sábado, 30 de abril de 2016

Um site com fotografias eróticas

Rindo-se sozinho, o capitão levanta-se e vai até à janela, é uma janela das antigas, em modo guilhotina. Levanta-a. Sente a brisa de Verão. Mete a cabeça do lado de fora. Dá a ultima baforada e deita o cigarro fora. A casa de hóspedes é junto ao rio mas da sua janela, que dá para as traseiras, não se tem a visão da água. Antes, a sombra nas paredes da casa em frente, um bafo seco subindo pelas escadas de pedra centenária, lá em baixo, até Cha, na sua janela do terceiro andar.
«A mulher-elefante… não podia de modo algum durar…» pensa ele quando de repente uma nuvem passa e escurece a tonalidade da parede em frente, a sombra torna-se mais sombra e assombra-o porque se apercebe que a mulher com quem sonhou este início de tarde era, sem sombra agora de dúvida, a viscondessa.
«Pois é, mesmo que me faça forte e afirme o contrário, eu ainda gosto dela, o sonho não mente, ainda me faz sentir desejo, talvez um desejo não-consciente pois não quero mais ocupar-me com ela como faço com algumas mulheres que conheci no passado… sim, inconscientemente ela ainda me dá tesão, afinal ela nem sempre foi gorda… quando a conheci era tão magra que parecia uma borboleta com óculos… então, o que correu mal para que ela, a meus olhos, começasse a engordar… porque é inegável, ela estava tão magra porque não se podia alimentar, começasse a engordar, começou a transformar-se numa libelinha, numa libelinha com olhos grandes e furibundos, uma tira-olhos, uma cavalinho-das-bruxas, caralhos-me-fodam lá o diccionário priberam que me permite que uma borboleta se transforme em elefante!»
Cha volta para dentro do quarto e olha para o telemóvel, são quatro horas e quarenta da tarde, recorda que só tem mais dois cigarros e, portanto, vai ter de sair de casa e enfrentar o mundo. Apetecia-lhe comprar ganza, ainda tem algum dinheiro, mas ele agora pode ser só aplicado no essencial: o jantar que não pode cozinhar, o café onde vai ler a página dos anúncios de emprego, o tabaco de enrolar que vai aumentar brutalmente de preço. Reflecte que não pode hoje comprar ganza, e no entanto tem de sair de casa. Começa a sentir-se desconfortável em sintonia com os seus pensamentos.
«Porque correu mal? Quando foi que correu mal? Afinal, se na ilusão do teu sonho a mulher-elefante foi sujeito que não podia de modo algum durar, a verdade é que a tua relação com a viscondessa durou, com avanços e recuos, quase cinco anos?!» 
Aqui, Cha dá um suspiro de desabafo e diz que tem que admitir que, afinal, a viscondessa-elefante terá sido a mulher da sua vida, afinal as outras duraram pouco no tempo. «Duraram pouco no tempo, mas são eternas na memória, são longas as memória boas que delas tenho, ao passo que a mulher agora transformada em mulher-da-minha-vida se acabou por revelar uma sucessão infinita de miséria e problemas. O prazo de validade terminou, cansei-me de tudo, tive ciúme por fim e não foi bonito.»
Cha tem uma tendência para se culpar de todo o mal. É talvez uma questão narcísica esta, a de ele ignorar que numa relação há sempre o outro lado, às vezes, não compreende que o outro lado também tem motivos e razões próprios, e que ele próprio desconhece, pois não lhe é possível ler os pensamentos do outro lado, apenas intuir, às vezes erradamente, os pensamentos do outro lado nos olhos e no brilho particular que esses olhos apresentam em função de algo que Cha transmite, seja num diálogo seja num pensamento inaudível. Cha pensa que a viscondessa lhe lia os pensamentos e esquece-se que ela própria teve a sua culpa no desmoronar da relação. «Sim, eu tive as minhas culpas, mas ela no final tornou-se impossível, houve uma altura em que reparei que podia dar para o torto como, aliás, todas as minhas relações deram, mas com ela quis fazer diferente, quis ver se conseguia fazer durar a relação, saudável… relação saudável, pura e sem sombra de miséria, foram poucos meses é certo, o restante foi tentativa de compromisso, comigo a ceder cada vez mais. Sempre foi assim. O que foi diferente é que houve mais rupturas e reuniões do que nos casos anteriores. E houve pranto e houve gritos e ameaças de suicídio e comprimidos em excesso para dormir porque o desejo dela era às vezes desaparecer porque ela tinha uma vida passada como nem tu, nos teus maiores sonhos maus pudeste imaginar. E porque, quando voltavas para ela, sentias desejo físico e vias nos olhos dela amor e esquecias que nesses olhos havia muito de necessidade, de necessidades básicas como ter dinheiro para se alimentar. Tu quiseste ser o homem que a tirasse da miséria mas que lhe desse não só comida mas também cultura, um concerto num sábado ao fim da tarde, um livro, um poema sussurrado quando tudo o que ela queria era uma tarde na esplanada a comer tremoços e amendoins e beber finos. Para isso, é preciso ganhar dinheiro. Eu tentei fazê-lo mas até do trabalho ela teve ciúmes, ao que parece o meu trabalhar desviava a minha atenção da sua pessoa. Enfim, era mais uma situação impossível. Eu tenho de trabalhar, posso ter pai e mãe, família que tu não tinhas, mas tenho de trabalhar, não sou rico e não tenho culpa se qualquer merdinha te fazia ciúmes estúpidos!» diz Cha, agora nesta tarde, ocupado que está a recordar-se de coisas tristes que com ele se passaram.
«O que correu mal e foi certamente o princípio deste definitivo fim de relação foi eu ter aceitado aquele biscate, o de fazer para um patrão o site electrónico de uma prostituta brasileira, isso é que foi, e nem ganhei muitos euros, ter de passar uma semana a construir um site com fotografias eróticas e formulário de email para chat… foi de mais para ela, foi a partir daí que ela se resolveu a vingar, ou então não, os olhinhos que começou a fazer aos colegas de casa eram sinceros, sei lá!, uma tentativa de se vingar de eu olhar para fotografias de mulheres nuas mesmo em trabalho… oitenta euros… foi quanto ganhei, o suficiente para dinamitar a relação, daí até ela me dizer que queria que eu me fodesse todo, foram umas semanas. Que sa foda!, uma mulher é só uma mulher e eu ainda estou vivo, agora vou sair, são cinco da tarde, ver o sol, vou à jukebox pôr um disco de Jimi Hendrix, comprar tabaco e beber um copo de cerveja, já chega de recordação.»
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Claudio Mur

