sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

A tarde cairá...

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Não tive coragem suficiente para contornar a mansão e chegar ao outro lado. Certamente seria visto por alguém. Porque tenho então a impressão de já ter estado lá há muito tempo? Será que, no fundo, não conhecemos de antemão todas as paisagens que encontramos na nossa vida? Será que, de facto, ainda pode acontecer algo totalmente novo, que não seja pressentido com muita antecedência, no fundo dos nossos reservatórios? Sei que um dia, numa hora tardia, estarei lá, na entrada dos jardins, ombro a ombro com Bianka. Entraremos nesses recantos esquecidos, onde entre muros antigos estão enclausurados parques envenenados, os paraísos artificiais de Poe [*], cheios de cicutas, papoilas e convolvuláceas entorpecentes, ardentes sob o céu cinzento de frescos muito velhos. Vamos despertar o mármore branco da estátua de olhos vazios adormecida nesse mundo marginal, além dos limites da tarde murcha. Espantaremos o seu único amante, um vampiro vermelho que dorme com as asas pousadas no seu seio. Ele voará silenciosamente, macio, fluido, ondulando com os seus restos exânimes, imateriais, sem esqueleto e sem substância e, girando e batendo as asas, há-de dissolver-se no ar entorpecido. Entraremos por uma pequena porta numa clareira deserta. A vegetação estará queimada como fumo, como as pradarias no fim do Verão índio. Isso será talvez em Nova Orleães, no Louisiana -- afinal os países são apenas pretextos. Sentar-nos-emos na borda de pedra de um açude quadrado. Bianka molhará os seus dedos brancos na água morna, cheia de folhas amarelas, sem erguer os olhos. Do outro lado do açude sentar-se-á uma figura negra, delgada, toda coberta. Perguntarei sobre ela murmurando, e Bianka, acenando com a cabeça, responderá silenciosamente: -- Não tenhas medo, ela não ouve, é a minha mãe morta que mora aqui. -- Depois ela dir-me-á as coisas mais doces, as mais silenciosas e mais tristes. Não haverá nenhum consolo. A tarde cairá...
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[*] O autor de Paraísos Artificiais, livro sobre as sensações provocadas pelos narcóticos, é Charles Baudelaire (1821-1867). Baudelaire foi tradutor de Edgar Allan Poe (1809-1849), conhecido sobretudo pelos seus contos fantásticos.

, páginas 83-84

'Sanatório sob o signo da clepsidra'
Bruno Schulz

tradução de Henryk Siewierski
adaptação da tradução Patrícia Guerreiro Nunes
edição Edições do Tédio


terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Quando ao romper da manhã se fazia ouvir a sineta do seminário

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Quando ao romper da manhã se fazia ouvir a sineta do seminário, suspensa à entrada do Convento da velha cidade, começavam a acorrer ao seu chamamento sonoro grupos de estudantes -- gramáticos, retóricos, filosóficos, teólogos -- vindos de todos os lados. Os gramáticos, ainda de tenra idade, empurravam-se uns aos outros e insultavam-se em voz de falsete. Normalmente tinham os fatos sujos e rotos, com as algibeiras transbordando de inúmeros e variados objectos: ganizes, apitos, côdeas de pão e até mesmo pardais, cujo piar indiscreto, quebrando por vezes o silêncio sagrado da aula, atraía sobre os seus possuidores uma chuva de palmatoadas e de vergastadas. Os retóricos, é claro, tinham um ar mais grave. Se, por um lado, o seu vestuário estava virgem de manchas, os rostos não o estavam: olhos negros, lábios pisados, orelhas derribadas. Os filósofos, por sua vez, falavam um oitava abaixo, e nas algibeiras apenas guardavam restos de tabaco. Nunca faziam reservas de alimentos, preferindo devorar imediatamente tudo o que o acaso lançava sob as suas mãos ávidas. Exalavam um tal cheiro a tabaco e aguardente que as pessoas, ao cruzarem-se com eles na rua, se detinham a cheirar o ar, como o cão de caça que fareja a presa.
A esta hora matinal o mercado começara há pouco e as vendedoras de biscoitos, de pão, de pevides, de bolos, agarravam-se às abas dos casacos dos estudantes mais bem vestidos.
-- Venha cá, meu senhor, venha cá! -- gritavam todas à uma. -- Olhe os bons biscoitos torradinhos, os pãezinhos finos bem cozidos, as frituras frescas.
-- Comprem-me os caramelos, senhores -- gritava uma, brandindo uma espécie de trança comprida, feita de alteia.
-- Não lhe comprem nada a ela -- clamava a vizinha. -- Não vêem como ela é feia? Tem um nariz que mete medo! Pfff!
Contudo, todas elas tinham o cuidado de não incomodar os filósofos e os teólogos, pois sabiam que estes descarados, sem nunca comprarem nada, procuravam sempre provar de tudo com abundância.
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página 99-100

