domingo, 30 de outubro de 2016

Para quê falar?
(Fragmentos dos Rascunhos do meu pai)

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Porque serei tão calado? Quanto mais falam aqueles que me rodeiam, menos vontade tenho de dizer alguma coisa. Talvez seja este o significado destes Rascunhos que retomei ao fim de seis anos. Dizer alguma coisa. Não sei com quem falar acerca da Aurora. Às vezes penso que o Claudio compreenderia, mas o rapaz tem mais que fazer. A Sonia está bem. Esforça-se por acompanhar-me e não quero magoá-la. É verdade que não falo muito com ela. O meu corpo fala com o seu e talvez isso seja suficiente. Será? Confesso que me mantém vivo, me desentedia o tédio. Nem sequer lhe disse que a sua barriga é uma delícia. Hei-de dizer-lhe. Prometo. Ela também não é muito faladora. Afinal de contas, para quê falar quando fazemos amor? Com a Aurora a festa era outra. Para começar, era festa. Ela não só tinha prazer como se divertia. O nosso acto era alegre. Não faz mal rir em pleno orgasmo. Sinto muita falta da festa. Aí reside o segredo. A Aurora não era calada, e eu também não o era nos tempos da Aurora. Provocava-me com perguntas. Fazia-me pensar. A Sonia, pelo contrário, quando fala dá logo as rrespostas. Respostas a perguntas que eu não formulei. A Aurora era insegura. A Sonia é seguríssima. Eu estou seguro da minha insegurança. Que confusão. Hoje estive a fazer contas sexuais. A verdade é que passei por poucas mulheres. Por fidelidade? Por preguiça? Não sei. Só contei oito. Nos meus quase cinquenta anos não é propriamente um recorde para o Guinness. Das outras, quero dizer, das ilegais, cinco foram apenas breves escalas. Não me deixaram marca. A que me deixou alguma coisa foi aquela Rosario. Talvez eu não tenha sabido mantê-la. Das outras lembro-me dos seios, do sexo, das pernas. Da Rosario, lembro-me dos seus olhos. Mais do que dos seus olhos, do seu olhar. Olhava como se quisesse dizer alguma coisa sem dizer. Nunca a vi chorar. Às vezes dizia-lhe coisas duras, a roçar o ofensivo, para ver se chorava. Mas ela só me olhava, profundamente, mas sem lágrimas. Terei alguma vez sido feliz? Antes da Aurora, perdi a Rosario. A pobre Aurora apagou-se sozinha. E agora existe a Sonia, que sabe acompanhar-me. A dúvida é se seremos um casal. Acho que sim, mas não deveria duvidar. Parece-me.
Porque terei mudado de casa tantas vezes? Passei por mais casas do que por mulheres. Escrevo e guardo estes Rascunhos aqui, no hotel. Não são para ninguém, nem sequer para mim. Não me são indispensáveis. Poderia viver sem os escrever. Na verdade isto não é escrever. É apenas dizer alguma coisa num papel.
O hotel. É o melhor emprego que tive. Só pelo privilégio de estar no meu escritório e ver os pinheiros, só por isso valeria a pena. Além disso, dou-me bem com as pessoas: empregados, turistas. Normalmente dou-me melhor com quem me é afastado do que com quem me é próximo. A pessoa que me é mais próxima continua a ser o Claudio. Não sei se tem valor como pintor. A verdade é que aquilo que faz não me agrada muito. Tornou-se um pouco pesado com aquilo dos relógios eróticos. Prefiro que seja boa pessoa (ele é) do que bom pintor.
O pinheiro maior mexe a sua copa. Que elegância. Acompanha-me bem, como a Sonia. um galo longíssimo e depois outro, mais perto. Muitas vezes tenho vontade de responder-lhes. Mas só sei emitir cacarejos humanos, não sei cantar como o galo.
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, página 112-113

'A borra do café'
Mario Benedetti
Tradução do castelhano (Uruguay) por Isabel Pettermann
Edição Cavalo de Ferro

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Mormon rock



Blackhouse are 
an oddity in the Industrial scene, because their music features Christian themes and lyrics! The duo of Ivo Cutler & Sterling Cross come from the heart of Mormon country, Salt Lake City, and have baffled the scene since they began opposing the libertine power electronics of Whitehouse with their Bible-obsessed messages. Unlike bland Xtian pop, Blackhouse preach the good word over the wicked sounds of raw beats and harsh electronix. They see no contradiction in their art, because as they say: "There is no war more holy than the fight for peace."
(taken from Blackhouse's discogs page)

https://www.discogs.com/Blackhouse-We-Will-Fight-Back/release/376725


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O amor sob escuta

Após visitar a exposição do Miró na Casa de Serralves
integrado no grupo de utentes de psiquiatria do CH S. João
realizámos um pequeno trabalho de arte bruta inspirado naquilo que vimos.
O nosso guia-formador disse-nos que Miró simplificava as suas imagens.
Disse que a estrela de oito pontas para Miró significava desejo,
além disso desenhava olhos.
Aproveitei estas duas referências e em papel A2 desenhei a lápis de grafite e cera:
uma cama-coração onde um casal está
sendo observado do céu por um mefisto
e com olhos claustrofóbicos nas paredes.