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Ressurreição


'Ressurreição'
desenho a pastel sobre papel
80cm por 60cm (aproximadamente)
2016
ZMB

Esta semana não estava totalmente concentrado
e o desenho não saiu como eu queria.
Disse à professora que era uma alegoria,
o primeiro dos 'Desenhos do outro mundo'.
Ela perguntou pela figura alaranjada e eu disse que era uma tentativa de desenhar
uma escultura, como muitas que se vêem nos cemitérios.
Falei-lhe que me tinha enganado nas proporções do pássaro
mas ela disse que, sendo uma alegoria, podia significar esperança.
Eu associei e disse que me lembrara das máscaras 
que os médicos da Idade Média usavam para espantar a peste,
disse que também tinha a intenção, embora ficasse com demasiada informação,
de desenhar uma ceifeira virando costas.
Notei-lhe o pormenor de um ressurecto vir à superfície
meio vestido meio esqueleto
e que na próxima semana ia tentar desenhar num novo desenho
o esqueleto a lavar os dentes.

De qualquer modo, estou em casa a trabalhar numa versão deste trabalho
em papel A2 e a cor, mostrarei em breve.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

A mulher-elefante

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Uma procissão lenta, a preto e branco, a caminho do cemitério desloca-se da esquerda para a direita. A seguir, um televisor. É com esta imagem que Cha acorda, a imagem de estar a ver televisão na sala de casa dos seus pais, em adolescente. Leva a mão ao bolso das calças, retira o telemóvel. «Quatro da tarde. Engraçado, estou a cantar mentalmente Joy Division. Hold in silence, don't walk away. Por outro lado, estou a sentir-me molhado… tss… é o que eu estou sempre a dizer, sou uma criança. Dormi três horas, dormi a sesta e tive uma polução diurna, conas-me-lambam!, mas não me lembro do sonho, estava cansado é certo, foram vinte e quatro horas de avalanche, a realidade supera a ficção, arranjei emprego, perdi o emprego, bebi cerveja… o Neca pagou-me copos a mais, vomitei em cima do Sancho, é certo que a conversa estava uma merda, o Neca a contar que vai para as obras em França já no Domingo que vem, queria que eu fosse no Sábado participar do churrasco de despedida mas eu disse-lhe que não.» Cha boceja, espreguiça-se, olha pela janela, «está um calor tórrido, imagina subir o monte durante uma hora para chegar a casa do Neca e dar de caras com ela… é óbvio que disse que não, nunca mais volto a subir aquela escada do primeiro andar!, afinal de contas, a consequência de tudo é eu estar aqui temporário nesta casa de hóspedes, não podia continuar a fazer de visconde naquela torre de controlo rádio, a dar música aos vizinhos, e depois ela disse que se ia mudar, que me ia deixar e mudar-se para um quarto no rés-do-chão, claro que não podia ficar lá e depois zanguei-me com todos, quando lhes apresentei a viscondessa todos gostaram do modo desembaraçado como aviou a louça do primeiro almoço partilhado de Domingo, além disso, sabia contar histórias… caralhos a fodam agora!, chateei-me com todos, anos a lutar contra o seu ciúme (que não tinha razão de ser) e no meio de um jogo de Queime-se quando eles faziam sinais eu dei um murro na mesa, enfim nunca digais desta água não bebo mas não, Neca, não vou lá no Sábado.»
Cha está ansioso, sente-se acossado, não sabe em quem pensou enquanto estava a dormir, não se lembra de sonhar, volta atrás no tempo da memória e recorda que adormeceu a pensar. «Mas em quem? Em qual delas? Ah cabrão há várias que uso de vez em quando, não foram assim tantas seu otário, mas desta vez não foi premeditado, o sonho nunca é consciente, seria a Maria? Nunca fui tão bem comido como com ela… nã. Seria a Joana? Ai as saudades que eu tenho da Joana e de ouvirmos Os cantares do Andarilho… ai tirana saudade és um cortinado roxo que me morde o coração… teria sido a Maria Joana, essa mulher totem, essa juíza de paz?, a pintora não foi de certeza, essa elinha de cabelos amarelos de má-raça!, ou teria sido a Icata platónica, essa de quem perdeste o tempo de conquista e, quando finalmente chegaste, atrasado, ao essencial na vida, ela tinha-se transformado em beleza literária num vestido alaranjado muito faux-pas-attendre… não… não foi com ela que sonhei, lembro-me agora, lembro de adormecer a pensar num banco, de poder ter vindo a ser o banco dela, lembro-me da senhoria, teria eu sonhado com a filha de uma senhoria qualquer e futura, serei eu, no futuro, banqueiro?»
