei a pagar alojamento do meu próprio bolso.

Sentamo-nos agora na sala, os rapazes trazem do frigorífico um taparuére de vianeta com cogumelos congelados, uma especialidade, quantos lá dentro?, bastantes. Dizem que não querem, são para mim e para Rob.

Eles fazem um charro, vão falando, ouvimos a Radio Friendly, ouvimos cantos de baleias, maravilhas que aparecem e desaparecem, flashs, espasmos sonoros que assustam e nos fazem manter atentos ao silêncio, diria que, devido à hora em que estamos, a música está em volume baixo mas nítido. Os cogumelos aumentam o volume do silêncio e o espectro sonoro que conseguimos ouvir e, por isso, cada ruído pormenor é som. A origem da música industrial: samplar, cortar amostras da realidade e relocalizá-la cosendo-a na paisagem, às vezes, distópica, tudo depende do que verdadeiramente pretendemos atingir neste corticose mas, às vezes, a mensagem simplesmente não passa, ou é dificiente ou é pela distorção seccionada e tornada prepotente pela autoridade oficial que dela se apropria como propaganda. E uma pessoa desliga, os olhos estão abertos mas é como se não víssemos, como se dormíssemos, os ouvidos distinguem entre os sons e ouvem apenas, prestam atenção apenas aos sons que lhe interessam.

Um dos rapazes vira-se para mim, dizendo-me que, há uma hora, eu vou comendo cogumelos sem parar, pergunta-me, meio curioso meio assustado, quantos já comi.

Não lhe respondo, não me interessa, aceno com os ombros que não sei, rio-me, engulo mais uma mão cheia deles, nesta altura ou mesmo antes, apercebo-me que, de facto, não me interessa saber quantos já comi ou irei comer, não me interessa, é um facto, não quero saber, já não é fome, já não é vontade de conhecer e analisar os efeitos, é apenas vontade de comer, sim, é um facto: como-os às grandes mãos cheias até que eles acabem simplesmente. 

Hoje, aprofundando este facto, a caneta escreve palavras como destruição, suicídio, overdose, esquecimento, mulheres, mas tudo se resume a hedonismo, sei lá porque os como assim!, mas talvez como diz Mong Tse: «Um homem deve destruir-se a si próprio antes de os outros o conseguirem destruir.»

Recosto-me no sofá e ouço a música. 

Rob está em frente a mim e come calmamente, não fala muito. No entanto, dissera-me uma vez com clareza que tudo o que faz é comprar a sua onça, fumá-la and get stoned durante uma semana. Não tem gostos especiais como ir à discoteca, não tem gostos especiais em nada, como não tem muito dinheiro procura emprego em part-time enquanto estuda a sua Plant Science. É apenas uma pessoa simples, sem grandes objectivos ou ambições neste momento, simplesmente vive o dia. Invejo-o. Gostaria de ser como ele — simples. Existem alturas em que detesto o Einstein.