terça-feira, 25 de outubro de 2016

O surgir e o cair da bolha

Dois mil e oito. Os jogos olímpicos e a perfeição do oito, o ninho de pássaro e a invasão da Geórgia no mesmo dia 08-08-2008. o ano dos furacões e o ano das eleições e do bpn. O ano da bolha a nível mundial. O ano em que começaram a cair mitos, bancos, políticos, governos, estados, o ano em que chegou à atenção da multidão (apenas preocupada em ser escrava para receber ao fim do mês, vingando-se ao falar mal dele pelas costas) aquilo que não era mais possível ignorar: incompetência, diplomas comprados, anos a roubar para bolso próprio, caíram as primeiras máscaras, os bancos faliram, os capitalistas decidiram nacionalizar o prejuízo, alguns políticos foram presos mas ainda assim o Zeinal teve direito a afundar a jóia da coroa, vendê-la aos brasileiros, falar portuguesing no parlamento e receber cinco milhões de indemnização por despedimento por justa causa. Não foi apenas em dois mil e oito que tudo isto aconteceu, apenas começou a explodir a partir daqui.
Dois mil e oito foi também o ano em que tive um contrato que não era apenas verbal ou mais um estágio pago a peso de ouro como no início do milénio. Em dois mil e oito tinha um contrato sem termo mas o trabalho era fantasia, os gerentes deixaram de aparecer, tinham-se aparentemente zangado, o salário começou a chegar atrasado, de vez em quando surgia uma nova ordem de trabalho, desconfio apenas para nos manter ocupados atirando areia uns aos outros, os dez telefones comprados no plano de investimento da empresa ganhavam pó na secretária ao lado, recém-licenciados desejosos de ganhar dinheiro fazendo o seu melhor trabalho para a empresa desistiam porque os gerentes os enganavam e eles desistiam completamente fodidos da cabeça, um exemplo: tínhamos computadores topo de gama que apresentavam ranhuras de leitura de cartões de memória e quando um destes freelancers precisou de passar o trabalho para o apresentar ao nosso boss, ficou sem o dito cartão de memória, porque ao introduzí-lo na ranhura respectiva, esta era apenas aparência, dentro da caixa não havia dispositivo nenhum. Como nem sequer havia uma chave de parafusos para abrir o computador e retirar o cartão que ficara dentro da caixa, este nosso desgraçado colega disse apenas «a minha colaboração fica por aqui, até nunca!» e virou costas. Muitos mais foram enganados e chegou finalmente a nossa vez de o também ser: foram três meses de salário em atraso. Nós, os que restavam e tinham contrato, decidimos rescindir por justa causa. O nosso primeiro dia de desemprego foi o Dîa do Trabalhador, dia um de Maio. Dia também da data da rescisão. Começava uma nova luta, inédita para mim: a luta para tentar receber o dinheiro em atraso. Metemos os papéis no Tribunal do Trabalho, preenchemos formulários para apoio judiciário, o patrão vendo finalmente que ficara sem empregados, assinou a carta e nós tivemos direito ao fundo de desemprego. E cada um de nós seguiu a sua vida, lutando individualmente e prometendo colaborar uns com os outros. 
A partir daqui só posso falar da minha luta para obter os meus direitos remuneratórios. Valores que, num gabinete de apoio ao desempregado, me diziam ser dois mil e quinhentos euros e que, numa reunião para tentativa de conciliação onde compareci eu e o boss qualquer um sem advogado, a procuradora disse ser de quatro mil fazendo o boss assinar o documento e comprometer-se a começar a pagar a partir de Setembro em prestações mensais, algo que nunca fez. Foi mais uma tentativa para adiar o problema e eu quebrar psicologicamente em Setembro. Posso dizer que uma das razões para ter sido internado pela quarta vez, foi o facto de ter lutado com insucesso pelo dinheiro que me era devido. A segurança social devolvia-me repetidamente o pedido de apoio judiciário dizendo que faltavam documentos, eu respondia, esperava pela resposta, ia ao tribunal pedir para falar com a procuradora e ela perguntava-me se eu tinha vinte euros para pagar a taxa de justiça para o tribunal executar um acto judicial, eu dizia que não tinha e ela disparatava dizendo que estava para se reformar e o processo ia ser passado para outro. Quando chegou finalmente a resposta da SS e lá se dizia: apoio judiciário, pedido de advogado indeferido, fui aos arames. Disse que o facto de toda a gente se estar oficialmente cagando para mim me justificava a decisão de pôr uma cruz no documento que tinha recebido da SS, apresentei-o na secretaria do tribunal dizendo que tinha obtido advogado mas que não tinha recebido a comunicação do próprio advogado. Neste altura, a funcionária olhou para o papel, olhou para mim e pegou no telefone. Ligou para a SS e disse: «[Ele] não precisa de advogado, precisa de um solicitador de execução!» E assim, com um subterfúgio da minha parte, quando fui finalmente libertado em meados de Outubro do hospital psiquiátrico de Vallis, já tinha solicitador, e até advogado que depois me disse que o caso já não era da sua competência, já tinha risperdal-consta em injecção quinzenal no músculo da nádega, tudo para meu próprio bem segundo todas as autoridades, mas o dinheiro, esse nunca o vi. E também a farsa não acabaria aqui, o solicitador marcou a penhora e disse-me para comparecer, chamou o polícia para estar presente, soube mais tarde que poderia ter pedido uma penhora recorrendo aos serviços judiciais, mas como eu não tinha conhecimento das leis e modos de operar, pediu-me, quando estávamos à porta da empresa, para eu arranjar um serralheiro que arrombasse a porta, o polícia concordou e eu tive que pagar trinta euros a um serralheiro, depois disse que tinha um agente de vendas amigo que se encarregaria da remoção dos bens penhoráveis e respectiva venda, tive que pagar mais cento e oitenta euros sem factura. Removeram-se os bens. Quando mais tarde fui falar com o solicitador, ele disse que o agente de vendas estava incontactável, e desculpava-se, não podia fazer nada, parecia triste. Um ou dois anos mais tarde já eu estava noutro emprego, sou chamado ao palácio da justiça e o novo procurador diz-me que o meu processo vai ser arquivado e que, se eu quiser, posso seguir para a frente com um processo contra o agente de vendas. Ou seja, teria de gastar mais dinheiro para nada, para não receber dinheiro nenhum. Desisti a bem da minha saúde mental. Mais recentemente, tive mais uma confirmação: o nome do solicitador veio nos jornais como sendo acusado de ficar com o dinheiro dos requerentes. A noticia era curta e não dava pormenores, provavelmente teria cúmplices e eu fui apenas um dos que ficou a lerpar. Miséria! Arquivado.
Mas esta foi a bolha financeira. Falta falar da bolha emocional e de como passei eu estes meses antes, durante e depois do internamento.
É preciso recuar mais de um ano até à minha última consulta de psiquiatria. O meu médico informa-me que se vai reformar, que eu vou ficar sem acompanhamento e que os serviços farão todos os possíveis por me atribuir um novo. Eu tenho de ser sincero, nunca tive muito respeito por psiquiatras e sempre me mantive calado o mais possível perante eles. De modo que, em vez de ficar preocupado, vi ali a liberdade. E sendo livre, decidi fazer a primeira confidência a um psiquiatra sobre os motivos pelos quais achava que tinha sido internado pela primeira e todas as outras vezes. Pensei «sendo livre não preciso de ter medo do aumento da medicação, porque ele não vai mais falar comigo, não vou ter ninguém a mandar em mim.» Então contei que a cada internamento, além de outras razões, esteve sempre associada uma mulher, sempre uma diferente e com elas um repetitivo falhanço meu, o de não saber lidar com elas e sentir depois culpa, quase remorso, sentimentos que me levaram ao consumo excessivo de haxixe e ao aumento exponencial da ansiedade, e depois à perda dos empregos por invocação de justas causas, à perda dos amigos e à escrita de um livro. Disse-lhe que misturei nesse livro verdade e ficção, disse que incorporei debaixo do pronome «eu» demasiadas situações que não eram minhas e que senti que o livro distorcido por mim se estava a tornar realidade, que lia comentários nos jornais nas televisões e via lá ressonâncias ranhosas do meu livro que nunca tinha sido publicado por ninguém em formato papel e nem sequer estava terminado.
