terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

É isso, Zelig na verdade, mas eu de tanto esse te parecer esqueço-me, às vezes, de quem sou: Eyes to the blind

[página 80]
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Num popular restaurante italiano, almocei hoje com Eugénio Salazar, doutor em história e escritor neófito que já publicou um par de pequenas coisas. Vendo-o lutar com o esparguete, contei-lhe em que estava a trabalhar, os inícios, os detalhes, as dúvidas e, pouco a pouco, fui-me apercebendo de que a explicação deste livro requer outro livro, quase precisa de um manual de instruções para se tornar compreensível. Enquanto eu sofria para o tornar mais claro, ele não levantou, em nenhum momento os olhos do prato: ai sim, claro, com certeza, percebo. Creio que não me percebia, ou talvez sim. Quando por fim acabei de falar, a minha lasanha já tinha arrefecido. Durante alguns minutos, comemos em silêncio. De repente, o doutor Salazar baixou os talheres, bebeu um gole de vinho tinto e disse-me para não ser tão ingénuo, senhor Halfon, esse momento não existe, na verdade você anda à procura, perdoe que lho diga, de pretextos que justifiquem a sua própria decisão de se tornar escritor, quem sabe se por insegurança, precisa das respostas de outros autores para validar a sua, mas não sei, senhor Halfon, não sei porque é que o senhor se empenha em escrever livros tão estranhos e, além disso, não sei se o percebi muito bem, teria de o ler. Ao beber outro gole de vinho, fez um ruído desagradável, semelhante a um arroto contido, e passou a língua pelos lábios. Como se chamava, senhor Halfon, aquela personagem de Woody Allen que se esforça tanto por mudar a sua imagem e parecer outra pessoa, Zenin ou Zelin ou coisa parecida, não me lembro. Foi tudo o que me disse. Deixei que pagasse a conta.
(...)
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[página 114]
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Ao inteirar-se da sua breve aparição nas linhas do manuscrito, um autor escreveu-me para me acusar de estar a praticar aquilo a que se chama "um vampirismo literário exagerado". Não sei, talvez tenha razão, talvez o meu afã de investigar outros escritores me tenha levado, sem me aperceber disso, a usurpar não só as suas palavras e personagens, mas também o seu estilo narrativo; a querer tornar-me, suponho, um composto de todos eles. É o fenómeno de Alonso Quijano e Madame Bovary e Tom Sawyer e Holly Golightly e de todos os outros que acreditam naquilo que lêem, que acreditamos naquilo que lemos. O perigo de penetrar apaixonadamente no mundo dos livros é o de nos tornarmos, nós próprios, no aglomerado de pequenos excertos literários. E os livros que escrevemos não podem ser mais do que um aberrante somatório de todas as páginas que vamos arrancando aos livros que lemos.(...)
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[página 124]
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Entre tantas dúvidas que me assolam no meio da melancolia febril, uma coisa é clara, para mim. As pessoas entram e saem da literatura sem saberem porquê. E talvez o simples facto de fazer a pergunta seja aproximarmo-nos demasiado do sol, pois a razão nunca poderá compreender manifestações do espírito estético. Nunca. Sem pedir permissão, nem perdão, o anjo literário assoma, eleva-nos efemeramente até alguns paraísos e arrasta-nos para os nossos infernos e isso é tudo e merda para isso.
(...)
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"O anjo literário"
Eduardo Halfon
Edição Cavalo de Ferro




Artist: Scorn
Title: White Irises Blind (Minimal Mix)
Album: White Irises Blind ('97 Re-Issue)
Year: 1993

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015


Empreender, chular e mandar trabalhar os outros ou fazer mesmo como os outros:
Há-de algum dia ser diferente?

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V
Com a continuação, a carreira de Tchichikov ganhou um andamento vertiginoso. O que ele não fez! É uma coisa que vai além da compreensão. Fundou um 'trust' que devia extrair ferro da serradura e recebeu um novo empréstimo. Entrou como accionista numa grande cooperativa e alimentou toda a cidade de Moscovo com salsição fabricado de cadáveres. Tendo sabido a proprietária de terras Korobotchka que em Moscovo agora «tudo era permitido», quis comprar bens imóveis. Ficou interessado com Zamukhrychkine e Utiechitelny e vendeu-lhe o Picadeiro, em frente da Universidade. Tomou de empreitada a electrificação de uma cidade onde não se podia ir a parte alguma mesmo que se galopasse durante três anos, e, depois, de ter entrado em contacto com o antigo governador, mandou demolir uma paliçada e plantar estacas para que aquilo tivesse o ar de uma construção. Quanto ao dinheiro concedido para a electrificação, escreveu que lhe tinha sido roubado pelo bando do capitão Kopeikine. enfim, fez milagres.
Não tardou que começasse a correr que Tchichikov era trilionário. As empresas disputavam-no entre si como especialista. E já, Tchichikov alugara por cinco biliões um apartamento de cinco divisões; já ele ia comer as suas refeições ao restaurante Império.