Cha leva a mão à máquina de enrolar. Ainda tem tabaco para três cigarros, decide enrolar um. «Eu devia era tomar novo banho, fazer a barba, às vezes a resposta correcta é a mais simples, vou fazer café.»
Cha levanta-se da cama, abre a porta do quarto e dirige-se à cozinha. É pena o fogão ser eléctrico. A sua cafeteira não serve. O que vale é que a dona Zelda lhe emprestou um fervedor e um coador. Assim, Cha faz café à faroeste, ferve água e côa os grãos. «É o que temos. De qualquer modo, com o fracasso do trabalho, tenho mesmo que esperar pela convocatória para o rendimento mínimo, não posso agora mudar o registo do cartão de cidadão, não posso mudar agora de morada, pelo menos até receber a primeira prestação… o banco da minha o banco da minha… disse a senhoria no meu sonho, oh não pode ser!, não me digas?!, de facto houve uma mulher na minha vida que disse que eu era o banco dela, será que eu sonhei com a mulher-elefante?»
Enquanto a água ferve, Cha vai ao espelho da casa de banho, mija, decide não tomar banho nem fazer a barba, a lâmina de Occam deu-lhe a resposta que precisava, além disso, o inchaço não é muito pronunciado, passará bem por olheiras profundas, pelo menos quando observado à luz fraca do cubículo. «Sonhei com a mulher-elefante, eheh um dia teria de voltar a ela, talvez um dia conte com mais pormenor, a nossa paixão foi obsessiva, não poderia de modo algum durar.»
Cha volta à cozinha. A água está no ponto. Lança para dentro do fervedor os grãos de café de moagem grossa. Com o pano pega no fervedor e leva-o para o quarto, côa agora o café para dentro da caneca, e assim se faz alegria, não tem fome, o café tira-lhe os restos de ansiedade e deixa-o divertido a pensar na mulher-elefante. «Que postalete, quando ela me disse uma vez que tinha sido nove a dois!, era uma portentosa contista, sabia fazer» 
Cha refere-se a um jogo sexual entre os dois, como num jogo de futebol em que o golo é o orgasmo do parceiro. A mulher-elefante dissera-lhe uma tarde: «9-2» O capitão põe-se a recordar: «pois eu tinha ido de autocarro ao estádio para uma entrevista de emprego que correra bem, nesse dia havia greve dos transportes pelo que a volta, depois da rotunda da bouça para abastecer e comemorar em casa, se fizera a pé, uma hora e meia de caminho, o calor era tórrido como hoje mas eu estava bem nessa tarde, ela ficara a dormir na torre de controlo rádio, eu cheguei, fiz a broca e chamei por ela minha elefanta minha amora consegui o emprego, ela teve vontade de fazer, de me fazer a festa, afinal a minha mulher-elefante sempre gostou de homens que lhe trouxessem dinheiro para casa, decidiu recompensar-me, meu banquinho minha pedrinha, disse, eu aproveitei para pôr a tocar no leitor de mp3 o álbum Viagens do Pedro Abrunhosa, era o ídolo dela, o seu músico de slows, sabia as letras de cor, começámos a fazer, a cantar em dueto por cima das músicas tocando em repetição, agradável realmente saboroso, vim-me uma vez, parámos para fumar mais um, ela disse que já se tinha vindo três vezes, a sério?!, a princípio não acreditei, mas ela disse três golos pequeninos, pelo que continuámos a jogar o amor, o disco tocou à vontade três vezes completas e nós naquilo, às vezes parávamos porque nos cansávamos, fumámos mais, pusemos Buraka, vim-me finalmente a segunda vez, fiquei saciado, acho que houve momentos em que te fiz feliz minha mulher-elefante, pelo menos, a avaliar pela expressão dos teus olhos mas nove a dois, não sei, parece-me exagerado rai's-nos-partam!»
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Claudio Mur
em
'O estranho caso do Capitão Mancha e do Cê Sancho'