Aí ele disse «é aí que começa a loucura», quando se começa a suspeitar que estamos aparecendo na comunicação social e sendo famosos ou desprezados, quando tudo não passa de uma ilusão dos sentidos. Disse que talvez eu não fosse esquizofrénico mas apenas tivesse um problema de adaptação, de me ir abaixo, de falhar em situações importantes por ignorância própria ou porque simplesmente «a coisa não tinha de acontecer. E quanto às mulheres…» disse «quem vai à guerra…» Disse também que ia anotar esta informação no meu processo e passá-lo ao meu novo e futuro psiquiatra, que recomendaria baixar a dose de comprimidos e dentro de um ano, após observação positiva, deixaria de precisar deles.
Ou seja, saí da consulta para a liberdade pensando que não era doente, que nunca tinha sido doente e que tinha sido a minha fraca performance que me tinha internado. Comecei a comprar livros de Wilhelm Reich, tratados de psicologia, etc., além disso, eu sempre gostara do romance psicológico e gostava de pensar nos detalhes, de imaginar e compreender cenários de equivalência com a minha própria história, modos de agir que me podiam ser úteis no meu percurso futuro. Agora que saía livre para o mundo estava na altura de me salvar, de me curar, de me compreender nos porquês de ter falhado perante a pressão. 
Então o que correu mal? 
O ficar desempregado, o não ter o meu dinheiro de volta, o continuar a ter uma relação difícil com a minha família, o não ter amigos com quem falar de assuntos com interesse, e acima de tudo não ter nenhuma amiga com quem foder e conversar. Há seis anos que não estava com uma mulher.
Quando comecei a ir à sede do clube de futebol, para tomar café barato e também por os dealers andarem por perto, reparei numa cigana não muito mais nova do que eu mas já com dois filhos e sem marido. Foi, sem dúvida, a beleza das suas curvas o que me atraiu nela e também a sincronicidade da sua cara ser vagamente parecida com a Sônia Braga, de quem eu possuía uma fotografia na capa do disco banda-sonora de uma popular telenovela brasileira. Como ela se dava com todos, eu comecei a dar-me bem com eles, com rapazes com metade da minha idade que me vendiam ganza e a quem eu dizia que me sentia jovem, com a força dos dezassete anos. Mas quando finalmente chegou o momento de a abordar, ela chamou-me de «senhor» e eu vi que nada seria possível entre nós. 
Foi aí que fiquei fodido de vez, o processo no tribunal não avançava, o dinheiro do subsidio não chegava ao fim do mês e tinha que mendigá-lo à minha mãe, o meu pai dizia que eu ia fumá-lo, além de tudo isto, tinha sido recusado por mais uma gaja. Reagi mal, nunca mais falei ou me aproximei dela, apesar de ela parecer ter agora algum interesse. Parecia-me interesse sem amor e eu fui-me abaixo, a fase eufórica terminara e há muito tempo que não tomava a medicação, tinha um novo conflito por causa disso com os meus pais, o novo psiquiatra nunca chegara e já se passara mais de um ano sem acompanhamento. Comecei a brutalizar-me e, do mesmo modo que falsifiquei a resposta num documento e tive alguns resultados, comecei a escrever cartas-bombas no caderno de linhas, com letra que mal se percebia, com palavras obscenas, insultos gratuitos, ameaças ao padre da paróquia, ao director de psiquiatria do hospital de Vallis, aos patrões em dívida, aos meus pais, e a todas as mulheres que me tinham desprezado em algum momento mesmo que também me tenham amado. Comecei a achar, e se calhar com verdade, que nunca tinha sido verdadeiramente amado, que todas elas, pelas quais eu sentia a culpa de as ter deixado e o remorso de estar hoje sozinho, só se quiseram aproveitar do muito que eu lhes tinha oferecido. Comecei a pensar que tinha sido o prostituto que elas tinham usado, comecei assim a demolir todo esse monumento de saudade que tinha construído para, em cima de cada pedestal, colocar uma estátua delas que perdurasse, comecei a insultar a minha própria memória, nada era mais válido, toda a minha vida era uma sucessão de farsas onde tinha sido usado e explorado e jogado para o lixo, a culpa já não era só minha.
Ter a consciência de que a culpa de ser burro na minha história não era só minha e de que, no fundo, «a saudade é uma flor roxa que nasce no cu dos trouxa» como me disse uma amiga recentemente, foi o que me tornou perigoso, comecei a querer vingar-me, a querer fazer mal, fisicamente, bem para lá da palavra escrita. Quando o meu pai me confrontou nas escadas uma tarde, eu chamei-o de paneleiro e levei a mão atrás da cintura para preparar um possível murro. Ele ignorou-me, foi telefonar, voltou, saiu com a minha mãe e irmãs de casa e foi passar a noite fora. «Tomei conta do castelo!» disse eu à minha vizinha no dia seguinte mas no fundo estava fodido, vinguei-me de me abandonarem assim à minha sorte e escrevi nas paredes de casa com lápis de cera dizeres inspirados nas atrocidades do Manson. Com a colaboração do meu cunhado e após uma tentativa falhada de me virem buscar, à noite foi de vez, os bófias conseguiram levar-me e entrava novamente no hospital, outra vez compulsivamente. Agora atribuíam-me psiquiatra, não o fizeram antes, não quiseram prevenir e quem se fodeu é quem sempre se fode: o doente e a sua família. Miséria!
Foi assim que a bolha surgiu e estourou na minha vida pela última vez. Se hoje estou relativamente bem de saúde mental, é porque, em Vallis, conheci uma mulher que também estava internada. Uma mulher que me deu o que eu precisava e a quem eu tentei retribuir, ajudando. Foi ao compreender que havia dores muito piores que as minhas que eu vi que sempre fora um menino rejeitado mas que nunca passara verdadeiramente fome de boca. Agora, eu e ela éramos companheiros de vida e de experiência. Se eu, ressabiado, dissera, no passado, que as mulheres me tinham condenado, era agora uma mulher que me estava a salvar e eu estava a lutar para a salvar a ela também. Não o consegui mas ficou a aprendizagem, fiquei a conhecer o outro lado. Ela salvou-me mas não foi o suficiente para que ficássemos juntos para todo o sempre. Que esteja viva, é o que lhe desejo, é tudo. Quanto à sociedade, paguei a minha dívida mas os cabrões, que ma fizeram contrair, que se fodam com o dinheiro que me ficaram a dever. Paguei a dívida de crescimento e educação para com os meus pais, compreendo o seu modo de vida mas não o aceito, em certos dias especiais os nossos destinos ainda se cruzam. Estou quites com as mulheres, os amigos é algo que desconheço. Não tenho mais internamentos para explicar. Deixo-vos com um palhaçada curiosa e cómica, entre tantas outras: a minha psiquiatra em Vallis perguntou-me se eu me lembrava de ter chamado paneleiro ao meu pai. Eu ri-me, ela era espanhola, e eu disse-lhe que sim, mas que em Portugal, um paneleiro era um homem que consertava tachos, «panelas comprende?» Arquivado.