'A cidade do sossego' e 'O capote'
Nicolau Gogol

tradução de Ana Féria e A. Nogueira Santos
edição livros de bolso europa-américa

The rose



https://www.discogs.com/Towering-Inferno-Kaddish/master/175114


Towering Inferno's Kaddish has slowly gathered acclaim as one of the most interesting rock-influenced experimental recordings of the mid-'90s; Brian Eno, for instance, has referred to it as the most frightening record he's ever heard. Towering Inferno are the British duo of Richard Wolfson and Andy Saunders, who are principally responsible for the composition of Kaddish (with some additional material from other sources), and also for much of the programming, keyboards, and guitars. British prog-rock vets Elton Dean and John Marshall (ex-Soft Machine) and Chris Cutler, as well as Hungarian folk singer Marta Sebestyen, also add important contributions to this 75-minute concept album of sorts, inspired by the horrors of the Holocaust. Rabbinical chants, hard rock/heavy metal guitar, ambient synthesizer, and Eastern European folk singing are all elements of an ambitious palette which gets its disturbing message across without sounding pedantic. Wolfson and Saunders have presented Kaddish as a mixed-media performance as well; originally released in 1994, it was picked up by Island for larger distribution, and issued in the U.S. in 1996. Wolfson and Saunders have something quite different in mind for their next project, which they described in the British magazine Record Collector as "a light-hearted, fun, post-rave kind of B-movie affair. The ostensible subject matter of "Kaddish" -- the Holocaust -- is in fact just the building material with which this collage was constructed. It is not so much ABOUT the Holocaust as it is an auditory artwork which stands alone. It helps of course to appreciate the gravity of some of the source material, but I don't agree with Amazon's contention that a libretto would be advantageous. Quite the opposite, I think it would limit the listeners' interpretations. Wolfson (R.I.P.) and Saunders utilize several styles of music (rock, jazz, liturgical, folk, deep space electronics) as well as recordings of Nazi and Jewish speakers, crowd noises and various other sounds. The term "collage" isn't really appropriate I guess, because "Kaddish" is arranged into a series of musical vignettes, many with no sound effects over the top at all. It is this wide-ranging, unclassifiable character which makes "Kaddish" so difficult to pigeonhole, or summarize, or remember clearly. It is also what makes it endlessly fascinating. East-German composer Georg Katzer made a collage in 1983 entitled "Aide Memoire" which contrasted Hitler's speeches and Reichstag rhetoric with Jewish folk music and popular music of the 1930s. "Kaddish" can be seen as the more-musical


Acetaminophen



https://www.discogs.com/The-Astonishing-Urbana-Fall-Acetaminophen/release/2211431

Eram de Vila do Conde. Agoram gravam em Barcelos e são aclamados com o nome de
Sensible Soccers, o seu último álbum de nome Aurora tem sido falado. Procurem.

domingo, 26 de janeiro de 2020

Para a Ana Guru, uma boa alma

Como se a Terra corresse Inteirinha atrás de mim O medo ronda-me os sentidos Por abaixo da minha pele Ao esgueirar-se viscoso Escorre pegajoso E sai Pelos meus poros Pelos meus ais Ele penetra-me nos ossos Ao derramar-se sedento Nas entranhas sinuosas Entre as vísceras mordendo Salta e espalha-se no ar Vai e volta Delirante Tão delirante É como um sonho acordado Esse vulto besuntado A revolver-se no lodo A deslizar de uma larva Emergindo lá no fundo Tenho medo ó medo Leva tudo é tudo teu Mas deixa-me ir Arrasta-me à côncava do fundo Do grande lago da noite Cruzando as grades de fogo Entre o Céu e o Inferno Até à boca escancarada Esfaimada Atrás de mim Atrás de mim É como um sonho acordado Esses olhos no escuro Das carpideiras viúvas Pelo pai assassinado Desventrado por seu filho Que possuiu lascivo A sua própria mãe E sua amante Meu amor quando eu morrer Ó linda Veste a mais garrida saia Se eu vou morrer no mar alto Ó linda E eu quero ver-te na praia Mas afasta-me essas vozes Linda Tens medo dos vivos E dos mortos decepados Pelos pés e pelas mãos E p'lo pescoço e pelos peitos Até ao fio do lombo Como te tremem as carnes
Fernão Mendes

esqueçam a Amália,
a verdadeira música tradicional é a do Fausto!

sábado, 25 de janeiro de 2020

October Music : Star Showers And Extraterrestrials



https://www.discogs.com/Joan-La-Barbara-The-Art-Of-Joan-La-Barbara/release/655732

Joan La Barbara (b. 1947, Philadelphia), dubbed "the reigning vocal wizard of the avant-garde," is a composer/performer, media artist, writer and internationally-acclaimed pioneer in the field of experimental and extended vocal techniques. In "rediscovering" the voice, expanding the sonic vocabulary of this highly flexible instrument, she creates works that explore new territory, blending with other instruments or creating an orchestra of voices through multi-layering. (...) In addition to her own innovative work, she is well-known for premiering compositions written for her by noted contemporary composers, among them, John Cage, Charles Dodge, Morton Feldman, Philip Glass, Alvin Lucier, Mel Powell, Steve Reich and Morton Subtonick.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Suicídio, o sonho e o exorcismo lava-cabeças