VI
Mas subitamente, deu-se uma catástofre.
Foi Nozdriov, como precisamente o vaticinara Gogol, quem perdeu Tchichikov, e Korobotchka quem lhe deu o golpe de misericórdia. Sem o mais pequeno desejo de lhe fazer uma perfídia, mas muito simplesmente em estado de embriaguez, Nozdriov foi contar no campo de corridas a história da serradura e da empresa inexistente que Tchichikov fundara, e terminou dizendo que Tchichikov era um patife e que se ele mandasse o fazia fuzilar.
O público começou a pensar naquilo e o boato voou e espalhou-se como uma faísca.
E como aquilo não chegasse, veio ainda aquela tola da Korobotchka meter o nariz numa repartição para perguntar quando poderia abrir uma padaria no Picadeiro. Em vão lhe explicaram que o Picadeiro era um edifício público e que ali não se podia comprar nem abrir fosse o que fosse. A pobre da mulher não quis compreender nada.
O que se dizia de Tchichikov tornava-se cada vez mais grave. Começaram então a perguntar que passarão seria aquele Tchichikov e donde teria ele vindo. As bisbilhotices começaram a aparecer e aquilo que se dizia, era de dia para dia mais sinistro e fantástico. A inquietação insinuou-se nos corações. Os telefonemas começaram a tocar. Fizeram-se consultas. A Comissão de construção apelou para a Comissão de vigilância;(...)
Correram a casa de Nozdriov. Evidentemente, era estúpido. Toda a gente sabia que era um mentiroso e que ninguém podia fiar-se na sua palavra. Mas mandaram chamar Nozdriov e ele respondeu a tudo.
Declarou que Tchichikov tinha efectivamente fundado uma empresa que não existia e que ele Nozdriov não via razões para que Tchichikov não o fizesse uma vez que toda a gente o fazia.
(...)
- Uma pedra ao pescoço, um buraco no gelo, e rio com ele!
(...)

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'As aventuras de Tchichikov'
Mikhaïl Boulgakov

no volume "Feitiçaria seguido de Os ovos fatídicos'
Editorial Estampa 1973

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Alucinações literárias temperadas com o sal refinado da dura realidade


Supõe que vais a passear na rua e uma mulher atraente atravessa a rua vindo em tua direcção. Pára e olha para ti a três ou quatro metros de distância.
-Se fores um fotógrafo... sentir-te-ás atraído a tirar uma fotografia. Não verás tu que o acto de encaixar uma realidade dentro de uma imagem é perder tempo e não observar ao vivo essa mesma realidade?
-Se fores um pintor... observarás essa realidade em todos os seus aspectos, as emoções que a sua face revela, o modo como meneia o corpo. Sentir-te-ás atraído a fixar uma dessas sensações em tela mas conseguirás tu realmente pintar essa emoção que tão bem captaste em todos os seus pormenores?
-Se fores um escultor... tentarás fazer um modelo dessa realidade mas conseguirás tu transmitir a cor da pele, o vestido ou o sapato que ela usa?
-Se trabalhares na área dos audiovisuais ou teatro... tentarás talvez representar toda a sequência recorrendo a actores que poderão ser ou não profissionais. Conseguirás tu representar essa sequência na perfeição quando perfeição significa a representação da realidade em todos os seus pormenores como a emoção espontânea que varia de situação em situação e de pessoa para pessoa?
Não vês que a representação significa uma mentira, a falsa representação da realidade?
Por isso uma das mais importantes ferramentas deve ser a imaginação ou a construção de uma realidade que não vimos na realidade mas que talvez pre-vimos.
-Se fores um poeta... sentir-te-ás tentado a escrever um poema sobre essa realidade mas não seria mais interessante e real aproximares-te dessa realidade e dizer-lhes o poema espontâneo que desejaste em vez de o passares ao papel? A isso chamar-se-ia tentar fazer com que acontecesse.