segunda-feira, 25 de abril de 2016

domingo, 24 de abril de 2016

O desejo de um bom café de saco

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Mas, apesar de toda a vontade, Cha despediu-se ao fim de quarenta minutos de trabalho, tinha sido empregado de bar durante uma temporada nos seus tempos de estudante, há duas décadas que não servia vinho a ninguém, nem colocar o avental de trabalho soube, foi chamado à atenção, aguentou, explicou-se, voltou ao trabalho, mas veio-lhe à garganta um sabor tão seco que disse «que se foda, esta vida não é para mim», entregou o avental e o saca-rolhas de serviço e foi à sua vida. Foi afogar as mágoas num copo de cerveja, embebedou-se ou embebedaram-no e vomitou em cima de quem estava sentado a seu lado, levou um murro no focinho, o amigo, a quem ligou após sair do restaurante para tentar esquecer o fracasso profissional, deu razão ao agressor, Cha acabou por o ignorar e fugiu dele para dentro de um clube de música reggae, deitou-se às seis da manhã, às nove levantou-se, tomou um banho, reparou no inchaço na face esquerda e foi guardar a sua cadeira na cantina da caridade, disse «preciso de deixar a casa de hóspedes, tenho que ter acesso a um fogão, tenho que poder pôr uma cafeteira ao lume e tomar um bom café de saco, não preciso mais de aturar intrigas, comentários, falsas vozes e falsos amigos, olhares inimigos ou aproveitadores.»
Comeu com fome, soube-lhe bem. Voltou de seguida ao quarto e deitou-se ao comprido na cama. Deixou que as ondas no estômago lhe chegassem ao cérebro, as pálpebras começaram a relaxar, a pesar, o corpo a pedir descanso, sentiu-se adormecer ouvindo a mente falar dele na terceira pessoa, ele, o capitão mancha com sintomas de despersonalização, ouvindo a mente desenvolver um solilóquio hipnagógico pontuado pela respiração cada vez mais lenta, perguntando-se «onde foi que perdeste a vontade, pareces congelado, em ti tudo hoje é aparente, onde está a utopia de nascer suburbano e transcender o destino, vives num quarto com as condições mínimas, tens tempo, tens de o ocupar, tens de recuperar a chama, não pode ser só depois-mais-tarde, depois de tudo, onde foi que perdeste a vontade?, e eu Cha respondo-te capitão… há muito tempo imaginei-me e escrevi-me com mais trinta anos e pus-me a dialogar com o eu que escrevia nesse momento, no fundo uma metáfora do envelhecimento e este nota-se hoje no meu rosto no busto de mármore a minha barba já tem tufos grisalhos e o prazo dos trinta anos não se esgotou ainda, sou como que uma criança velha, às vezes preciso de usar óculos, esqueço-me do que fiz, quis ser cantor e cheguei a ministro e a personagem que escreve tem dedos grandes e pára a frase para pensar, fumar, olhar pela janela os telhados das casas que foram ficando devolutas e sendo ocupadas pelos mil que vivem na rua, o eu que escreve já não tem prazer em descrever o dia-a-dia que ouve do pouco contacto humano que recebe agora, o pensamento surge e a masturbação da caneta é lenta, agora ganha fôlego, um dia trocaste aquilo que parecia o mais perto possível da felicidade por menos que nada como se fosse uma rebelião necessária e amanhã trocarás esse nada pelo pouco que ainda resta, uma malga, uma manta e chinelos descosidos nos pés… para quê ir ao café participar de um escândalo se posso ficar o serão a ler um livro?, tento não estar presente, não assistir à realidade, fujo para dentro de mim, eu não aceito decisões que se baseiam em violência… tento varrer a violência mas há muita debaixo do tapete, não quero mais esconder não a suporto prefiro não a ver dói-me pensar que eu também fui violento em certos momentos, hoje com vergonha fujo da confusão porque eu, em escala, já vivi esta vida, essa vida de violência… todos os dias tiros, facadas, vigarices, desresponsabilizações, escândalos, jogos políticos, interesses, quando parará tudo isto?, nunca tive uma relação social que fosse ou pudesse ser considerada como normal-entre-iguais, passo a vida a mudar de local, chamo-lhe o meu covil, eu… o capitão mancha acha-se um lobo mas as pessoas riem-se dele ou tratam-no como um tolo, um sempre-a-rir, alguém maleável, alguém manobrável, alguém que não faz mal a uma mosca mas que pode servir para desenrascar a gulodice, algum útil que facilmente se manobra para se tornar o burro de carga, o bode a quem se atiram as culpas, a palavra chibo é exagerada mas até o capitão a usa de vez em quando, o capitão está convencido que pelo seu simples acto de pensar as acções imaginadas logo se materializam, é aqui na materialização do pensar que consiste a chibaria, logo os actos privados, as ideias são tornadas públicas às vezes com ligeiras alterações no pormenor ou na sequência que ele atribui ao carácter evolutivo e ecológico, o capitão mancha vê constantemente notícias, textos nos jornais e pormenores que se lembra de ter pensado, de vez em quando aparece alguém no éter que o capitão conheceu, pode agora ler o que as pessoas fizeram da sua vida, o capitão mancha sente que não tem vida, ainda há bocado o capitão pensava que foi descendo cada vez mais o seu limiar de sobrevivência que agora, completamente só, sente que já não tem vida mas que vai-se-andando, poderia ele dizer aos poucos que o incomodam com um aperto de mão e umas palavras… tenho que concordar com o capitão e dizer que talvez devido ao seu rebaixamento social a que quase voluntariamente se sujeitou, os seus amigos são poucos e de baixa qualidade… há os cabrões e os otários, os cabrões não duram para sempre, ou morrem ou se tornam otários com tetas para mamar… o capitão mancha sente-se um otário… o Sancho chamou-me ótario ontem… o capitão diz que herdou a parte má dos seus progenitores, diz que do pai herdou o valor da poupança e herdou também aquela vontade de não falar com ninguém, essa dureza de se achar burro por só ter a quarta classe e não saber falar de nada. O capitão mancha, ao contrário do pai, tem estudos mas pouco fez com eles, o capitão fez tudo o que o pai não fez, o pai tem a quarta classe mas manteve o mesmo trabalho durante trinta anos, pelo contrário o capitão mandou o curso à merda, ou seja, não fez nada com ele e hoje está completamente desclassificado para trabalho, nem voltar ao ramo da restauração onde há vinte e poucos anos ganhou alguns cobres em part-time enquanto estudava um curso mal escolhido, o capitão mancha diz que escolheu o curso porque ele dava dinheiro mas, lá no fundo, era na área de trabalho do pai. O filho Cha quis seguir o caminho do pai mas o pai não achou bem. Talvez quisesse que eu fosse porteiro ou político facilitador mas mete-me nojo o aguenta-aguenta, mete-me nojo o falso somos-o-que-escolhemos-ser, porque não basta ter voz quando não há padrinhos a ensinar como abrir portas e o meu padrinho morreu morto por um homem-morcego e eu sinto-me um joker quando toda a gente que me conheceu antes tenta perguntar o que correu mal, quando não o sabem ou quando têm perversa curiosidade. Têm na memória alguém que já não sou eu. Há dias em que penso ter tido pouca consideração pela minha própria sobrevivência. Caí em situações impossíveis. Foi isso que correu mal, tive o desejo insensato de conhecer a miséria, de sentir a fome. Quis ver se sentia a realidade picar-me a pele, quis ver se sentia dor, se jorrava sangue, se era humano e estava vivo ainda ou se era um robot, uma marioneta mario neta a neta do mário não dei um único neto ao mário o nome acaba comigo talvez o mário pensasse que o filho queria com os estudos adquiridos passar à sua frente, mandar no pai onde já se viu talvez o pai pensasse como os psiquiatras em A-morte-do-Pai, quando sou eu, meu pai, que estou a morrer eu não vou ter a tua sorte quando algo me for detectado já só sairei do hospital directamente para o cemitério ou nem isso será a senhoria que virá bater à porta para cobrar a renda porque o senhor capitão não tem aparecido para me pedir que lhe lave os lençóis se faz favor… era tão bem parecido… um pouco choninhas… poderia ter sido o banco da minha…» 
Cha adormeceu. Finalmente. Esquecido num orgasmo do nome que o sonho ia evocar. Paz à sua alma.
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Claudio Mur 
em
"O estranho caso do capitão Mancha e do cê Sancho"