( continua daqui)

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

My Drawberry profile as a painter under a client's commission

Drawberry.com is a platform where you can order your painting online. 





Desabafo

O mais triste de tudo é não haver sequer comunicação.
Uns chamam esquizofrénicos aos outros enquanto continuam a repetir ao umbigo a ladaínha do «eu descendo de jesus»; outros censuram comentários que não lhe interessam e, em casos mais extremos, desactivam o blogue quando os comentários se tornam incómodos; na maior parte dos casos recorrem à indiferença, simplesmente não respondem a um pedido de comunicação, remetem-se ao silêncio, deixam-me a falar sozinho, porque não dizem, simplesmente, «não gosto, por causa disto e daquilo»?
É como se não valesse a pena trocar ideias comigo, como se eu fosse de condição tão baixa que não mereço uma palavra, como se estivesse a pagar por eventuais erros e palavras no passado, é como se só falassem com os amigos e mais ninguém lhes interessasse.

Talvez só os seus amigos comprem os seus livros e, se calhar, nem esses, porque muitos desses amigos os recebem de graça e por oferta em casa, quando o carteiro toca à campainha. Talvez por causa de terem tão poucos amigos pagantes, se edite poesia com uma tiragem de exemplares cada vez menor.
Depois queixam-se que a poesia morreu. Abortam qualquer tentativa de comunicar e explicar, consideram-se tão grandes, talvez, que acham que a culpa é de quem os lê e não compreende o texto ou não concorda com ele.
Eu só me queixo de não ter pares que me considerem com altura suficiente para com eles trocar ideias.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Tentara recriar a crueldade que conhecera, sem se aperceber de que o mundo ansiava por fazê-lo no seu lugar

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-- Já não está.
-- Não? A tua exposição de carros sinistrados... Ninguém se apercebeu, mas foi isso que encenaste.
-- Com algumas alterações.
-- Sem alterações, Jim. Eu compreendo...
Não pela primeira vez, relacionava o seu último acidente com a minha exposição, implicando que eu servira de catalisador da sua irreflectida maneira de conduzir. No entanto, eu pensava que fora inspirada por ele. Recordava-me das suas deambulações ao volante pelas artérias de Londres, a conduzir da mesma maneira perigosa que experimentara pela primeira vez na longa recta de Moose Jaw até à base aérea. Nos derbies de demolição nos estádios em ruínas do este de Londres, ele e Sally haviam desafiado a morte.
As ruas de sentido único excitavam-nos para jogar numa roleta desesperada. Certa noite, dois anos depois da exposição, David conduzira na direcção errada na faixa para oeste da rodovia de Hammersmith com os máximos acesos para obrigar os carros que rolavam no sentido contrário a encostar à divisória de segurança. Uma violoncelista de meia-idade e o marido, confusos com a sirene do carro da polícia, não conseguiram parar a tempo. Ela perdera a vida, o peito esmagado pelo volante, e somente o comportamento alucinado de David após a detenção e o seu serviço no Quénia o salvaram da acusação de homicídio involuntário.
Em obediência a uma alínea do Serviço de Saúde Mental foi enviado, primeiro, para a unidade de custódia especial de Rampton e depois para Summerfield, a fim de ficar em observação. Seis meses mais tarde, sujeito aos tremores do largactil na sala banhada pelo sol cheia de mulheres em aparente transe e rabugentas, a recordação da morte da violoncelista ainda lhe batia à porta da mente. Eu apenas sentia preocupação por ele e a sua personalidade mais jovem, agora da idade de Henry, que emergira do seu campo de internamento japonês para o mundo do pos-guerra. Ele entendera as minhas necessidades, mas não conseguira interpretar as suas. Tentara, com hesitação a princípio, recriar a crueldade que conhecera na China em guerra, sem se aperceber de que o mundo posterior ao conflito ansiava por fazê-lo no seu lugar. O psicopata era santo.
Quando o visitei pela primeira vez em Summerfield David dissera, ao definir as regras da nossa relação:
-- Lembra-te disto, Jim. O que eu fiz na rodovia foi o mesmo que tu na exposição de carros sinistrados.
Agora as baixas dos anos sessenta regressavam a casa, aos hospitais dos combatentes, estabelecimentos de doenças mentais e clínicas particulares.
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, página 239-240

"A bondade das mulheres"
J. G. Ballard
Edição Livros do Brasil

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Ninotchka

A minha «crítica de arte» arranjou trabalho sazonal.
Está a bulir neste momento.
Estou contente por ela e sinto-me útil por haver ajudado a ela conseguir.
Obrigado mundo.