'Os hashishin ou as epístolas de Claudio Mur aos parolos e às mui puissíssimas'
Edições Cassiber
2009

Segunda edição: 2012, aumentada com desenhos

Envio por correio: 5 euros.

pedidos para ed.cassiber@gmail.com






segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Tu não és uma falsa memória, pois não?


I am sick of poetry. The sky starts to darken.
There's nothing strange on this end of afternoon. 
People walk in a rush towards home after their jobs. 
Others stumble in the contrary direction.
It seems that I told but you were not sure.
I was unsure also as I seem to have denied it later.
But now that calm is and the misery of living never ends
I wish I could come to see you and kiss you again:
This would make me be alive, a better man
and not a beast with false memories.


sábado, 14 de fevereiro de 2015

Versões por Nick Cave



Hey Joe,
popularizado por Jimi Hendrix



Avalanche,
original de Leonard Cohen

I stepped into an avalanche
It covered up my soul
When I am not this hunchback that you see
I sleep beneath the golden hill
You who wish to conquer pain
You must learn to serve me well


You strike my side by accident
As you go down to your goal
This cripple here that you clothe and feed
Is neither starved nor cold
He does not ask for your company
Not at the centre, the centre of the world


I who am on a pedestal
You did not raise me there
Your laws do not compel me now
To kneel grotesque and bare
For I myself am the pedestal
For this ugly hump at which you stare


You who wish to conquer pain
You must learn what makes me kind
The crumbs of love that you are for me
Are the crumbs I've left behind
Your pain is no credential here
It's just a shadow of my wound


I have begun to ask for you
I who have no greed
I have begun to long for you
I who have no need
You say you've gone away from me
But I can feel you when you breathe


Do not dress in those rags for me
I know you are not poor
And do not love me quite so fiercely now
When you know that you are not sure
It is your turn, my beloved one
It is your flesh that I wear


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Os fantasmas também comem

Hoje, na sopa dos pobres um dos nossos camaradas, que habitualmente costuma sentar-se à minha frente na mesa, disse:
- Hoje é sexta-feira 13?
Reparei que fez gestos de desconforto, expressões faciais do outro mundo, como se tivesse medo da superstição. Eu disse já a pensar em coisas como feitiços:
- Ainda não me dei conta de nada hoje mas... amanhã é dia dos namorados pelo que hoje até que era bom à noite encontrar uma bruxinha eheh.
O camarada acabou por se rir. A comida até soube melhor. De volta ao quarto pus a tocar um vinil de Diamanda Galás.
Acabei a pensar na bruxinha fantasma que, reparo de vez em quando, me segue à distância.
A última vez que a vi eu estava na feira com os meus trabalhos e ela passou e muito senhora de si sem olhar sentou-se a cinquenta metros na esplanada.
Trocámos olhares até ela se refugiar debaixo dos óculos de sol. Eras tu, não eras tu?
Esta baixinha que faz a ronda talvez não saiba que a única culpa que falta perdoar são as circunstâncias com as quais um humano nunca pode, Não sou um superhomem.
Fora não ser o superhomem, o meu mundo é incompleto sem ti, como diz a canção.
És para mim uma fantasma porque ainda hoje penso que a história podia ter sido diferente.
Poderá até não ter terminado de todo. Esse é um passo que tens de dar:
Apareceres, dizeres o teu nome, falarmos face-to-face.
Eu ainda me lembro do teu nome, tu sabes onde eu tomo café.
Sabes que as últimas palavras foram as tuas.
És tu que tens de me perdoar.





segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O avô cavernoso instituiu a chuva


'O avô cavernoso instituiu a chuva'
óleo sobre tela
18cm por 24cm
2015
ZMB

(Este quadro foi comprado no início do Verão de 2015
por um casal de holandeses)


'Vinte mil léguas de virgens vieram'
óleo sobre tela
18cm por 24cm
2015
ZMB

(Este quadro está exposto na exposição 'as pessoas dizem, nem sempre acertam'
realizada na Galeria Inklusa 2016)

(Este quadro está exposto na exposição 'Arte quase bruta' 
realizada na Casa da Horta em Dezembro 2015)




sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Eu vou ser como a toupeira



'Eu vou ser como a toupeira'
1972
Zeca Afonso

Tenho vários albuns de Zeca Afonso em vinil
mas este é o que mais gosto de ouvir.