sábado, 23 de abril de 2016

Espelhos

em 1996:


'O espelho'
lápis e pastel de óleo sobre papel
33,5cm por 43,5cm (com moldura)
1996
ZMB



em 2008:

The vault of Paris

desenhos A5 a caneta azul 
digitalizados a preto e branco


fotografia de época:



sexta-feira, 22 de abril de 2016

As cidades ocultas. 2.

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Não é feliz, a vida em Raissa. Pelas ruas a gente caminha torcendo as mãos, ralha com as crianças que choram, apoia-se aos parapeitos sobre o rio de cabeça nas mãos, de manhã acorda de um mau sonho e começa logo outro. Entre as bigornas onde a toda a hora se esmaga os dedos com o martelo ou se pica com a agulha, ou nas colunas de números todos tortos dos registos dos negociantes e dos banqueiros, ou diante das filas de copos sobre o zinco dos balcões das tabernas, ainda bem que as cabeças baixas nos poupam a olhares turvos. Dentro das casa é pior, e nem é preciso entrar lá para sabê-lo: de Verão as janelas ressoam de brigas e de pratos quebrados.
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: -- Alegria minha, deixa-me pintar-te! -- a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada po uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola po um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».
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,página 150-151
"As cidades invisíveis"
Italo Calvino
Edição Teorema

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Enquanto foi possível não ser incomodado pela polícia municipal,

mostrei o meu trabalho, pensava que a rua era um museu onde se não pagava bilhete.
Depois eles vieram e disseram que a rua não era local permitido para expôr,
Safei-me de uma multa de 100 euros e de me ser apreendido o «produto não permitido».
Ocorreu em 2014-2015 na ribeira do Porto.












segunda-feira, 18 de abril de 2016

Meister Cão


'Meister Cão'
óleo sobre tela
40cm por 40cm
2016
ZMB

Mais uma tela reciclada.

Este trabalho pertence ao Espaço T.

É o trabalho-companhia da 'Lady Cão':

sábado, 16 de abril de 2016

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Van der Graaf Generator - Meurglys III (The songwriter's guild)




do álbum de 1976
'World Record'
Van der Graaf Generator

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O saudoso jornalista Fernando Magalhães referiu-se a esta música 
no jornal Blitz fins de anos 80
como um blues branco.
Nos comentários do tubo faz-se referência a reggae.
Demorei algum tempo a compreender que por baixo do solo de guitarra
se javarda um secção rítmica em tom reggae.
As palavras são simplesmente belas.
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Palavras de Peter Hammill:

These days I mainly just talk to plants and dogs,
all human contact seems painful, risky, odd,
so I stay acting god in my own universe
where I trade cigarettes in return for songs.
The deal's made harder the longer I go on:
I find me gone from all but secret languages.

If only I could phrase satisfactory words
in conversation, to make my passion heard,
if only....

Meurglys III, he's my friend,
the only one that I can trust
to let it be without pretence,
there's no-one else.
It's killing me, but in the end
there's no-one else I know is true,
there's none in all the masks of men,
there's nothing else
but my guitar...
I suppose he'll have to do.

Talking in tongues is easy when you know how,
quite pleasing, but still nothing works out right.
Pressurised lungs, heart bleeding, you'd better slow down
and show that you can make it through the night.
However dark it seems, the present is just the present,
beyond it no further darkness lies concealed
and through these desperate dreams,
this longing for friends and comfort,
you know that in the end all will be revealed.
When no more plants or dogs or rooms are there to hear you,
and no-one is left near you, then you'll see:
in the end there's only you and Meurglys III,
and this is just what you chose to be.
(Fool!)

Though I know all this is just escape,
I run because I don't know where the prison lies.
In songs like this I can bear the weight;
I'm running still,
I shall until,
one day, I hope that I'll arrive.


terça-feira, 12 de abril de 2016

É preciso saber ouvir, é preciso querer ler compreender.

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Nota prévia: 
Eu geralmente escrevo os meus textos ou em papel ou no computador, depois eles ficam a marinar quase que esquecidos às vezes meses, de modo que aquilo que escrevo se torna sempre passado ao qual eu, no momento em que a ele volto, acrescento mais uma camada de pensamento, corto, coso, rasuro, exagero, dou voz presente: 