Festejemos portanto com Tuxedomoon:


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Little Annie sings 'Dear John'



"Dear John" is taken from the forthcoming Little Annie record "TRACE" out on Tin Angel 20.05.16. Featuring Paul Wallfisch

written by Little Annie Bandez/Paul Wallfisch

Film created by C Querci & A Bandez

Produced & Directed by C Querci (https://cquerci.com)

Dance & Choreography by Andrew Braddock (https://braddock.website)

Camera by Kika von Kluck (https://kikavonkluck.com)


lyrics:

DEAR JOHN Little Annie Bandez /Paul Wallfisch Dear John, Dear John, Dear John Don’t you know that the show must go on? How could you forget the first rule of showbiz? Dear John, Dear John, Dear John Well I guess it sounds slightly crazy But I still scan the crowd for your face Convinced you’ll appear before the last note Like a fairytale prince, in the end you’d be here You promised you always would be here No matter the why when or where I still wait to hear it’s all just a hoax You went off the script this was not supposed to happen Dear John, Dear John, Dear John Don’t you know that the show must go on? How could one shot take so many out? Dear John, Dear John, Dear John Oh how I wish you had told us The length and the depth of your woe The width of your shadow, the weight of your cross The breadth of you sorrow, the girth of your illness If only you waited ‘till morning (instrumental) I can’t imagine the agony I can’t bare to think of those last hours spent alone And now all we have is if onlys If onlys is all that we have You left us with one big if only We wake from our dreams just to scream If only if only if only Dear John, Dear John, Dear John Don’t you know that the show must go on? How could you forget the first rule of showbiz? Here is the sound of a million hearts breaking (x3) Dear John, Dear John, Dear John


O último grito nas ruas do Porto


segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Desemprego e final de má-disposição