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Lembro as palavras que deixo escritas numa folha dentro da cassete de vídeo que lhe deixarei postumamente, traduzo essas palavras aqui: o desejo é por vezes a nossa necessidade de partilhar. Por vezes, somos refugiados. Outras vezes, somos crianças. Muitos de nós nasceram com missões a cumprir. Há sentimentos que precisam de ser exorcisados, movem-nos na direcção da falta de ou do excesso de consciência e de capacidade de processar informação. Para exorcisar o nosso espelho, para chegar a termo com ele, para agarrar esta cabeça rapada, este pescoço a precisar de uma lâmina romba, precisamos de agir de maneiras por vezes surreais, por vezes pós-modernas. Eu nunca devia ter existido. Transformei o meu ser durante um processo de realidade, senti-me num sonho vagueando e perguntando por estantes e jaulas e janelas de madeira podre, eu contra uma mesa pé-de-galo num centro comercial empedrado e cheio de pessoas brancas em plástico dizedo adeus às janelas. Repito-me. A vida já não é erógena. Estou cheio de poesia. Fui-me. Sou incapaz de viver.
Após estas palavras saio de casa, anódino e amoníacal, por volta das cinco horas para ir à biblioteca entregar dois livros sobre a Bauhaus. Ainda a vejo e eu sei que ela me viu mas nem eu nem ela nos quisémos ver e apressado fui e apressado chego de volta a casa. Coloco tudo em ordem no meu quarto. Deito tudo fora, escondo tudo o que não deverá ser visto e deixo à mostra tudo o que quero entregar. Por volta das seis horas, saio de casa debaixo de chuva em direcção à estação de comboios.
Um dia imaginei este evento, seria ao início da tarde no pico do sol sobre o céu limpo. A avenida deitaria as cartas tentando adivinhar, a sua pose seria calma e solitaria.
O ceu começa a escurecer. Não há nada de estranho neste fim de tarde. As pessoas caminham apressadas em direcção a casa após o emprego. Outros tropeçam em sentido contrário. Os carros fazem ponto de embraiagem nos semáforos e dão piscas à esquerda. Não olho para nada nem para ninguém. Sempre em frente.
Gosto em especial dos prédios antigos e das casas caiadas. Associo-as aos contos de Mário de Sá Carneiro, aos minaretes e telhados do além e à mulher impossivel. Apetece-me prestar homenagem a um pequeno salão de chá recatado. Chama-se SemNome. Desde as senhoras de meia-idade, que tomam meias de leite com torradas e conversam com dignidade sobre as suas ocupações diárias, até aos pequenos pares de estudantes que lêem o jornal diário ao mesmo tempo que estudam os testes dos anos anteriores. Lembro-me de parar num quiosque para comprar o jornal de música que na capa traz uma banda emergente na cena subterrânea: os Astonishing Urbana Fall. Continuo a andar sem olhar para ninguém pois não tenho qualquer interesse em ver ninguém, só eu, o jornal e o saco. Se parar, talvez mude de ideias.
Vou-me apercebendo que, ao longe, um pobre diabo pede qualquer coisa às pessoas, ou melhor incomoda-as, tenta falar-lhes sem êxito. Quando passo por ele esboço um ar de compreensão mas nem sequer abrando. Sigo em frente pensando que me identifico de certa forma com ele, lembro-me igualmente que é mais lúcido oferecer a cana de pesca que o peixe. Às vezes, em vez de se dizer a uma mulher que se não a ama oferecem-se pequenas frases pessoais com algum significado pertinente no momento em que foram escritas dizendo-lhe: olha, mostro-te tal como sou, antes que me conheças para ver se me aceitas e isso te incite a lutar por algo só teu. Estou convencido de ser infeliz por ser humano e ser incapaz de sequer conceber que posso errar. Considero-me inferior, um ser aspirando a ser uma máquina estável, a ser científico, amoral, recuso qualquer tipo de ajuda.
Quando chego à estação, compro o bilhete só para metade do caminho pois alguém poderá dizer: olha, ali vai um jovem torturado. Tento dissimular que todo o meu eu treme.
O meu filme continua. O sol esbranquiça os azulejos das paredes da estação dando-lhes a qualidade onírica de uma fotografia sobre exposta. Invejo os artesãos locais, invejo-os por serem capazes de continuar a lutar contra o sistema. Não poderei em teoria afirmar viver segundo sistemas mas, ao negá-los, estou a seguir um sistema que julgo só meu.
No comboio, tento permanecer calmo relendo A queda de Camus, lendo o jornal, revendo as paranóias, voltando a elas sempre sem descanso. Faz parte do ritual voltar ao rodopio e recusar sobre o túnel da covardia a realidade de me sentir uma personagem de filme.
Observo no compartimento da frente um casal constituído por um homem de cerca de sessenta anos, olhar duro e cabelos brancos, avô de uma menina de talvez seis anos que usa um vestido branco qual anjo louro, ela dança na divisória para fumadores, em frente das nuvens agarrando o varão como uma pinup, canta uma melodia infantil dizendo: eu não quero viver... eu não quero viver...
Talvez tenha sonhado isto tudo mas começo a perguntar-me outra vez não pelos porquês mas sim pelos para quês. Onde tudo terminará e onde tudo começou? Pergunto-me porque me acharei tão mau, aquele mau mais duro, mais baixo, mais Timor do termo. Primeiro, imaginava gostar de viver uma vida de aventuras como nos filmes. Agora, estou bem dentro do filme como um cogumelo plantado nos verdejantes campos dos sonhos. Primeiro, imaginava o mal e praticava-o como um reflexo imaginário de um amor superpoético. Agora, o mal deverá ser aniquilado.