Chego agora ao café. Esperava ler o jornal mas não está disponível. 
Chego hoje mais cedo porque estava cansado de estar fechado no quarto a transcrever os cadernos. Li também alguns emails antigos que enviei: vejo que nada faz sentido, vejo que perdi para sempre a chave de descodificação do texto. Ando a transcrever momentos pessoais ocorridos por alturas do meu último internamento. Verifico que os discursos estão cheios de ódio e em voz alta, em erro ortográfico sucessivo. Algo em que caio em estado de descompensação. Ódios contra a família, individualmente e também contra médicos, enfermeiros, auxiliares, polícias, políticos, os internamentos são sempre políticos. Se há alguma verdade no grito, é tudo retorcido. Ódio contra tudo e todos. Este ódio é uma reacção a um veneno. Quem eu odeio lá no fundo sou eu-próprio porque não me acho capaz de uma existência saudável. Agora já não tanto, estou mais equilibrado, começo a aceitar a minha condição. Aliás, se eu hoje consigo falar sem constrangimento com a minha psiquiatra é porque andei anos a psicanalisar-me a mim próprio, a falar comigo próprio porque não tinha ninguém com quem falar e, assim, falava alto e respondia alto a mim próprio, seja entre paredes, seja na rua, no autocarro, ai valha-me cão!, o espectáculo que eu não dava… Nessa altura, não confiava nos médicos, não achava que o meu problema fosse de saúde, era um ignorante, um ovo de cegonha num ninho da torre do castelo. É preciso saber ouvir, é preciso querer ler compreender. 
Quando ocorria o que ando a transcrever para o computador, tentando agora transcender e dar-lhe brilho, eu projectava o que escondia, motejava em elipses herméticas slogans relacionados com aquilo que reprimia, nomeava, insultava e dizia «eu não, eu não sou assim, eu gosto da revolução.» Era isto que eu dizia. Escondia porque não acreditava ser possível tanta miséria, chegava a pensar ser apenas imaginação minha ou, então, factos plantados por alguém numa tentativa de roubo da consideração pessoal, de invasão do eu. Escondia para que se não soubesse o porquê de me sentir ofendido. «Não gosto de dar parte de fraco, a estátua tem de se conservar.» Isto aconteceu mesmo em plena urgência de pré-internamento compulsivo, eu preferia que me deixassem em paz mas obrigavam-me a falar e eu, querendo esconder o que penso ser facilmente acessível sem palavra-passe via telepatia wifi, verborreava porque pensava que eles sabiam todas as respostas às perguntas que me colocavam e, portanto, só poderiam estar a querer que eu confessasse. Mas confessar o quê?! Então, foda-se!, explodia generalidades boçais e retorcidas para colocar uma palavra-passe e desviar os curiosos (e eles escreviam: comportamento hetero-agressivo). 
O efeito de repetição é tal que se me desvio do assunto, este torna-se incompreensível, fragmentado, poesia de voz de cuco. e perante tal espécime de idiota, cada um lava as suas mãos, segue em frente, diz «eu tentei ajudar-te» e eu fico pelo caminho, usurpado e reduzido à insignificância, mas com mais um texto escrito e datado, cheio de segredos, a verdade esquecida para sempre debaixo da consciência. 
As pessoas esquecem, outras não perdoam, e eu muitas vezes fico na história como a ovelha negra, o tresmalhado, o que disse que louco governava, as palavras foram essas, as minhas. Utilizei a linguagem e o volume de som de um louco mal educado. A minha diferença era não saber, não ter consciência de estar a ser hipócrita como quase todos e achar que o meu agir era o melhor, pensei que a razão me assistia e podia justificar os meios utilizados, mas os fins quais eram? Oh, esqueci a maior parte das ideias que tive, perdi a consciência, o espelho, no qual a última ideia estava escrita, estilhaçado acabou por se partir. 
É verdade, eu tive um espelho em madeira que se partiu por descuido numa limpeza de quarto, e foi como se, nessa limpeza, se tivesse quebrado finalmente a ideia de que eu me embruxara a mim próprio com voltas e reviravoltas, com o «nunca olhar para trás», foi só nos cacos do espelho sendo varridos juntamente com terra, serrim, lixo orgânico, baratas mortas, picos de ganza literal mas ilusoriamente mineralizados… foi o que disseste um dia a um convidado, «esta pedra é agora uma rocha, olha, mineralizou!» É natural que esse amigo te achasse louco ou achasse que o estavas a gozar e se afastasse. É, por isso, natural que não tenhas amigos. 
Ah, reler o que se salvou do passado, para ver como fui, ou melhor, para tentar descobrir quais os factos que, mesmo sendo retorcidos, passam o crivo do esquecimento, não penso que seja isto literatura, quereria talvez transformar estas palavras em ouro mas só me aparece lixo. Chame-se erros ou não a tudo isto ou, menos punitivamente, se chame experiências de crescimento necessárias, não é preventivamente saudável esconder ou, à força, reprimir. Outro exemplo: as vezes, pergunto-me se vale a pena atirar pedras quando na nossa casa chove, pergunto-me se atirar essa pedra não é querer que o próximo baixe à nossa condição, «para veres o que é a realidade e não dizeres mais asneiras.» 
Sou arrancado a estas divagações por um telefonema da minha mãe e digo «está tudo bem, não se preocupe, tenho tomado os comprimidos, para a semana volto», digo apenas isto para a não preocupar, ela já não tem idade para isso. 
Saio do café. Caminho para o quarto. Abrando para enrolar um cigarro. Sou abordado por uma voz grossa que me tenta cumprimentar. Olho. Vejo o cabelo grisalho de um antigo colega que já não via há mais de sete anos. Vamos pelo passeio abaixo até ao teatro, onde nos separamos. Fico a pensar no que me diz: «As más notícias sabem-se sempre.» Mas fico também a pensar que nem todos guardam uma má-memória de mim e que, apesar de todo o teu passado, ainda há quem te queira voltar a apertar a mão. É como no provérbio sufi que diz qualquer coisa como «não encontrarás o que procuras mas só o encontrarás procurando», isto parece absurdo, é provável que a frase esteja distorcida mas… se eu estiver calmo a calma virá até mim. 
É raro mas, às vezes, acontece.
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Claudio Mur