(esta playlist do album no youtube está incompleta)
track list:

A Morte Saíu À Rua 3:07
Fui À Beira Do Mar 3:37
Sete Fadas Me Fadaram 2:32
Ó Minha Amora Madura 2:15
O Avô Cavernoso 2:47
Ó Ti Alves 2:45
No Comboio Descendente 2:40
Eu Vou Ser Como A Toupeira 1:57
É Para Urga 2:55
Por Trás Daquela Janela 3:50


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A Morte Saiu À Rua

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte "o pintor morreu"

Teu sangue, pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina a morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte "o pintor morreu"

O pintor morreu
O pintor morreu
O pintor morreu
O pintor morreu


Letra e Música: José Afonso
Álbum: Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A noiva, mr. Cool e as torradas da mamã: União de facto, uma risada

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Caras irmãs e irmãos,
Eu, Hattar, humilde presidente da assembleia geral da Sociedade de Seres com Sexo ( SSS - marca não registada) estou aqui reunida convosco para celebrar, neste dia tão astrologicamente especial e com as cores bem dimensionadas desta velha arrecadação abandonada, a união de facto destes nossos dois irmãos queridos.
Penso, então, que podemos dar início à cerimónia.
- Mr. Cool, aceita dar início à representação? Já foi instruído nos diferentes passos deste último jogo. Está preparado para entregar à sua noiva o flyer de noivado?
- Sim.
- Eu, com o poder investido pela Deusa da Imaginação, ordeno a Mr. Cool que entregue o flyer à sua musa.
(Ouvem-se tambores, flautas, cornetas, castanholas, vêem-se sequências de anjos fodendo outros anjos e serpentes a serem enrabadas por elefantes.)
- […], aceita dar início à representação?
(Silêncio assustador.)
- Foda-se! É sempre a mesma treta! A mulher chega sempre atrasada! Marca-se para as três da tarde a hora de tomar café e elas chegam sempre tarde! Foda-se, por mais que me digam, nunca hei-de ter paciência! Paciência! Puta que pariu a paciência! Eu, paciência, tenho muita! Tenho paciência para dar e vender! O que eu preciso é de mais um memory stick… hã, o quê?, uma ganza? Não, não, não quero mais ganza! Rejeito a partir de hoje cortar o bigode. Que se foda a ganza, quero mesmo é que ela apareça. Foda-se, aparece!
- Eu, Hattar, humilde presidente da assembleia geral da Sociedade de Seres com Sexo, com o poder investido pela Deusa da Imaginação, convoco […] para aparecer com uma desculpa sólida para explicar o facto indesmentível de estar atrasada.
(Triim… triim… triim… triim… boing… boing… boing… boing… you've got mail!)
- 'tou… 'tou… sim, sou eu… então, onde estás querida?
- Oh, meu amor, desculpa lá Mr.Cool, estou atrasada. O tinteiro acabou e tive que ir ao mercado negro das Lagartas comprar um tinteiro reciclado para poder imprimir os dois mil cartões de apresentação para tu, meu noivo, poderes entregar em todas as agências funerárias da Europa...
- Diz-me, então, aqui entre nós que ninguém nos ouve, é esse o teu flyer para a cerimónia?
- Eh… sabes que precisas de arranjar trabalho, mal tens dinheiro para pagar a renda…
- Vem te depressa!
(Tinoni… tinoni… tinoni… boing… boing… boing… triim… triim… triim…
Communication disconnected with success!)
- Eu, Hattar, humilde presidente da assembleia geral da Sociedade de Seres com Sexo, declaro que a musa estará cá dentro de cinco minutos sem atraso. A sua desculpa foi aceite. A razão do seu atraso é o gato ter-lhe rompido as meias e ela ter ficado indecisa em relação a que alternativa escolher.
(Triim… triim… triim… boing… boing… boing… tinoni… tinoni… tinoni…)
- Eis que chega, que as portas deste buraco se abram!
- […], aceita dar início à representação?
- Coolinho, coolinho, olha, acorda, tens aqui o leitinho quente e as torradas.
- Hum, hum, urur, ãh, ãh, o que foi? O que se passa? Quantos são? Quantos são?
- Coolinho, coolinho, vá lá, acorda!, tens aqui o leite e as torradas.
- Oh mãe, deixa-me dormir. Ela ia dizer Sim…
(...)
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"União de facto"
Claudio Mur
de 'Contos de fadas por Manuelle Biezon'
página 13