Então... ouço Coil, a sua música perturba-me. Fala-me por meio de metáforas que mal compreendo mas anseio pelos símbolos que crio recheados de ironia, imagino-me mesmo um grupi, um superfã no camarim oferecendo a boca a um felácio, enquanto na realidade estou a tentar arranjar em algum lado da imaginação desejo para bater uma punheta e nem assim consigo. Isto é um reflexo de alguma coisa, da morte ou do desgosto de pessoas conhecidas e amigas, de impressões de sangue, sexo e lençóis limpos. É como se me quisesse degradar ao ponto de ser insultado. Mas e se não gosto de piça alheia... eu que sou narciso talvez goste da minha... e logo me vem à memória a ideia que uma vez me contaram do gajo que mandou retirar duas costelas para experimentar o próprio sémen.
Existe em mim a necessidade de me proteger, de não me integrar pois não me quero abrir aos demais, escrevo só para mim e para ti por enquanto, os outros que se lixem. Existe em mim um fascínio, um flash por aquilo que faz sofrer. São as rupturas que me fazem continuar e viver novas emoções, ou haverá beleza sem perigo? Pergunto pelo passado e pelo futuro. Pergunto-me pelo destino e pela fé. Pergunto-me por futuros sempre adiados. Pergunto-me se as pessoas serão até um certo ponto loucas ou se será só uma questão de acreditar muito e depois, apenas continuar a usar o hábito. Pergunto-me por promessas que se fizeram e que nunca foram cumpridas e por tentativas que abandonámos. Pergunto-me se será falta de vontade, falta de autocrítica ou se não será apenas aquele sentimento eterno, gótico e decadente. Cultivo a identidade e a indefinição. Sou ambíguo porque depois de falhar com as mulheres, voltei a falhar com os homens porque talvez fosse deles que gostasse... mas nem deles nem de nada gosto, se me cansei do cheiro da sua vagina também nem da piça nem mesmo de beijar a face barbeada de um homem, no caso o meu pai, o único fora dos livros, e agora... eu falho do mundo. Já não sinto desejo por ninguém, nada me atrai e, para me proteger de uma futura próstata deficiente, recorro a Apollinaire e As onze mil vergas. É o único meio de me satisfazer, a internet ainda não chegou aos meus alojamentos nesta secção do campus do CREeA.
Sou indefinido e atraente ao olhar, entro facilmente em zona de gaydar. Mostro-me no meio dos supostamente grandes ou que imagino grandes. Dou abraços de parabéns e faço vénias. Cultivo o sentido agitador, agiota da rebelião. Ajo como um rebelde em teoria. Vou ver espectáculos de poesia, compro livros nihilistas e não espero pelo autógrafo do autor. Faço convites formais a mulheres atraentes e, no fim, afasto-me bloqueado culpando-me de não saber fazer o sexo quando, no fundo, nao é bem assim, é apenas uma tentativa de proteger uma certa integridade que nao é a nossa mas que nos magnetiza... uma certa inversão dos papéis, um amplo sentimento de covardia, uma recusa em falar, um certo isolamento, uma tentativa de confundir e fazer mal e ainda, misantropo, dizer-me admirador de mulheres, bem... mas não é bem isto que eu quero, não é com isto que eu sonho e o que é o sonho de uma ela quando tenho uma ela e a ela deixo?, não deveria esta ela ser o nosso sonho eterno que nem deveríamos sonhar ou perguntar-nos pelo porquê de não ter de sonhar? Ter alguém atraente, inteligente, sensível e agora romper porque se deseja conhecer mais mundo além dela e, depois, ela é tão agressiva quanto eu, eu dou-me mal com as igualdades porque não sei reconhecer os iguais, preciso de conhecer outros corpos, mais corpo para tentar a paz eternamente afugentada e interrompida porque sentimos culpa de não ter tempo para dedicar ao estudo do qual até nem gostamos, é difícil, não é bem isto que gostaria de fazer e tal... mas que digo que tudo o que se começou tem de ser terminado, tenho de levar esta viagem até ao fim.
Gostaria de abandonar tudo e passar dos sonhos à realidade, abandonar todos os empecilhos, todas as escadas e viver só com ela uma vida de casal jovem cigano com paz, somente em paz, eu pintando e ela fazendo missangas numa pequena vila, uma das muitas que conheceríamos a passar daqui para acolá. Deste modo, aceitar-nos-íamos certamente se a poesia movesse montanhas.
O meu filme continua fotograma a fotograma. Pergunto-me por violação, pergunto-me pela raiz da própria palavra e no porquê de pensar nela e no que poderá sentir um objecto violado, será que terão sentimentos e serão entidades? Pergunto-me pela identidade biográfica da entidade que viola, será que escreve sobre maldade auto-inflingida, será que escreve sobre a vontade de possuir friamente sem história?, será que escreve sobre cigarros e corpos arqueados no auge do suor criado nos sempre curtos momentos?, deveria ser possível estender até ao infinito a tensão criada por dois animais puros, deveria ser possível observar todas as expressões e superfícies do corpo tu, tocar a tua pele, sentir o teu cheiro, a tua voz. Mas no fim, a sociedade sempre ri mais alto, a sociedade deles, a dos hipócritas, a dos lambe-cus em oposicao à dos ingénuos, dos líricos e dos loucos dependendo da perspectiva em que o autor e o leitor se coloca. O leitor não sei mas o autor pode confessar que sentiu prazer com os dedos dela e que de algum modo já os desejava, os pincéis não se amam, as cenouras apodrecem mas os dedos, duros no gatilho, eram amantes apaixonados. Mas tudo tem um limite, um fim e mil e uma noites sempre foram demais, ao testar os meus limites testo igualmente os teus limites, não será que me quero vingar de alguma culpa tua ou minha ou até da imaginação de tudo? A partir daqui, será difícil acreditares-me. Para te dizer que te não quero mais pois eu sou mau e assim só mal te posso fazer. Dizer que não tenho futuro, que não tenho vida que possa dar ou construir contigo pois eu recuso!, recorro a todos os meios possíveis para o negar, quem sabe como Judas enforcado no Éden.