O desaparecimento


de uma artista iémenita
(retirado do linkedIn)

domingo, 10 de abril de 2016

A Joana Adicção diz:



Nos comentários a este vídeo no ytube escreve-se que
esta música é um símbolo da geração x

A letra e a interpretação pode se lida aqui:



E este, em baixo, é o meu tributo a JJ que conheci:
'
Antes que regresse já num comboio na linha do norte e depois do café às sete da manhã em pirinéus bascos, sem chuva do lado de cá da montanha, lembro-me que todos temos um vidinha mal cheirosa e todos falamos mal da vida dos outros, recordo essa jj, ela merece um poema solidário e a pré-história neste caso não interessa muito: We are doomed my friend fiend. Não interessa quando te vejo pela primeira vez perdida na abdução por assassinas pedófilas e paisinhos de farmácia, foi há uns anos. Eu pareço à minha pessoa já uma couve frita. O que parece aos demais não o sei bem. Tantas opiniões ouvidas por detrás dos ombros. Tantas dúvidas se se está a fazer a história ser irreversível e por isso já um facto secular ou se se está a abolir o tempo sendo livre para criar o que quer que seja pintando pinando pinando pintando mas pouco, muito pouco, muito gordo parecido com um garrafão onde se pode apoiar a cerveja, agora mini, para fazer um moks que não bate devido à pastilha. Se o dou a entender não sei mas sei que sou uma couve frita, tudo bem que se pode argumentar que mesmo a couve tem alma mas frita?! Eu exalo um cheiro a porco assado saído do dentista. Por isso a minha história não interessa e falo-te como o meu pai nunca me falou. Não te conto para que me julgues ou pode para isso ser mas para que possas no futuro decidir pela tua cabeça. Aliás tu ainda nem existes nem espero que alguma vez existas a não ser por acidente ou por mudar de opinião e assuma a responsabilidade de durante toda a vida te pôr sardinhas no prato e nunca te deixar ir para a escola roto ou descalço, sem lápis borracha. Se te tiver terei de ser responsável e transmitir alguns valores e eu duvido que tenha alguma vez sustento estável, é uma sina que não quero que seja a tua. Mas falava-te dela? Diz-me minha mãe que está internada. Falou com a avó por telefone. A avó está com uma depressão. A mãe está separada do pai. A neta está internada. O irmão tem um part-time. A minha mãe diz-me estas coisas ao jantar no final do jogo do euro. Diz-me que jj falou de mim. Diz-me que ela está a ter melhorias, que está muito bem. Está numa clínica privada. Ela falou de mim. A avó tinha-me dito há uns meses atrás para eu ver se a jj se deixava internar. Eu desinteressei-me do caso mas digo à minha mãe: Interná-la?! A culpa é dos pais. Eles é que se desentenderam, ela deu-me a entender isso pelo modo como reagiu quando lhe perguntei pelo pai depois de perguntar pela mãe, eles é que a puseram num colégio interno aos doze, não quiseram ou puderam tomar conta da educação da filha. Ajudar a interná-la, mãe?! Eu que também estive estou dentro. Digo à avó dela: O que ela precisa é de um namorado. Pois é… suspira a avó. Você podia ajudá-la… diz a avó. 
Eu que não tenho nada ou eu que tenho muitos objectos e que por isso não sou livre de me mudar sem ter que levar todos os objectos atrás, eu hoje tenho muitos objectos. Quando foi tempo de partir e pari sozinho para nunca mais voltar, para ter futuro e não passado, tinha poucos objectos, menos objectos e mesmo assim levei os objectos e as memórias que encheram duas malas de viagem e voltei mais tarde com ideias para novos objectos, novas ideiotas. Eu que não tenho nada mas muito objectos. Ela falou de mim, de mim que não tenho nada mas que gostaria de ter, mas ter quem? Afinal eu até curto a minha solidão. Qual é o meu tipo de gaja, eu que não tenho gaja? 
Conheço verdadeiramente jj na esplanada, eu estou sentado esperando que chegue alguém com um pinheiro para desbastar e chega ela e senta-se alegre desbastando o seu último pinheiro. Pergunto-lhe se é possível arranjar nalguma bouça uns quantos pinheiros para fazer a árvore do natal que se aprochega. A minha ideia no íntimo eu sei qual é, é pintar pinando pinar pintando com ela o pinheiro. E assim foi, vamos à procura do pinheiro, entramos no autocarro, saímos no semáforo da bouça e caminhamos. Quando voltamos ela fica para trás, fico informado de que ela gosta de outros arbustos aos quais está presa. E presa hoje está numa instituição e (pode ser só a avó deitando a asa com isco para cima do meu ombro de peixe, pode ser só a pontuação de minha mãe ao retransmitir o que a avó lhe disse ao telefone ao jantar…) ela fala de mim. Porquê? Porque há uma ligação entre nós, uma certa afinidade. Ambos estamos perdidos. Há um dia em que eu tomo o meu carioca de café e fumo o meu amber leaf e tu à noite entras e sem mais nem menos me perguntas: Tens? Eu disse que sim. Vamos? Eu pago e vimos. Entramos. Ofereço-te o sofá, eu fico na cabine do DJ, abro a gaveta e retiro a pedra. Corto e enrolo. Fumamos. Ouvimos música. Silêncio. Não há ainda muito para dizer embora eu tenha febre. Tu aparentas febre. Fumamos mais. Passa psychic tv ou thee majesty. A música de natal e então eu falo, digo que tu pareces capaz de manter uma pose, calada, a fumar, que pareces vibrar no teu interior em turbilhão, digo-te que quero que poses para mim e que eu pago, vês? Eu sou honesto, eu pago pelo serviço, pago-te cinco euros à hora. Já não me recordo das suas palavras mas eu penso que ela adivinha a minha solidão, eu estou disposto a pagar para pinar, desculpa, pintar. Então ao nos despedirmos nesta noite, aqui eu recordo as tuas palavras com algum orgulho ferido: então se me quiseres desenhar telefona. A esta ironia respondo com alguma simulação de desprezo: um dia destes… o certo é que mando a mensagem telefónica no sábado seguinte. E voltamos a fumar, faço um desenho, tiro fotos, ouvimos música, começamos a falar, ouço pormenores, gravo-te um cd, vomitas-te no chão por duas vezes na mesma noite, chateamo-nos, pedes desculpa uns dias depois, dizes que precisas de ajuda, dou-te de comer, fazemos passeios entre cigarros enrolados, somos saudados por vizinhos que nos vêem quando voltamos da lojinha – tu com dois discos de vinil, eu com um espelho-porta de guarda fatos – alucino, zango-me quando condescendes que eu te beije mas cerras os dentes, beijo-te os dentes alucinado ao ver o joguinho de menina na idade que pensa que pode ser fatale, ah se eu te desse vinte euros tu farias um servicinho, insulto-te em pensamento e afasto-te ao fim de alguns dias porque me canso de estares perdida. Pois se eu estou perdido não quero nenhuma perdida, embora tu poderás pensarás que eu não estou perdido e que te posso ajudar. Falas de mim, diz a tua avó por telefone à minha mãe… falas de mim a quem? Eu hoje ao jantar no fim do jogo do euro, objecto à minha mãe: Melhorias? Eu quero ver cá fora como será… a verdade é que tento telefonar à tua mãe ainda esta noite mas a central telefónica indica número não atribuído do lado de lá da linha. Eu estou perdido mas quero ir ver-te aonde estás. Solidariedade, pena? Não sei bem definir o porquê. Digo à tua avó: Mas como sabe que ela não me arrastará? Eu tenho afecto à sua neta, eu estou a fazer um quadro dela.
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Claudio Mur em 'Hobo em memória cache'