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John Moore

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A máquina de ler anúncios

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A máquina de ler anúncios já foi oleada e está pronta para entrar ao serviço na procura de alojamento novo. Entrou-me pela porta adentro, expulso de um alojamento duplamente mais caro, e veio ocupar as salas no rés-do-chão, ainda não abriu a cama nem desfez as malas, dorme na sala, anda de um modo esquisito, diz que dorme mal e lhe doem as costas, convidou-me para o pequeno-almoço às nove da manhã no café e eu disse-lhe que o tomo em casa, fuma cigarros e não tem isqueiro, crava-mo, ao fim de uns dias já lhe comecei a dizer: já era hora de comprares um isqueiro, não?, ele disse sim, esperou que eu terminasse o pequeno-almoço e quando eu desci ao meu quarto para calçar as meias, lá veio ele atrás esperar que eu lhe desse o isqueiro, nem olhei para ele, ele olhou para mim e para as minhas mãos segurando as meias, deve ter percebido o enfado, pelo menos levou ao contentor do vidro as garrafas de vinho com sessenta e cinco porcento de desconto que comprou e me ofereceu e eu disse que tomo comprimidos e por isso não bebo, sim... tu é mais fumo, disse ele, ele que chegou e logo se aboletou no sofá da sala e me convidou para fumar um pica, um para cada um, deu um bocado para eu fazer para mim, ele não fuma de um charro que veio de outra boca, pediu-me uma mortalha, pediu mais duas ou três ao longo de dois dias por não saber onde estão as suas e eu mostrei-lhe um pacote por vinte cêntimos, queres?, ele não disse nada, eu pus as mortalhas à frente dele e catei duas moedas de dez dos trocos que ele deixa espalhado em cima da mesa, como se o espaço fosse todo dele e eu fosse um potencial ladrão, mostrei-lhe os vinte cêntimos que recolhi e continuou a não dizer nada, fiz questão que compreendesse e não mais me cravou mortalhas, segunda técnica de aproximação apanhada em fora de jogo, quando eu estou sentado a ler a Carolina Maria de Jesus ele diz que é bom ler o povo, a sabedoria popular e fala do António Aleixo, eu concordo e digo que este livro da Carolina, Quarto de Despejo, foi proibido pelo Salazar, e ele diz que muitos outros livros foram proibidos e diz que um livro do Debord passou na censura porque esta considerou que o livro era ilegível, ninguém o vai compreender, disse ele que foi essa a razão porque o deixaram publicar, fala com admiração do Arnaldo Matos, jovem advogado na capital com secretário para lhe comprar os jornais e lhos ler e ele ordenar mais uma acção de educação da classe trabalhadora com o apoio do Movimento de Rapazes a Pintar Paredes, piadeia ele rindo-se para mim, e quando eu de certo modo o reprovo por o Arnaldo ser um burguês a lutar contra os burgueses usando o povo através de uma capela... ele concorda e diz, sim é uma capela e fica nervoso, e eu acabo por dizer: as capelas existem por todo o lado, é lá que as pessoas se juntam, se associam, criam algo que disponibilizam aos gentios que dizem querer educar, quem lucra são os sócios auto-remunerados com o dinheiro dos gentios e dos infiéis, e ele fala do luxo, acaba a mostrar-me uma photoshopada dele super bem vestido num interior de jacto privado, diz que detesta o Bloco de Esquerda e vai votar nos comunistas em Vallis Longus mas eu acho que ele nem vai mesmo votar porque Vallis Longus fica longe e ele não perderá tempo a lá ir, fará como disse que fez quanto à vacina anticovid, não foi porque tinha de ir à Senhora da Hora e não foi porque tinha que cumprir horário de trabalho, eu logo aí pensei e acabei a perguntar-lhe: és adepto das teorias da conspiração?, quando o ouvi a dizer piadas com o sabe-se lá o que nos inoculam, mas ele diz que não, até tem um teste no quarto para fazer quando fôr necessário pôr no nariz e tal, está sempre a falar mal da esquerda e do centro esquerda e diz que compreende porque os comunistas franceses votaran Le Pin, e eu falo do Alentejo e ele nega, diz que o melhor é ignorar o Ventura e ele só tem 1.5 porcento e eu digo que nas últimas ele teve 12 porcento e ele diz que é residual, é o voto de protesto de pessoas que deixaram de se sentir representadas, que foram abandonadas por quem manda, e eu sublinho que estão ressentidas e a ferver ódio contra o Outro, Lacan explicado, o Outro é o povo, o governo, o vizinho que tem hábitos diferentes de Nós, há uma altura em que ele me pergunta, convicto do que diz, se deveríamos unir o cristão ao judeu para destruir o islão, e eu digo que não: olha, vinte anos no Afeganistão e este caiu num mês, tudo começou no Rambo III, não, o islão apenas precisa amansar, abandonar a jihad, democratizar, dar direitos às mulheres e às minorias, eu disse que o islão está atrasado setecentos anos em relação aos cristãos, ele pareceu não compreender mas reparei que ele não gosta de árabes, uma amiga veio jantar com ele e trouxe-lhe um doce libanês de grão de bico, limão e especiarias do médio-oriente, e fui eu que acabei a prová-lo na insistência dela, no dia seguinte havia o boião do doce abandonado na mesa da sala e, além da minha colherada, estava intacto, ele até perguntou se eu gostei mesmo, ele não quis comer e eu percebi que ele fez uma desfeita à amiga, eu precisava