Perto da localidade destino do primeiro bilhete, pego no meu saco, considero o seu conteúdo e, de olhos tensos, fumo um cigarro enquanto aguardo que o comboio pare. Saio e peço na estação um bilhete para mais longe e para fora. É meu desejo, quem sabe, ir para fora, esquecer tudo e começar de novo. Por isso, levo tudo o que me pode fazer falta, o que inclui aquilo que imaginei uma vez e passei ao papel. Os intervalos entre os meus fotogramas são preenchidos de branco. Existem ódios infundados ou tiros disparados contra as pessoas erradas, coisas que ouvimos dizer mas, entre flashs de surdez, nem sabemos bem o que ouvimos, estávamos distraídos talvez ou, então, estávamos apenas focados no trabalho. Momentos brancos esses, às vezes, deveríamos perguntar. Os meus ódios não são reais ou são mas ainda não ganhei a experiência necessária para gerir conflitos de emoções, desculpem lá: não sou um gestor. Estes são ódios que achei necessário ganhar por impulso, achei que deveria adquirir certa atitude surreal, odiosa, não sou mau por natureza, só faço mal por reacção. No limite do infinito matemático serei um merdoso anarcofascista, só porque não gosto que me pisem os calos. Os intervalos entre os meus fotogramas são preenchidos por recordações que não parecem ser as de mais ninguem... às vezes, parecem não interessar nem mesmo existir, digo que terão cessado vida na minha etérea imortalidade, nas estações finais que se aproximam e as pombas?!, as pombas suicidam-se de encontro às paredes de granito, de encontro aos vidros do comboio deixando impressões de sangue nos passageiros cansados de mais uma viagem, e em desespero anulo-me brutalmente: sou um filho da puta, sou uma puta que nunca desmamaram, sou menor que zero, não tenho identidade. Não sou sol ou lua. Não sou filho ou filha. Não tenho pai ou mãe. Sou uma estrela negra num sonho frio. Granizarei vermelho sobre o bar Armenia.
Pergunto-me o que acontecerá a seguir, quem receberá o dinheiro dos impostos e dos abonos, o que farão as pessoas, aquelas que foram ficando para trás em grande estilo sempre apoteótico, vários estilos várias escolas. Pergunto-me porque as coloco como objectos ao lado dos meus ídolos. Então, se recuso toda a humanidade devo começar por algum lado, devo aniquilar-me a mim próprio porque sou incapaz de te não poder ter todas as vinte e quatro horas do dia, porque queria em certas alturas impôr a minha personalidade mas esta não existe, estou destituído da capacidade de pensar, estou cansado após um primeiro colapso vivido e sonhado em exorcismo jocoso numa fogueira de vaidades, é preciso mostrar às pessoas, sabes?, não interessa o resultado final, o que interessa é fazer, é só o nihilismo a revelar-se. Se fosse mais que nihilista, diria ser preciso fazer bem. Quando se não tem nada ou se pensa que nada tem, quando ando em círculos há muito tempo, quando há alturas em que mesmo exausto não durmo, quando se fumam charros atrás de charros, quando se pintam esboços de árvores de natal, quando se pintam palhaços e aves góticas nas janelas, que dão para a eterna palmeira, adquire-se a certeza de que Eva ou Joana d’Arc está bem aqui ao lado... é apenas muito superior a mim, merece alguém melhor que eu, uma pessoa boa, e nem sequer uma pessoa santa, aliás, ninguém é santo, eu não sou nenhum santo, posso uma vez ter confundido e pensado que era o centro do mundo, desculpa-me mundo, o actor vai deixar de representar. É por isso que a recuso, eu não tenho uma entidade una, ser diletante significa ser disperso, confuso, inválido, vazio. É fácil identificar-me com as pessoas que estão perto, não amámos assim tantas vezes. Designs e aforismos, meios pavlovianos, viste a laranja mecânica?, a passagem de bestial a besta, o jovem de grande potencial, o servil nihilista escondido mas ainda marginal, aquele, que tem por interesses especiais a rebeldia, a filosofia, a livraria, a fotografia e a pintura, pergunta-se pelo sentido da palavra absoluta e absurda VIVER, como se escreve esta palavra?, um certo ess muss sein, o mesmo de Beethoven, uma certa lógica levada ao absurdo por certas visões brancas de hospitais pois a minha cabeca flipa das dores, o meu corpo treme, Id diz-me que se eu não sou não posso pertencer nem dar nada a pertencer, Id faz-me escrever e depois abandonar ao acaso em papéis de guardanapo pequenas frases como: desculpa mas sou incapaz de viver.
É esta a imagem com que quero que fiquem, a de alguém brutal, torturado e doido, não necessariamente por esta ordem. Por aqui e por ali, deixo rastos de culpa em seres humanos com sentimentos, atrofio-os, sofro, excito-me com o seu sofrimento, semeio desencantos, rugas, depressões nervosas, comprimidos e rupturas e pergunto: para quê? Toda a gente se aproxima por causa do aspecto tipo: não sou de cá, vêm à procura de algo que não têm e que pensam ver. Todos se afastam quando reparam que a minha identidade não é o que aparenta ser, não sou nenhum deus, nenhum senhor do mundo, sou estranho e esquisito. Tenho ódio por não fazer aquilo que mais gosto, tenho ódio por alimentar farsas, pausas, tenho ódio à palavra ruptura, ela está mais ou menos prevista, no entanto, alimento o ninho dessa palavra. Somos todos maus em certos momentos, sou é incapaz de distinguir, ignoro que tenho qualidades e ainda penso que deverei ter as costas largas, que deverei reflectir, quando olharem para o espelho as pessoas deverão envelhecer.
Vejo cortejos brancos ao som de Horse Rotor Vator. Só vejo pessoas com ar de santo, por anedota, se estou rodeado de santos, serei ou deverei ser santo? Ou um anjo revertido?
Olho para o relógio e reparo que só faltam cinco minutos para a minha morte, aquela que desejo a minha fantasia mais violenta. Toda a minha fé, tudo o que até hoje escrevi, retiro de dentro do saco para a desperdiçar, rasgada folha a folha, porta fora, será adubo e flores azuis na próxima estação. A morte só pode ser solitária. Acreditem: Eu nunca morrerei e farei o sinal da vitória com a mão esquerda, raparei a cabeça tal e qual um monge budista a recuperar da moca dos cogumelos.

