terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Café Central

 O bom de voltar para casa dos meus pais é passar a comer bem. A minha mãe nunca me deixou ficar mal. Neste primeiro mês parecia que estava na engorda, carradas e carradas de boa comida, exemplo: dourada com batata cozida e hortaliça. Uma dourada para mim e uma dourada para eles, ou seja, cada um come metade e eu como a unidade. Já reclamei. Não faz sentido comer o dobro deles: «Vocês devem pensar que antes eu passava fome.» Mas eles talvez saibam ou desconfiem que eu poupava na comida para comprar livros e ganza, indo para isso comer à caridade da Ordem do Terço.

Na Quarta-feira à noite, na minha folga, comemos uns rissóis que a ex-mulher do Zezinho e actual sócia, a Joana cozinhou. Uma dúzia de rissóis por três euros e cinquenta, com direito a factura-recibo, que não serve para nada. Ficaram aprovados. Mandei mensagem ao Zé a dizer que estavam bons. Ele respondeu à laia de empresário dizendo «Sempre às ordens.»

O Zé, há dias ligou-me a perguntar se tínhamos quarto para ele no hotel, eu disse-lhe «é mais caro do que tu podes pagar, não temos.» O Zé, há dias pelo face mandou-me a proposta: «se precisares de alguma coisa do supermercado, eu posso fazer as compras por ti e levar-tas a casa.» O Zé, empresário na procura do biscate, cobraria iva, sacos para trazer as compras, combustível para a deslocação das botas até ao meu domicílio e apresentar-me-ia a factura-recibo. Respondi: «Ó Zé, eu não sou velhinho, não preciso de nada, obrigado na mesma.»

Hoje, a minha mãe grelhou iscas de porco e eu estive a contar-lhe que esta madrugada sequei uma saia à ceguinha da cave. Tinha sido culpa minha. Ela chamara-me durante a noite quando começou a chover e a sua única saia estava na corda ao ar livre a molhar-se. Ela chamou-me, chamou, chamou e eu a dormir. Logo, mãe, não tive outro remédio senão secar-lhe a saia usando o ferro a vapor. Nós não podemos secar roupa dos hóspedes na máquina de secar e embora eu já o tenha feito, desta vez não o fiz porque não ia pôr a trabalhar a máquina só por uma peça de roupa. Falei ao chefe sobre secar a saia da ceguinha e ele não disse mal. A minha mãe disse que ia oferecer uma saia à ceguinha, mas eu disse «não dá, eu não sei o número dela e tem de ser a medida certa, não dá para trazer uma saia dela como modelo para casa para a costureira fazer uma por medida, porque ela só tem aquela.»

Hoje, fui ao Central gravar os ciganos junior a jogar jogos online no telemóvel. Modernices.

 

21-10-21, 19h52

Acabei de jantar frango com arroz. Tomei café.

 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Eu tenho dois cunhados e não sei de qual gosto mais

 Eu tenho dois cunhados, um é Zé António e o outro Tó José. 

O Zé tem um curso de economia tirado numa privada mas começou a sua vida profissional através do pai que, trabalhando num hospital, o informou de um concurso e o meteu a trabalhar com ele. Como o pai tnha também uma empresa que fornecia serviços a hospitais, o Zé continuou na empresa do pai e chegou a sócio, hoje é dono da empresa e facturou milhares desde a covid. 

O Tó é mais self made man, não tem curso superior mas subiu a custo numa empresa tecnlógica, faz regularmente visitas ao estrangeiro para formação ou negócios da empresa. Desde a covid trabalha mais em teletrabalho indo uma vez por semana à sede da empresa para reuniões.

Disse o meu pai ontem ao almoço: A tua irmã disse que o Tó estava com dor de barriga e não foi trabalhar, ficou em teletrabalho.

Disse o meu pai hoje, a rir: A tua irmã diz que o Tó se sentiu melhor ontem mas que depois comeu uma fartura e ficou doente de novo.

Atão, não foi trabalhar hoje, outra vez?, perguntei eu.

A minha mãe, por seu lado, perguntou: Onde arranjou ele a fartura?

O meu pai esclareceu: Ele ontem foi ao Mercadona, deve ter sido lá que a comprou.

Mas, pergunto eu, foi ao médico ao menos ver da dor de barriga, passou-lhe uma baixa, foi?

Não sei, disse o meu pai, ficou em teletrabalho.

É pai, que sorte ter um patrão como o dele!

Parece que estás com raiva do Tó.