de dinheiro para comprar o meu tabaco de enrolar e mostrei-lhe um livro meu auto-editado, ele leu um pouco, folheando, lendo mais à frente, quatro ou cinco minutos depois pousou o livro, disse-lhe o preço, ele disse que vale o preço mas preferiu propôr o dom mecenaico, eu disse que aceito encomendas, falei-lhe nas aguarelas e ele preferiu retrato e eu disse que retrato é difícl, as pessoas não se vêem representadas nas minhas telas, querem fotografia e depois não compram, falei: dom mecenaico era tu comprares-me o livro, preciso de comprar tabaco, ele ofereceu-me tabaco e cravou-me o isqueiro, perguntou se eu fazia versões ou cópias dos meus próprios quadros, que gostaria de ver como ficariam certos quadros, e eu disse que os originais estão à venda, escolhe um, não vou fazer experiências só para ver como é que fica e depois não comprares, trabalhar para aquecer não quero e ele calou-se, depois falou-se já não sei a que propósito das Capazes, denegrindo-as e falando que não passa de uma questão de classe social, a filha da segunda figura do estado não representa as mulheres do povo, mas para mim que nunca li o manifesto feminista das Capazes e que apesar de Capaz rimar com Rapaz, penso que as mulheres têm o direito de se quererem igualar aos homens ressalvando certas diferenças: posso até escrever o poema mas não estou na realidade a ver uma senhora de trinta e cinco anos a carregar baldes de massa subindo andaime de obra, acabo a perder-me no seu jargão semiológico de academia e a pensar que ele despreza a mulher, sai-se logo a seguir com a ideia que agora se um homem falar de homossexualidade sem ser um homossexual, isso é apropriação cultural, e eu respondo que apropriação e marxismo cultural são ideias de Direita, começo a compreender o seu pensamente e lanço a cana para desvendar, começo a falar como o homem branco tem oprimido as outras raças e ele fala-me que a teoria da raça é uma teoria cultural, e pede-me uma definição de homem branco, diz que esteve na irlanda e lá há uma distinção entre homens brancos, consegue-se ver quem é católico ou quem é protestante, e acaba a meter outras histórias de haver brancos até no Japão, de os japoneses não serem amarelos, de devermos culpar os mongóis de invadirem a europa e de agora se falar muito dos índios da Amazónia e se esquecer um povo quase xamânico e ainda indígena na europa e de quem ninguém fala, algures no norte da europa, talvez norte da Finlândia, aqui eu penso muitas coisas neste seu discurso, e quase me perco nos seus múltiplos argumentos, mas começo a ver que ainda há pouco, após elogiar o mrpp, já falava que era anarquista, e como falara do lifestyle, comecei logo a vê-lo como um lifestyle anarchist, vulgo anarquista individualista: para quem não há esquerda nem direita e o que interessa é o individual, o Meu [sic] bem-estar, mas agora ele começa a falar em ideias de direita puritana, é contra os árabes (e nem importa que sejam cristãos libaneses), fala mal da mulher, pergunta-me uma definição de branco para não discutir o mal do branco no mundo e o extermínio de qualquer índio ficando eu a pensar «ainda bem que não se fala desse tal povo xamânico no polo norte! pelo menos que os deixem em paz e não apareçam por lá, na terra deles, a tirar fotos, a deixar beatas e latas de coca-cola pelo chão», ele está atacado do que se começou a chamar de «entãosismo», um tique dos de direita, acabará por me saltar a tampa quando eu, um pouco antes, lhe digo que a raça é uma questão genética, ou seja, hereditária (querendo eu dizer que quando misturamos sangue nos tornamos multiraciais: o que é bom) e ele diz que a raça é uma questão cultural e que é a teoria que a esquerda defende e acaba por falar que conhece uma belga que começou a usar penteado afro e a usar autobronzeador e se assumiu transracial, ou seja, uma branca decide ser negra e declara-se negra e que isso é uma ideia de esquerda: o facto de a raça ser uma questão cultural, é o que o centro-esquerda diz, aqui salta-me o tal testo da panela e a água a ferver tira-lhe as penas todas: sabes o que é o branco?, não precisa de ser europeu nem católico, pode ser o brasileiro evangélico que jagunça em Brasília, pode ser o John Lydon em Las Vegas com a t-shirt do make shit great again declarando-se falido porque, digo eu, já os Dead Kennedy's diziam Nazi Punks Fuck Off, pode ser até o Colombo e o Alvares Cabral que invadiram a América, mataram-nos de gripe, tiraram-lhes a terra, o tabaco, o álgodão, o ouro, a prata, as mulheres, e como o índio prefere suicidar-se a ser escravo, importaram negros de Angola e Guiné porque negro mesmo levando porrada negro trabalha, e quem ganha é o proprietário e quem é o proprietário? é o branco, e quem é o escravo?, é o negro que trabalha forçado, [aqui o texto entra em modo corticose:] são milhões de europeus até brancos que são forçados a trabalhar por outro branco, e tu quando falas que em Portugal só há duas raças, a dos brancos e dos judeus desprezados, esqueces os mouros, os negros, os ciganos, e todos os que são trabalhadores assalariados de um patrão que invariavelmente é branco, e ainda tens raiva porque o chinês ou nepalês trabalha por um salário que tu que não te assumes como escravo não queres exercer, e tens raiva contra ele e lhe ganhas ódio.