O meu terceiro internamento hospitalar foi também o meu primeiro internamento compulsivo. Eu andava doente embora achasse que estava mais lúcido que o mundo à minha volta. Quando me pré-inscrevi num curso de programação php num centro de formação de Derza, uns meses antes, não estava doente, estava apenas deprimido e desempregado. Olhava por mim abaixo e punha-me a pensar nas minhas habilitações profissionais, tinha o canudo do curso superior, isso dizia-me que era engenheiro. Mas eu reflectia seriamente que a pouca coisa que, de facto, sabia era desenvolver aplicações multimédia em formato cdrom. Habilidade que desenvolvera nos trabalhos anteriores, habilidade que se ia tornando obsoleta com o implantar massivo da rede online. Pouco sabia de web e decidi aprender programação php, para, quem sabe, poder encontrar emprego nesta área que já era futuro a explodir. Foi neste espírito que me pré-inscrevi, para que pudesse ter um futuro profissional na minha área de estudos. Ao mesmo tempo ia fazendo desenhos e aperfeiçoando o meu pintar, ao mesmo tempo ia sempre ao café ler o jornal e procurar empregos no «procura-se», o que eu queria na realidade era um trabalho e não me importava a área, queria trabalhar e ganhar dinheiro, sustentar-me, ter a minha casa, e de noite deixar dormir em paz os meus pais no quarto ao lado, queria ter uma vida. Como nos dois últimos anos tinha trabalhado parcialmente mas tinha ganho um salário acima da média e, após desistir ao fim de quinze dias de uma estadia de quinze dias de aprendizagem numa fábrica de reparação de telemóveis, cheguei à beira dos meus pais e disse-lhes que tinha arranjado uma casa de bairro para viver. Eles não gostaram da ideia mas eu levei-a avante, pois podia do meu bolso pagar a renda, o senhorio fizera-me um contrato e pusera um fogão na cozinha e eu assim regressei à cidade onde nascera vinte e nove anos antes. A cidade na qual eu sonhava viver escondido no meio da multidão e pintar e ganhar dinheiro. 
Então se tudo era sonho bom porquê dez meses mais tarde estar a ser internado compulsivamente? Quinze dias antes, estivera com a minha mãe numa urgência psiquiátrica a falar com a minha primeira psiquiatra, fora ideia da minha mãe, eu estava actualmente sem acompanhamento e sem tomar os comprimidos, e a verdade é que ela não podia fazer nada por mim, porque eu estava na fase ascendente, eufórica, cheio de comunicabilidade, debitando discurso de quem lia e lançava ideias para o ar, uma delas foi eu dizer que o meu próximo internamento seria compulsivo, disse-o a rir pensando no filme Lilith, onde o assistente de psiquiatria Warren Beatty se apaixonava pela louca Jean Seberg e, no final do filme, pedia, ele-próprio, para o internarem. Para mim, compulsivo era isso, uma pessoa pedir para a internarem, sentir compulsão em se tratar. A doutora riu-se, não sei se lhe falei realmente deste filme, mas a última frase que ela me disse nessa noite de urgência foi «se calhar, tem razão, o texto está escrito!» e esta frase entrando na mente de um esquizofrénico, que não se considerava doente, foi mais uma acha para a fogueira de ideias continuamente a me virem ao pensamento, uma acha entre tantas outras intuições de que o meu mundo era vigiado, e que eu próprio vigiava, sempre na desportiva, se ia na rua e via um homem num telhado em frente imaginava um sniper, ria-me e roubava um Jornal de Letras do quiosque sem qualquer problema ético, sempre que via na televisão os debates da onu sobre a futura segunda guerra do golfo e reparava que os participantes usavam auscultadores nos ouvidos, eu punha a tocar no leitor de cd música surrealista, porque, em vez de entender que os auscultadores eram a tradução dos discursos, pensava que eles eram janelas de entrada para o som da minha aparelhagem e que assim eu estaria a interferir no debate e a foder os nervos àqueles palhaços que falavam sobre armas de destruição maciça. Ou seja, eu vivia em feedback com o mundo e qualquer frase captada pelos meus ouvidos, fosse na televisão, fosse o Syd Barrett no leitor de cd a interromper-se falando nas diversas takes de voz e guitarra, fosse uma frase lida, fosse um concurso solitário de punhetas de madrugada a ver as modelos de cabeleireiro nos anúncios das televendas, tudo isto contribuía para o cavalgar da psicose, para me fazer sentir se não dono do mundo, pelo menos alguém importante, que tinha a sua palavra a dizer e que ninguém podia ignorar. 
O copo entornou-se quando finalmente fui chamado para começar o curso e reparei que a maioria dos alunos eram mulheres, uma coisa estranha em engenharias informáticas, e a maior parte vinham de letras ou artes, entre outras peculiaridades naquela saula de aula. Comecei a achar que o curso era uma farsa e comecei a disparatar. Habituado a falar alto em casa comigo próprio, comecei a debitar discurso e a perturbar as aulas, fui chamado para falar com os responsáveis pelo curso, ao fim de uma semana chamaram a polícia. Numa manhã de sexta-feira, saí como um senhor a quem davam boleia e fui conduzido a uma esquadra a três ou quatro km de distância e, incrivelmente, dentro do posto lembrei-me de dizer «então já posso ir embora?», eles disseram que sim e eu vim-me embora a rir-me e a dizer «que palhaçada!». Caminhei a distância até ao centro de formação. Ás duas horas da tarde não me deixaram entrar e como eu me recusasse a abandonar as instalações, chamaram de novo a bófia e levaram-me à urgência, médicos e polícias a tocarem-me, a tirarem-me os cigarros, etc, eu a contorcer-me no chão para eles me deixarem em paz, saí directo para o hospital central psiquiátrico onde me largaram na solitária com uma injecção no cu para dormir e sem um penico para mijar. Começou assim o meu internamento compulsivo e, apesar de só depois o ter percebido, foi a autoridade que sentiu compulsão em me internar, o que me fez pensar na ironia das palavras. Já nos dois internamentos anteriores, a solitária tinha o título de sala IQ, como se nela se testasse o coeficiente de inteligência e só os mais aptos lá entrassem, uns brincalhões estes funcionários da autoridade mental. 
Estive seis semanas internado com o meu caso em julgamento, foi-me concedido um advogado que nunca me deixaram ver ou ele nunca me quis visitar e quando foi tempo de sair, disseram-me que tinha de levar uma injecção e assinar a dizer que autorizava a injecção. Recusei porque me lembrei do estado em que a outra, três anos antes, me deixara. Foi marcada a audiência em tribunal mental para julgar a minha situação. Não fui convocado para o meu próprio julgamento. Can you believe? Foram os meus pais interrogados por mim e a sentença foi decretada: a minha mãe ficou de me dar cinco euros por dia e o meu pai pagar-me a renda, além disso, preencheram-me os papéis para o rendimento mínimo e para um curso no centro de desemprego. Quanto a mim, na consulta seguinte, já novamente deprimido aceitei tomar a medicação em comprimidos e os médicos escreveram um relatório que enviaram para o tribunal a recomendar a substituição do tratamento compulsivo por tratamento de ambulatório voluntário, a diferença é que se não fosse à consulta por qualquer motivo, a polícia não viria buscar-me para me levar ao hospital.
Caiu-me mais uma vez a realidade em cima, podia ter esperneado mas nunca deixara de ser um zé-ninguém.
Passei os três anos seguintes integrado em cursos de formação em informática onde a maioria dos formandos parecia estar de férias ou em trânsito para outro lado: havia professores de educação visual, economistas e contabilistas, até realizadores de cinema e engenheiros formados para quem aquelas aulas eram um passatempo e sabiam mais que os formadores. Um destes, por exemplo, formador de linux punha-nos a jogar jogos em linux e depois incomodava-se quando nos testes alguém copiava, os directores do centro privado de formação organizavam lanches com catering de comida e bebida no espaço traseiro e nos confiavam que dentro de pouco tempo iriam começar as obras de ampliação das instalações, e eu alienado no meio daquilo tudo, de nada aprender porque toda a gente parecia estar apenas importada com o subsídio de formação ao fim do mês e com o destino das férias em perspectiva… eu… a coisa mais interessante que experienciei foi o verniz das unhas dos pés de uma colega. O restante era a pasmaceira de dinheiro roubado, um negócio da cee e programas operacionais da treta, agora diz-se negócio da china o dinheiro desbaratado em cursos onde ninguém aprende nada além de cusquices e, às vezes, namoricos. Fartei-me de vez, chegaram a telefonar-me para repetir o mesmo curso, deviam precisar de numerus clausus para poderem obter financiamento. Recusei envolver-me em mais outra fraude e disse que tinha sido admitido na universidade, num curso de pós-graduação de dois anos. Mais uma fuga em frente. Podia ter escolhido design mas como não gostava pessoalmente de alguns professores, escolhi matemática aplicada porque me lembrava de que esta tinha sido uma cadeira que me entusiasmara na minha anterior licenciatura. De um momento para o outro, dei por mim a assistir a aulas de Lógica e Geometria Diferencial e a sentir-me um burro num palácio, deixei de ir às aulas e comecei a frequentar a biblioteca municipal, acrescentei ao meu sentido de perdição, a perdição do Leverkhun, a personagem que enlouquece em 'O doutor Fausto' de Thomas Mann. Acabei expulso por excesso de faltas e a bolsa foi-me cortada. 
Voltei a Derza para o ninho familiar. Arranjei um emprego em que me declaravam engenheiro num contrato sem termo mas ganhava apenas o salário mínimo, o meu trabalho consistia em introduzir dados roubados nas páginas web de outras empresas no sistema administrativo web do nosso futuro site de empresa. Foi aqui que voltei à tona de água, apesar de a empresa se ter revelado mais uma fantochada de apoios públicos à contratação, à compra de material informático, ao financiamento de projectos que não saíam do papel, porque os sócios-gerentes que decidiam e organizavam o nosso trabalho diário, estavam mais interessados em fumar ganza os dois no sótão e a comprar carros para a empresa. Voltei à tona de água porque finalmente tinha um contrato de trabalho seguro, pastava a mula sem nada fazer das 10h às 18h30m, e podia eu próprio dedicar-me à noite às minhas pinturas no Anexus 51 nas traseiras da casa familiar. A boa disposição voltara. Além disso, surgira uma oportunidade de expôr pela primeira vez. O meu rumo até então em ziguezague começava a encontrar o seu norte.