Acreditem que fechei os olhos quando saltei a porta do comboio.

Paro de escrever. Nem dei conta da hora, escureceu. Meto mais um psicofármaco no bucho, dou um gole de cerveja, acabo de descobrir a fórmula mágica com que ganharei todos os jogos: fechar os olhos e acreditar.
Do lado de fora do café Gungunhana, acaba de passar um Mini amarelo. Cinco minutos depois, duas cabeças femininas olham para dentro do café enquanto continuam a andar. Não passa muita gente. Fumo um cigarro e converso com a minha consciência que lembra, envolta na penumbra dos olhos escuros de Id, óculos gradeados e barba rude, a frase chave de todo este mistério falsificado: A merda que esta noite está a ser. Escrevo.
Begin
Idealizo uma frase passível de ser dita de modo solene pela mulher dos meus sonhos masoquistas. No mesmo instante, fixo o momento onde o eu misantropo lhe aperta o pescoço com carinho fetichista. O eu fotógrafo assiste e vê a sua pose de fumadora de Lucky Strikes esperando simplesmente que o eu masoquista lhe revele o seu segredo: pedir-lhe desculpa para talvez a conseguir ter de volta.
São frequentes estas mutações de consciências. Belo motivo para um quadro. O modo como um vaidoso com algum talento é derrotado pelo mestre e sai depenado. Passa-se o mesmo nm grande filme: A vida é um jogo com Paul Newman. Um sonho por isso: vingar-me, cuspir-lhe na cara. Procura e destrói. A vida é um jogo. Um telefone toca. A banda sonora é Lilith, sons quase imperceptíveis, mensagens vindas de longe, misturando-se com Kaddish dos Towering Inferno e, porque não, a oração do Ginsberg.
Eu misantropo digo que não quero sentir culpa de nada. Nada mais deveria fazer sentido, sabes?, são frases como Fica Bem, são frases como Que Horas São? Dez e meia. Levanta-te, tens uma aula!, frases que surgem com frequência, frases como Vai-te Embora. A vida não passa de um jogo de olhares fixos em contrastes violentos e extremos. Ainda ontem, me disseras que não tinhas ninguém ao que respondi submisso e apaixonadamente que me tinhas a mim. Ainda hoje, sentado numa casa de banho imunda, à espera que a temperatura da merda nos meus intestinos a fizesse dissolver, tremia de frio e medo perante uma resposta que sei ir ainda obter, mais tarde. É uma resposta previsível, acontece frequentemente ao telefone e significa sempre um aumento do valor do coeficiente misantrópico da minha consciência, o elemento mais impessoal, mais próximo dos animais, dos primitivos.
Vejo neste misantropo uma única vontade, um único ódio, o de partir as dezoito mesas e as setenta e duas cadeiras deste Gungunhana e, a seguir, embrenhar-se nas superfícies acastanhadas e cortantes das garrafas de Super Bock, a melhor cerveja deste planeta. Visto este feio de prisioneiro ameaçado, dou-lhe balões e bolos e coloco-o a desfilar perante as beldades incrédulas no Armenia, como se fosse um bobo. Qual seria a média temporal deste sistema MM1?, quantas pessoas entrariam no sistema, quantas pessoas bateriam palmas, pergunta o encenador. Entretanto, o bobo tem já os olhos pintados e, mesmo não sendo virgem, parece inocente. É mazé um tonito. Há tantas coisas que levam anos a encaixar.
End
Olho.
Do parque de estacionamento arranca um Honda Civic com destino incerto e, dentro dele, vai um par que deverá ser um único ser, pelo menos, assim os imagino. Como é óbvio, isto não passa de uma projeccão obscura de um conteúdo interno que pretendo exorcisar. O encenador saiu de casa deixando escapar palavras como psicotrópicos e psicofármacos, pastilhas e comprimidos, intercaladas com risos de escárnio e frases como: ainda por cima tenho de me esquecer de ti agora que arranjaste sucedâneo, e isso não faz parte do meu vocabulário de deveres e competências, não, não faz parte do meu trabalho, é trabalho para outra personagem. Para quem? Para o ressacado, diz o meu reflector fotografico e, aqui, a caneta torna-se frenética.
Olho para trás para ver se há espias, levo a mão ao bolso, retiro mais um comprimido Lorenin, engulo-o com cerveja e recordo como o velho duplo ressacado comprou o Concerto para piano, trompete e cordas, opus 35 de Shostakovich. No passeio, um homem carrega um minitower, ou seja, um vulgo computador. Nada estranho a não ser a hora a que tudo isto acontece, o dia é irrelevante. Engraçado como se torna difícil levantar a garrafa de Super Bock. Dizem que os psicotrópicos afectam a sensibilidade original. Quem se importa?
O poeta repara agora que um casalinho, agradável à minha vista, ultrapassa a linha do funâmbulo entrando no Gungunhana. O bobo, se o ouvisse, teria uma frase pronta a disparar para superlativizar o estigma e essa frase ou um qualquer sinónimo, o que não constitui mais do que uma divagação, leva-me ao bar que daqui a duas horas estará uma vez mais cheio de elementos da classe dos alternativos. No fundo boas pessoas.
Passa já da meia-noite.
A porta do café está fechada. A única luz que ainda persiste é a mehr licht que exijo à consciência para escrever, é aquela que permite que a minha caneta escreva e crie sombra. Vejo-me, eu reflexo fotográfico, envolvido numa auréola de néones brancos. Beijo-me e deliro. As pernas movem-se, as mãos arrastam-se pelas folhas como pacotes de transmissão de dados de voz em linhas coaxiais perfeitamente dimensionadas para os encaixotar em processos de nascimento e morte descritos um dia pelo senhor Markov quando estava na sua própria cadeia.
É lindo! Estranho é estas frases brancas serem motivadas apenas pela falta dela. Uma única. A que tive e a que me arrependi de não ter. O desejo é algo de complexo. A empregada avisa-me que são horas de fechar. Toca a sineta. Um último sacrifício, diz o poeta.
Levanto-me e delicadamente retiro da algibeira um cigarro que ofereço à empregada que me olha com um sorriso que acredito de compreensão. A vontade animal, o misantropo sente, esgota-se pulso a pulso e nele apenas sobra aquele resíduo, um sorriso obtido dela que lhe disse há dias uma vez mais: estás cada vez mais bonito. Assim, não existem mais jogos nem trigésimos aforismos da cartilha. A felicidade talvez se resuma a não pensar em jogos limpos ou sujos ou em segredos escondidos ou verdades e mentiras brancas. Respeita o seu segredo, faz que não o conheces.
Sigo a pé. Na rua, o frio incomoda, lembro-me que o Armenia há-de estar quente. Felicidade. O meu funâmbulo tenta equilibrar-se na sua corda porque, lá em baixo, existe o infinito e a possível explosão. Na praça de táxis, embarcam os clientes sedentos de sexo, cinco contos de réis por quinze minutos.
Penso que o bobo é perfeitamente controlável e só tenho de accionar o pequeno interruptor, implantado em criança na orelha direita após uma infecção. Como ele está bêbado e pastilhado, vou ter dificuldade em não o deixar cair naquele terceiro estado indeterminado e ambíguo em que o eu ressacado, feliz hoje porque vive alimentando-se de uma imagem em memória e sempre com a solução na ponta da língua para as situações em que tudo se rompe, ao trabalho ao trabalho e porque haverá sempre Paris, me lembra as mãos cheias de ossos do condenado misantropo e me assusta.
No entanto, essa imagem não se desliga e tudo o que lhe está relacionado me vem à memória. O meu cérebro apaga-se, sinto que os meus movimentos não são os mais correctos quando entro num outro café, o mais branco da região.
Serão os comprimidos a fazerem efeito?, será a possível explosão do subsolo? O ódio presente nos olhos do misantropo transmutam-se para o funâmbulo, o sexo do bobo está igualmente presente nele. Somos todos um e um só.
Peço uma SuperBock e o funâmbulo retira, de dentro de um poço imaginário, um balde de água onde à tona dois bebés conversam ao som de um salmo: Sto mondo rotondo se crolla su me Sto mondo rotondo se crolla su me. No auge da minha ressaca afirmo que o bobo, vivendo no subsolo, adora o bloqueio. Pergunto-lhe irónico porque não consegue ele aplicar o cálculo da probabilidade de bloqueio de n circuitos telefónicos ao seu proprio atrofio.
Enquanto me vou apagando do sistema de comunicações e bebendo a segunda Super neste segundo café da noite, decido ligar-lhe, mal ouço o que me diz, ou ela está a falar por um fio ou sou eu que já estou a ouvir mal e, desatento e desesperançado, delineio as personagens ou identificadores telefónicos desta conversa que correu mal.