Acabo a dizer-lhe que prefiro ser antifascista a ser anticomunista, e ele acaba a falar que tem qualquer coisa contra os antis, que ele prefere não ser binário, fala até dos activistas antigays e que não tem nada contra activistas mas antis... antifa, antigay... ele perde-se, e eu digo-lhe o que penso: um antigay é muitas vezes um homossexual reprimido, ele ri-se e tenta dizer um piada com os rapazes com síndrome de Down, mas como eu confirmo que a sua piada é verdadeira e que de facto, os mongolóides [sic] fazem amor como coelhos, o que é bom no meu entender no sentido em que têm uma vida sexual activa e o mais feliz possível, ele acaba por se desiludir com as palavras. 

E ficamos os dois a olhar um para o outro, eu cofio o cavanhaque, ele dá-me o seu cigarro para eu fumar, eu aceito, dou uma passa e devolvo, ele coloca no cinzeiro, eu dirijo-me à cozinha para aquecer o almoço, volto à sala para almoçar sentado à mesa, nestes dez minutos puderam-se ouvir as gaivotas e o som da grua a trabalhar na rua, ele acaba por dizer: Disse alguma coisa que te incomodou?

-- O teu pensamento é ambíguo, é confuso, tu tornas impossível uma discussão séria, estamos a tentar solucionar a fome no 65 e tu vens dizer que há fome na Índia, e como não pudemos resolver o problema da Índia então também não pudemos resolver o problema da fome no 65, não sei, falas palavras e frases que eu não entendo, e eu não sou muito inteligente e por isso não sei se vale a pena falar mais contigo.

Saio, lavo a louça, recolho a caneca de café e venho para o meu quarto tomá-lo. Depois saio e vou levantar dinheiro para comprar tabaco, visto que o seu interesse em comprar-me um trabalho era nulo, até disse: não tentes vender-me nada antes do meio-dia. Volto e começo a escrever isto, ele lá em cima na sala a guitarrar, eu a fumar o meu descansado e a escrever, passado um bocado ele desce as escadas para sair de casa e diz que deixou tabaco na sala de estar, eu digo que não é preciso e que fui comprar, ah tábem era só história há bocado... ouço-o dizer ao bater a porta da rua.

-- Sim, meu palhaço, não preciso do teu dom mecenaico, de te fazeres meu patrão. Fui ao multibanco.

Mas esta frase já ele não ouviu. Quanto a mim, vou ignorar, e fazer-me de burro e preparar a próxima saída de Brooklin, ele faz parte de alguma minoria desprezada e sente culpa em se reprimir e não se assumir, tenho a minha própria opinião opinião sobre a questão fracturante que o persegue e que ele ainda não viu como solucionada e que o impede de andar direito na rua e não andar na ilusão de apenas comprar óculos para efeitos de estética, como me mostrou para eu ver se lhe ficavam bem. Vou ignorar a minha opinião pessoal, porque ele nunca me dirá qual a sua própria opinião, continuará a mandar anzóis à água a ver se eu os capto, não, não entendo nada, far-me-ei de burro, respeitarei, direi bom dia boa tarde, e sairei daqui para fora antes que ele vote no Chega, ele parece um negacionista.