( continua daqui )

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O talento de Frank Zappa para a javardice

Wowie Zowie 
o teu amor é um deleite
Wowie Zowie
ninguém te passa para trás
Wowie Zowie, bebé
és tão simples
eu nem me importo
se tu depilas as pernas

Wowie Zowie, bebé
és tão fixe
Wowie Zowie, bebé
por favor, sê minha
Wowie Zowie
acima e abaixo da minha espinha
eu nem me importo
se tu lavas os dentes

Sonho contigo todas as manhãs
sonho contigo todas as noites
aliás no outro dia fiquei tão agitado
sonhei contigo durante a tarde

Sonho contigo todas as manhãs
sonho contigo todas as noites
aliás no outro dia fiquei tão agitado
tive um flash durante a tarde

Wowie Zowie, bebé
gosta de mim
Wowie Zowie
eu gosto de ti também
Wowie Zowie, bebé
serei verdade
eu nem me importo
se o teu pai é fogo

Wowie Zowie 



quinta-feira, 6 de outubro de 2016

As musas da minha família


Desenho a lápis de grafite sobre tela
ZMB 2016

As minhas musas este mês para pintar a óleo.

Diz a minha «crítica de arte» actual que
este desenho tem algumas deficiências,
Afirmo que serão resolvidas o mais possível e
de acordo com a minha capacidade de trabalho.
É sempre bom ouvir segundas opiniões, permite valorizar o trabalho final.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Iccata, a grega


'Iccata, a grega'
óleo sobre tela
40cm por 50cm
2001 - 2016
ZMB

Quando este ano decidi melhorar esta pintura,
retirei alguma inspiração num quadro de Eduardo Nery
e depois também em 'O livro dos seres imaginários' de Borges
onde descobri que, na Grécia, as esfínges são aladas.
Como o Egipto foi governado pela Grécia, resolvi colocar asas na minha esfínge. 



quadro de Eduardo Nery:


Iccata começou por ser uma felina egípcia que se transformou numa esfínge.
A ideia do chapéu é retirada do livro e filme 'A insustentável leveza do ser'.
O chapéu de Iccata é o chapéu de Sabina. 
Iccata começou por ser a Sabina com quem eu via filmes em vídeo e falávamos sobre literatura.
Era e, apesar de com ela não ter mais contacto, deve ser ainda muito bonita apesar da idade.
Na altura tentava conquistá-la com o intelecto. Era correspondido ao nível platónico.
Éramos amigos sem a parte sexual, embora certamente pensássemos nisso quando,
por exemplo, ela vinha e eu lhe mostrava o que escrevia e lhe cozinhava um esparguete com costeleta
e ela se lembrava também de malmequeres oferecidos.
Mais tarde, tentei a minha sorte sexual. 
Ela repeliu-me sem qualquer explicação pronunciada, dizendo apenas «não desapareças»
E eu desapareci sem lho dizer e voei sobre o oceano para uma nova experiência de trabalho,
mais tarde vim a saber que ela telefonara para casa de meus pais, enviara emails com cartas,
parecia que afinal eu lhe fazia falta.
Como Iccata nunca foi minha de verdade transformei-a num mistério egípcio, 
uma espécie de musa que transformei em deusa 
quando a minha condição psicológica atingiu um ponto crítico.
Nessa altura, tentei que a memória que tinha do passado pudesse voltar ao tempo presente,
pensei que podia «matar» um amor antigo com outra mulher não nova mas antiga, 
apegando-me à sensação de bem-estar que havia tido com Iccata no passado.
Fiz o que ela me havia feito: escrevi-lhe cartas e emails que foram correspondidos,
chegámos a fazer planos de viagem.
Tudo foi interrompido porque paralelamente fui internado uma nova vez
e entrei em depressão pós-internamento.
Durante anos não nos vimos. Depois voltámos a ver-nos.
Ela continuava bonita mas eu senti que já não a acompanhava,
ela falava-me de escritores croatas e eu nada sabia, nada tinha para contar.
Depois, as palavras trocadas tornaram-se raras.
E eu tive um momento desagradável: 
despeitado por as suas respostas já não terem a rapidez de antigamente, 
escrevi-lhe umas palavras desagradáveis às quais ela respondeu com a sua firmeza.

A distância de segurança que ela introduziu entre nós mantém-se até aos dias de hoje,
não há simplesmente contacto.
O meu erro foi pensar que Iccata era uma cristalização do passado, 
esqueci-me que as pessoas evoluem e fazem escolhas,
ela fez a escolha de me ignorar, não foi a primeira mulher a fazer-me o mesmo.
Da minha parte, não pretendo pedir mais desculpas a pessoas 
que já não querem mais a minha presença.
Cheguei à conclusão que não preciso mais de mendigar carinho ou atenção.

Fica este quadro como memória.

(fotografia de época)



«O que é que pode resolver as coisas?»
«Ela. O desejo de viver que houver nela.