Primeira personagem:
Quantas vezes já bloqueaste? 60%, 75%, quantas?
Bastante mais do que a positiva! Responde o bobo sorrindo.
Já alguma vez tentaste sair do bloqueio?, tentando, por exemplo, diminuir o numero n ou generalizar o sistema a uma fila de espera MMinfinito?
Nunca pensei nisso, nunca foi importante. Sempre considerei os bloqueios dos outros mais importantes que os meus. Isso torna-me incapaz de sair da terra, tipo toupeira velha e gasta, para ultrapassar a lua que tu capturaste. Digo-te que só lhe faltam as esporas para ser um verdadeiro caubói, eu não!, eu só quero ser engenheiro. This sky will cover you when you fall down, this sky will cover you when you fall down.

Segunda personagem:
Porque bebes tu? Porque bebes tu, diz ela às cinco da tarde, desses cálices de Super Bock misturados com Lorenins e Normisons receitados por psicopatas pouco preocupados contigo?

Terceira personagem:
Mentira. Mentira. Os atrofios resolvem-se com psicotropicos e Super Bock. Não! Nada disso é valido! Ela disse: Agarra-te às tuas coisas. Ela repetiu-te: Agarra-te às tuas coisas. E tu agora queres conservá-la como um teu pertence?

Quarta personagem:
Não. Nunca pensei nela como um objecto da qual pudesse abusar. Faz-me lembrar as frases que se escreviam nas lombadas dos livros do oitavo ano da minha infância: Agitar antes de abusar. Não, nunca pensei nisso. Com ela não. O problema é que agora, se me agarro somente às minhas coisas, desapareço do planeta, torno-me numa espécie de ser mutante e autista. Quero voar, quero voar... como Ícaro de encontro ao Sol. Isso não é solução, diz a ressaca que não sabe como ajudar. Eu ao misantropo ofereceria um machado, o que estava em exposição na loja de antiguidades mas ao funâmbulo não tenho mais asas para oferecer e sabes porquê? Porque, meu amor, ainda gosto de ti e me preocupo com o teu futuro. E quando não gostar mais de ti, quando me aborrecer de não mais quereres saber de mim, vou... eu vou...

Quinta personagem:
A tua loja, disseste...
Sim, agora trabalho numa livraria de antiguidades...
Numa loja de antiguidades...
Sim, não vejo porquê tanta estupefacção! Contactos. Consegui um emprego das dez às seis. De modo que a loja é, agora, o meu planeta e o meu equilibrio e a ti só te falta encontrar o teu.

Sexta personagem:
Oito e meia da manhã. Preparo-me para ir trabalhar. Escolho o caminho mais longo que segue junto ao canal e trago comigo o manuscrito que comprei na livraria Cassiber. Uma das personagens do livro diz que a sua maior desistência foste tu. Diz a personagem que ter desistido de ti talvez tenha sido um sinal que te amei ou que senti paixão.
Rio-me do estilo de telenovela. Afinal, desistir de uma mulher é um acto a assinalar?, é um acto a pensar fazer ou é só para pôr as pessoas a pensar ou a fazer que pensam? Só se for por uma boa razão, uma excelente razão. Qual foi? Não consegui suportar pedir-lhe ajuda, senti que ela se fartara de mim e que já não lhe dava prazer, senti que lhe seria um estorvo no seu futuro, abdiquei de algo que estava acima do meu poder. Pela segunda vez, renunciei a altos voos porque tenho pés de barro e resignei-me ao barro, ao chão.
O sol brilha-me nas faces, sigo, tudo me cheira a academismo, penso que pretendes atingir a santidade ou, não será essa a verdade?, pretendes ser justo, fiel, sublime e em equilíbrio partilhado mas... não passas de um homem. No fundo, não passas de um homem que detesta a humanidade e na qual não vê nem uma só promessa de humanidade. Arrepender-me para quê de ter perdido segundas oportunidades? A mim, poucos mas deram, deram-me mazé um pontapé no cu.

Sétima personagem:
Ela responde: tens a vida toda à tua frente.