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anónim@s do século XXIII 


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Mickeys on the beach



«Mickeys on the beach»
desenho a caneta-pincel de preto permanente e colorido com aguarela, 
50cm por 70cm
 2021 
ZMB

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

A Oeste Pintando as Fontaínhas



«A Oeste Pintando as Fontaínhas»
óleo sobre placa mdf,
 34cm por 54 com 'vértices' curvos
2021 
ZMB

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Corticose

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Passada meia hora a lata esgota-se, resolvo-me a sair e ir até ao pub. Passo pelo centro de emprego e leio os anúncios: precisam-se de indiferenciados, empregados de bar, engenheiros de sistema e etc. 

Então, imagino o italiano Mr. Cool, professor de técnicas de venda, actualmente desempregado a consultar o jornal de Domingo enquanto toma café, um anúncio diz:

«Procura-se profissional, integração em empresa em expansão no mercado nacional e internacional, formação contínua, possibilidade de carreira, remuneração de acordo com o perfil e experiência demonstrada». 

Mr. Cool acha ser esta uma boa proposta e decide, após o jantar, escrever a carta de apresentação manuscrita, dizendo: 

«No seguimento de um anúncio publicado no Giornale Della Repubblica, decidi por este meio apresentar a minha candidatura para a vossa devida apreciação. O meu nome é Mr. Cool e sou um profissional. Apresento em folha branca anexa o meu currículo. Com os melhores cumprimentos». 

Então, Mr. Cool escreve por onde passou como escravo: aos 13 fui ajudante de farmácia e pagaram-me o lanche, dois triângulos de pão de forma com queijo e fiambre e uma Green Sands para beber; aos 16 fui vendedor de louça plástica ao domicílio e recebi como pagamento uma largada de pitbulls famintos; aos 17 fui ajudante de electricista e o velho do pai do patrão pregou-me uma lapada nas ventas; mais tarde vendi enciclopédias a vizinhos ricos e pagaram-me um jantar num hotel de luxo com belas e sedutoras chefes de secção, o lucro deu para comprar um relógio; ainda aos 17 fui ajudante de reparações de consumíveis electrónicos, só ganhei treino de anedotas, o chefe assobiava a toda a mulher que passasse à frente da entrada da oficina, dizia «a pita lhe»; ao fazer 18 vendi livros por catálogo e preenchi o primeiro irs e apanhei uma multa por descuido; quase aos 19 servi copos e hambúrguers com batata frita num bar e os meus dedos tocaram pela primeira vez a recompensa de uma rata molhada. Aqui, Mr. Cool suspira, levanta a caneta da folha, olha o longe  e observa «é melhor não escrever que fui também fui estagiário num escritório e chamei o chefe de frigorífico e a ajudante de borboleta enquanto enchia o computador com spyware oriundo das imagens digitais da Britney que eu usava para manualmente me satisfazer... aí ele já não perguntaria: onde vai estar daqui a cinco anos, é...cu-ri-culo Vida... Puta que os pariu a todos, qualquer dia, tenho de ir como trabalhador sexual para as esquinas, vaffanculo...» 

Cu-rri-kulum... Vida... Coitado do mr. Cool. Tão juvenil, tão exóterico, tão boçal.

Após este corticose, vou até ao Fred Zeppelins beber uma cerveja.

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John Moore

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Só que não era verdade, era uma mentira maluca

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Oh, o que eu não daria por uma rapariga mexicana! Costumava pensar nela a toda a hora, na minha rapariga mexicana. Não tinha nenhuma, mas as ruas estavam cheias delas, Plaza e Chinatown fervilhavam de mexicanas, e de certo modo eram minhas, esta aqui e aquela além, e um belo dia, assim que chegasse mais um cheque, o sonho passaria a ser um facto. Entretanto, o sonho era de graça e elas eram princesas aztecas e maias, as humildes raparigas do Grande Mercado Central e da Igreja da Nossa Senhora, e eu chegava a ir à missa só para as ver. Era um sacrilégio, mas sempre era melhor do que não ir à missa, e assim, quando escrevia à minha mãe no Colorado, não tinha de lhe mentir. Querida mãe: no domingo passado fui à missa. Lá em baixo, no Grande Mercado Central, eu chocava contra as princesas acidentalmente de propósito. Era uma oportunidade para falar com elas, sorria-lhes, pedia-lhes desculpa. Aquelas lindas raparigas, tão contentes por serem tratadas com cortesia e tudo o mais, e eu só o fazia para as tocar e para levar a memória desse contacto de regresso ao meu quarto, onde o pó se acumulava sobre a máquina de escrever e Pedro, o rato, enfiado no seu buraco, fitava com os olhinhos pretos esses meus momentos de sonho e devaneio.