Não, não estou contra ele, quem dera que todos os empregados tivessem patrões como o dele. Não estou contra ele por ele ter regalias, apenas estou contra ele e o Zé quando eles se põem a dizer que o pobre não quer trabalhar.

Há muitos pobres que não querem trabalhar, diz o meu pai.

Sim, há pobres que não aceitam ser escravos. A escravatura acabou há quase duzentos anos, oficialmente quero dizer. Mas hoje em dia, ela parece de volta. Só digo que nem todos têm um patrão como o Tó que nem precisou de atestado para não ir trabalhar. E quanto ao Zé, apanhei-o a falar ao telemóvel com o irmão e ele referia-se à empregada como escrava.

Como o meu pai não responde, eu continuo no mesmo tom: os meus cunhados falam de uma posição de privilégio e pensam que todos têm as mesmas condições que eles, e quem não tem essas condições é para eles um bandido que não quer trabalhar. Quantos pobres não são escravos? Para dar um exemplo concreto, pai: Eu, no Tijuana há quase três anos, quando fui assaltado na recepção do hotel e tive que sair atrás do hóspede que me roubara a carteira, atirei-me para cima dele na escadaria que dá para a rua, foi de madrugada e se viesse um carro atropelava-nos, fiquei cheio de nódoas nos braços e nos joelhos mas recuperei a carteira. No dia seguinte, pedi ao patrão para folgar e ele disse: Não, sr. Rogério, não pode ser, precisamos de si. E mostrou-me um taco de beisebol dizendo: da próxima vez com isto você abre a cabeça do bandido. 

Ias ao médico, disse o meu pai.

Sim, pai, dizes isso porque confias muito nos médicos, não é? Mas tu quando precisas de um médico vais ao privado porque o centro de saúde não te atende. Infelizmente, tu também pensas como os meus cunhados. Vocês safam-se porque têm dinheiro. Ora, nem toda a gente tem o vosso dinheiro para se poder safar.


domingo, 5 de janeiro de 2025

Jaromil, o poeta bufo

 O quarto da cineasta está cheio de discursos e de fumo, através dos quais um dos homens (andará por volta dos trinta) olha atentamente para Jaromil desde há alguns momentos: «Tenho a impressão de já ter ouvido falar de si», disse-lhe por fim.

-- De mim? -- exclamou Jaromil cheio de satisfação.

O homem perguntou a Jaromil se não era ele o rapaz que desde miúdo frequentava a casa do pintor.

Jaromil sentia-se feliz por poder, graças a uma relação comum, ligar-se mais solidamente àquela sociedade de pessoas desconhecidas, e apressou-se a responder afirmativamente.

-- Mas não o vais ver há muito tempo -- disse o homem.

-- Sim, há muito tempo.

-- E porquê?

Jaromil não sabia que resposta dar, e encolheu os ombros.

-- Eu sei porque é, sim. Isso podia trazer problemas à tua carreira.

Jaromil esforçou-se por rir.

-- A minha carreira?

-- Publicas versos, recitas poemas nos comícios, a dona desta casa fez um filme sobre ti para garantir a sua reputação política. Ao passo que o pintor está proibido de fazer exposições. Sabes que a imprensa o retrata como um inimigo do povo?

Jaromil calava-se.

-- Sabes ou não sabes?

-- Sim, ouvi dizer isso.

-- Parece que os quadros dele são abjecções burguesas.

Jaromil calava-se.

-- E sabes o que é feito do pintor?

Jaromil encolheu os ombros.

-- Expulsaram-no do liceu, e ele trabalha como servente nas obras. Porque não quer renunciar às suas ideias. Só pode pintar à noite com luz artificial. Mas pinta belos quadros, enquanto tu escreves belas merdas!


página 361 - 362

Milan Kundera em «A vida não é aqui»

tradução de Miguel Serras Pereira

edição D. Quixote


quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Altar of flies


 

«Altar of flies»

óleo sobre tela

60cm por 45cm

2024

ZMB a partir de capa de disco da banda Altar of Flies,

um projecto de noise doom de Mattias Gustafson

https://www.discogs.com/release/6001846-Altar-Of-Flies-Altar-Of-Flies


segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Uma bela mancha

 Um círculo vicioso. Se Picasso, numa das suas crises contra a pintura, se atirasse de uma janela, M. X... o coleccionador genial, diria: "Fez uma bela mancha", compraria o passeio e fá-lo-ia encaixilhar com uma falsa janela, por Z., o encaixilhador genial.


Jean Cocteau em «O cordão umbilical / Ópio», página 144

Tradução de António Gregório/Joana Jacinto/Ricardo Ribeiro

Edição de Sr.Teste Edições