'
«A Lucinda tinha perdido o sorriso à força de pálida», explicou o homem. «E então virou-se para mim e respondeu. 'Então ao menos saiba o que eu tenho calado.' E eu disse: 'E o que é isso?' E ela contou que havia bastante tempo que abastecia a mulher de comprimidos e supositórios comprados em farmácias diferentes, e que 'A senhora sempre que me manda fazer recados dessa natureza diz-me não digas nada a ninguém e muito menos ao senhor.' E o homem contou ao psicanalista como, ouvido aquilo, sentira uma espécie de estrondo silencioso dentro dele. E ficara especado diante do olhar triunfante da Lucinda como uma lebre encadeada pelos faróis dum jeep. A verdade (a descoberta da verdade) entrara nele como o calor de um banho muito quente em que o corpo nu é mergulhado sem preparação nenhuma. E ele conseguira pôr-se a caminho da porta da cozinha. E ao chegar à porta, dissera sem se virar para trás: «Lucinda, tu tens vinte e quato horas para saíres daqui como o que a lei manda pagar em caso de despedimento sem justa causa.»
«E depois?»
Depois o homem telefonara ao tal médico que fora a única pessoa a quem até então ele falara no comportamento bizarro da mulher. Fora informado de que a mulher deixara de contactar tal médico havia mais de três meses. Esta informação originara novo espanto desagradável no homem, porque a mulher dizia-lhe regularmente que ia ao consultório, e o dinheiro das consultas saía da gaveta comum. O homem narrara então ao médico a cena com a criada, e o médico dissera que estava ao corrente do vício da mulher.
«Eu perguntei-lhe: 'Porque é que não me avisou? E ele disse: 'Era segredo profissional'. E eu disse: 'E quando ela deixou de ir ao consultório?' E ele disse: 'Continuava a ser segredo profissional'. Nessa altura eu senti-me verdadeiramente perturbado, porque é preciso que eu lhe explique uma coisa: quando a minha mulher e eu decidimos casar, combinámos que esse casamento teria para nós o sentido de um pacto: entre outras coisas, cada um de nós nunca mentiria ao outro e estaria à vontade para pedir a ajuda do outro em qualquer sarilho que fosse, sem vergonhas. E de um dia para o outro eu encontrava-me a partir a compostura de encontro a segredos profissionais de médicos e criadas.»
«E depois?», perguntou o psicanalista.
«Depois veio outro médico. Havia clínica, tratamento de sono, mais clínica. Durante o tratamento de sono levantou-se da cama sem saber onde estava, e andou a vaguear pelos corredores aterrada de espanto. Acabou por se meter na cama doutro quarto e ainda para mais borrou-se nela, e por fim a enfermeira tratou-a vigorosamente mal. Este género de coisas são todas bastante horríveis, ou pelo menos acho assim. E depois toda a gente começou a não suportar estar com ela, a começar pelos que gostam mais dela. Quando a vão visitar fazem esforço como quem vai ao dentista e ela parece que não dá por isso mas dá. Só que nunca fala dessas modificações. Hoje em dia está mais só do que o último moicano no Polo Norte à meia-noite polar.»
O homem calou-se para engolir um copo de água e disse:
«Neste momento está numa clínica, entrou ao meio-dia.»
«De livre vontade?»
«De direito sim. De facto, à força.»
Pequeno silêncio.
«Afinal já sei o que queria perguntar-lhe», disse o homem.
«C'est-a-dire?»
«Quer dizer: E DEPOIS?»
O psicanalista soriu. «Este alcatifas sorri como um polvo amanda ferrado», pensou o homem. Sentia uma nascente simpatia pelo outro, pressentia-o nadando fora das comuns correntes da linguagem.
«Oiça», disse o psicanalista. «Mesmo que ambos quiséssemos eu não podia ocupar-me da sua mulher. E não lhe posso dar senão uma vaga opinião.»
Desta vez foi o homem quem sorriu: «A minha opinião acerca deste assunto é a coisa mais vaga de todas as coisas vagas», disse ele. «Estou como um soldado francês na campanha da Rússia, ignoro tudo excepto que faz frio e muito russo.» Depois que disse isso, o homem pensou: «Por que raio fui eu buscar a campannha da Rússia?»
O estrangeiro começou a interrogá-lo. As perguntas incidiam fundamentalmente sobre os pais da mulher, sobre os irmãos da mulher. Pelas perguntas o homem acabou por entrever que o outro estava a tentar saber alguma coisa sobre o modo de ser dessas pessoas, e sobre o modo de ser da mulher com elas. Depois foi a vez dos modos do pai dele, dos dele com os pais e dos da mulher com os sogros. «Isto parece uma revista de modos», pensou o homem.
«Olhe», disse o psicanalista ao fim das perguntas todas. «Eu só poderia ter uma opinião um bocado fundada depois de um tempo útil de análise da sua mulher. Nas condições em que nos encontramos, só posso dar-lhe a minha opinião acerca do que você me disse. Seria desumano deixá-lo partir sem lhe dizer nada, mas repare bem: eu disse: uma opinião sobre o que você me disse.»
O estrangeiro falou durante alguns minutos. O homem escutava muito atentamente.
Quando o psicanalista se calou, o homem perguntou-lhe:
«E o que é que você acha que se deve fazer?»
Muito leve encolhimento de ombros.
«Um psicanalista dirá sempre que a análise às vezes pode ser útil. Dirá também que quase sempre vêm ter connosco quando tudo o mais não resultou. Quer dizer, quando todos os erros possíveis foram cometidos. No caso da sua mulher, parece-me de dizer que nem internamentos nem policiamentos resolverão as coisas.»
«O que é que pode resolver as coisas?»
«Ela. O desejo de viver que houver nela.
«Não sei por onde é que anda esse desejo», disse o homem. «Hoje em dia. Não sei de todo onde é que ela o escondeu.»
'

,página 122-124

"Directa"
Nuno Bragança
edição Planeta deAgostini 2000

domingo, 2 de outubro de 2016

Henrique e tio Rui


'Henrique e tio Rui'
óleo sobre tela
40cm por 30cm
2016
ZMB

Futura prenda de natal.
Dedicado ao meu sobrinho.

sábado, 1 de outubro de 2016

Maldito seja o sol



God Damn the Sun - Michael Gira

from the album 'Songs for a dog'

Lyrics:
When, when we were young
We had no history
So nothing to lose
Meant we could choose
Choose what we wanted then
Without any fear
Or thought of revenge
But then you grew old
And I lost my ambition
So I gained an addiction
To drink and depression
(they are mine
My only true friends
And I'll keep them with me
Until the very end)
I'd choose not to remember
But I miss your arrogance
And I need your intelligence
And your hate for authority
But now you're gone
I read it today
They found you in Spain
Face down in the street
With a bottle in your hand
And a wild smile on your face
And a knife in your back
You died in a foreign land
And they found my letter
Rolled up in your pocket
Where I said I'd kill myself
If she left me again
So now she's gone
And you're both in my mind
I've got one thing to say
Before I am drunk again:
God damn the sun
God damn the sun
God damn anyone
That says a kind word
God damn the sun
God damn the sun
God damn the light it shines
And this world it shows
God damn the sun