Oitava personagem:
Levanta-te e anda. Olha os barcos dos pescadores, olha as mães que levam os filhos à escola, olha as casas, onde vês tu tristeza?
Digo que gostaria de comprar aqui uma casa, igual às outras, típica como as outras, indistinguível de todas as outras, bonita como as pessoas simples e sem a máscara com que, às vezes, decidem sair à rua.

Nona personagem :
Detesto a cidade, detesto as pessoas, detesto a sociedade. Estás gasta e cheiras mal.

Décima personagem:
Ela não te quer mais. Tu tambem não. Estás obcecado pela derrota e de, desta vez, teres ficado sozinho para sempre, órfão de vez. Tu só tens esperanca quando bebes uns copos e ouves Vaya con Dios na sua companhia. De qualquer modo, isso é esperanca suja, ouviste seu bobo?, porque, no fim, te esqueces, ela até bebeu mais do que tu, diz-te que não te quer, quer apenas ser tua amiga, ela quer que sejas o seu palhacinho. Talvez tudo não passe de um jogo de xadrez.

Décima primeira personagem:
Gostaria que existisse um valor próprio, um sentido, um fim, uma certa honra naquilo que se escreve, oralidade, unicidade, cheiro, Artaud, a mistura dos eus... e ainda Ser.

Décima segunda personagem:
Chego ao Gungunhana e peço um café.
Ainda não compreendo os objectivos a atingir, qual é a tua escada? Os teus planos? Mostraste-me os teus planos para a capa. Tem que ser absolutamente negra mas de um negro veludo com muito ouro, conterá o símbolo de uma metade de homem, ardente de desejo crucificado e envolto na cor vermelho sangrento, irradiando chamas entre as luas novas ou os eclipses cíclicos onde ela não está como sempre não esteve, sempre teve medo, serão as aparencias? Que fazer? For I was yours and I am yours and I will be yours till death.

Décima terceira personagem:
É mais facil dizer do que fazer aquilo que se diz e é mais facil escrever que dizer tudo o que se deseja dizer a alguém. Escrever permite parar e pensar em cada palavra, analisá-la, retirar-lhe a forma ficando a realidade ou retirar-lhe o sentido tornando-se abstracta, uma mera forma poética.
Em suma, esquecer-me das palavras. Escrever permite procurar a melhor metáfora porque o tempo de reacção a uma pergunta é infinito e, sobre este ponto de vista, escrever não passa de um monólogo de alguém ao espelho com várias vozes e representações de si próprio. Escrever é uma mentira porque é difícil escrever toda a realidade que se vive, porque não há tempo, porque é difícil de admitir todas as verdades. Por isso, contam-se meias verdades e mentiras brancas. São modos de apaziguar todos os que vivem como parasitas dentro do Eu, quantas vezes não perturbam outros que nada têm a ver com a realidade onde vivem. O que são as metáforas que se escrevem? Será necessário influenciar os outros? É tão impossível controlar mentalidades e modos de agir nem podemos ter tempo para isso. Nunca acontece. Um livro não deveria influenciar ninguém ao ponto de vivermos em função dele e vivermos pior. O que será mais importante? O prémio literário ou a sanidade mental? Haverá incompatibilidade entre sensibilidade e inteligência? Que dizer das minhas opções? O meu eu inicial desapareceu sozinho, transfigurou-se. Eu cá estou, tenho este emprego do qual gosto, ouco rádio, faço uma data de coisas para aprender que existem seres normais, sensíveis e inteligentes, para que não esqueça o mal que causei e para que R pinte céus menos académicos.

Décima quarta personagem:
Há dias, tive uma revelação quando estava numa barbearia. Só via a minha cabeca e o belo corpo da cabeleireira ruiva. A minha cabeça parecia um disco voador castanho escuro com uma pequena franja loura na frente. Lembrei-me logo do que aquilo queria dizer. Ela disse: Like this you look like a priest. Eu digo: or like a saint.

Décima quinta personagem:
Penso que se escrever que um tiro se ouvirá numa prisão, eu poderia provar que, afinal, sou o pai do meu próprio ser.

Décima sexta personagem:
Eu tentei comprar a felicidade, estou a escrever um livro. Arrependi-me das minhas ambições porque perdi pessoas a quem não dei atenção. Só faltou matar acidentalmente alguem. Nein!
Acordo. Tenho a vaga sensação de que me dirigi ao balcão para pedir o telefone. A memória falha-me. Não me lembro de dizer uma única palavra mas lembro dum flash e de ficar com a ideia de uma frase vinda do outro lado do fio dizendo: fica bem. O Armenia?, devo lá ter estado mas não me recordo. Estou por cima dos lençóis fechados, meio despido meio vestido e sem perceber, sem saber de nada, nada do que fiz e como aqui cheguei.
Ao indagar do caso, dizem-me ter pedido um chá às duas da manhã e ter estado no Armenia sentado numa mesa sem abrir a boca, tentaram falar comigo mas eu não abri a boca e pensaram que eu estava pedrado de charros. Bela desculpa, não insistiram porque pensaram que eu tinha fumado um charro e não estava para ninguém, estava num filme qualquer não me apetecendo falar com ninguém e não insistiram. A minha resposta foi dizer uma verdade incompleta: estava muito tenso e, por isso, tinha engolido um comprimido com cerveja enquanto estudava no café.
Riram-se, acharam piada talvez. Que loucura altamente!
É já demasiado tarde.

Última personagem:
WHY? 
'

Claudio Mur

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Ser gente é deixarem-nos viver


'Ser gente é deixarem-nos viver'
óleo sobre tela
40cm por 30cm
2019
ZMB


(FOR SALE, shipping is already added to the price)

It ships in a cardboard box

135€ (European Union and UK); 160€ (rest of the world)

payment to Rui Lourenço by paypal to 
(
please add a note telling the ref: of the painting
Ref: 2019-sergente
)