Pedro, o rato, simpático mas insubmisso, que se recusava a ser tocado ou domesticado. Vi-o no primeiro dia em que entrei no quarto, nos meus tempos de glória, quando O Cãozinho Riu foi publicado na edição de Agosto. Isto tinha sido cinco meses antes, no dia em que cheguei à cidade de autocarro, vindo do Colorado, com cento e cinquenta dólares no bolso e a cabeça cheia de planos. Nesses tempos eu tinha uma filosofia. Amava a humanidade e todas as criaturas, incluindo o Pedro; mas o queijo saía-me caro, o Pedro convidou os amigos todos, o quarto encheu-se deles e tive de passar a dar-lhes pão. Os ratos não gostaram. Eu tinha-os estragado com mimos e eles puseram-se a andar, todos menos Pedro, o asceta, que se contentava em roer as páginas de uma velha Bíblia de Gideon.

Ah, aquele primeiro dia! A Mrs. Hargraves abriu a porta e lá estava o quarto, com um tapete vermelho no chão, gravuras do campo inglês nas paredes e um duche contíguo. O quarto ficava lá em baixo, no sexto andar, era o 678, de modo que a minha janela ficava ao nível da encosta verde e eu nem precisava de chave, pois a janela estava sempre aberta. Foi através dessa janela que vi a minha primeira palmeira, a menos de dois metros de distância, e é claro que me pus a pensar no Domingo de Ramos e no Egipto e em cleópatra, mas a palmeira tinha os ramos enegrecidos, tingidos pelo monóxido de carbono que saía do túnel de Third Street, o tronco ressequido e sufocado pelo pó e pela areia que o vento trazia dos deserto de Mojave e Santa Âna.

Querida mãe, escrevia eu, as coisas estão a melhorar. Um editor importante passou pela cidade, almoçámos juntos, assinei um contrato para a publicação de uma série de contos, mas não vou maçá-la com os pormenores, querida mãe, pois sei que não se interessa por literatura, e o paizinho também não, mas é na verdade um belo contrato, que infelizmente só entra em vigor daqui a uns meses. Por isso mande-me dez dólares, mãe, mande-me cinco, querida mãe, porque o editor (eu dizia-lhe o nome dele, mas sei que não se interessa por estas coisas) está dterminado a lançar-me no maior projecto que tem em mãos.

A Querida mãe e o Caro Hackmuth, o grande editor, recebiam a maior parte das minhas cartas, praticamente todas. O velho Hackmuth, de olhar sisudo e risca ao meio, o excelente Hackmuth, cuja pena era como uma espada e cujo retrato, com aqueles autógrafo que lembrava caracteres chineses, adornava a parede do meu quarto. Viva Hackmuth, dizia eu, que belas cartas as suas! Depois vieram os dias de míngua e Hackmuth começou a receber longas cartas minhas. Valha-me Deus, Mr. Hackmuth, passa-se qualquer coisa de errado comigo: o velho ímpeto desapareceu e já não consigo escrever. Acha, Mr. Hackmuth, que este clima tem alguma coisa a ver com o problema? Por favor, diga-me o que pensa. Acha, Mr. Hackmuth, que eu escrevo tão bem como William Faulkner? Por favor, diga-me o que pensa. Acha, Mr. Hackmuth, que o sexo terá alguma coisa a ver com isto, porque, Mr. Hackmuth, porque, porque, e depois contava-lhe. Contei-lhe a história da rapariga loura que tinha conhecido no parque. Contei-lhe que a tinha perseguido e que ela cedera aos meus avanços. Contei-lhe a história tintim por tintim, só que não era verdade, era uma mentira maluca -- mas, enfim, sempre era alguma coisa.

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páginas 20 - 22


John Fante

«Pergunta ao pó»

tradução de Rui Pires Cabral

edição Edições Ahab

quinta-feira, 2 de setembro de 2021