'we are doomed my friend fiend'
oil on canvas
2008
ZMB

Internet Bizarro


by Loui Jover

sexta-feira, 8 de abril de 2016

A solidão é impossível pois está povoada de fantasmas

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Naquele dia, quando chegou a hora de recolher às nossas sinistras dependências (não sei como chamar àqueles miseráveis quartinhos para desequilibradas), fiquei a pensar na escrita daquele pianista desconhecido provavelmente criado pela imaginação perturbada de Rita, e lembrei-me que há quem escreva cartas para vingar-se de alguém, ou de alguma coisa, ou então para fugir da obsessão constante da morte ou para fugir do grande bocejo universal, ou simplesmente para passar o tempo, o que já é muito, e assim fugir da loucura que, mais tarde ou mais cedo, nos ameaça a todos, e pensei que se a loucura era todo um mistério a escrita não o era menos, e que, em qualquer caso, nas mensagens do pianista da Hungria o que predominava não era o mistério da loucura mas antes, pura e simplesmente, o mistério da escrita: o mistério de cartas como esta que te escrevo para celebrar uma invenção que me mantém afastada do desespero maníaco, porque eu sinto-me fora de todo o perigo desde que escrevo cartas, mas sobretudo desde que descobri que dessa invenção tão prática podia surgir na prática uma invenção ainda melhor e mais verdadeira.
Comecei a intuí-lo no dia a seguir ao meu encontro com Rita, quando esta me deu a novidade que ia mudar a minha vida. Disse-me que acabava de roubar ao médico a carta oculta do pianista, a carta que até então não tinham querido entregar-lhe. «Talvez tenham tentado esconder-te um texto com um conteúdo desagradávl para ti», sugeri-lhe. «Nada disso», comentou Rita, e mostrou-me com um gesto triunfal a carta roubada, depois sorriu enigmaticamente e disse: «O que acontece é que não gostaram nada de ver quem a assina.» A novidade surpreendente consistia em que nessa ocasião a carta estava -- com uma caligrafia mais que borrada -- assinada. O texto, por seu turno não era tão confuso, e era tão breve que se tornava impossível que houvesse espaço para que o conteúdo fosse quer agradável quer o seu oposto; ia mais além da brevidade possível nas mensagens escritas: «Fi», dizia em Baltonszárszo. (...)
Após o texto mínimo, embora contundente, podia ver-se a microscópica e mais do que esborratada assinatura, ilegível a qualquer luz e para toda a gente, salvo para Rita.
«É Barrymore», disse-me com o seu melhor sorriso e olhando-me com uma estanha inquietação e ânsia. Senti como se naquele instante, na duração e no brilho daquele olhar único de Rita, se tivesse encarrilado o meu destino, e não estanhei que isso tivesse acontecido, pois de facto eu tinha andado em busca dele, o mais conscientemente possível e cheia de vontade, ali mesmo naquele hospital. Ninguém deixa de obter aquilo que anda à procura, e eu tinha ido a esse manicómio precisamente em busca da confirmação de uma grande suspeita: a de que a solidão é impossível pois está povoada de fantasmas. E eu fora a esse manicómio precisamente em busca desse momento único que, após ter sido guiada por uma obscura mas certeira intuição, acabara por encontrar na intensidade e agitação do olhar da minha amiga mais terna, mais louca e inseparável. E deixei de dar voltas ao assunto. Fui ao gabinete do doutor Freud e despedi-me dele: «Vim para ver a minha amiga Rita Rovira, e já a vi, de modo que me vou embora.» O médico ficou a olhar-me por cima das lentes a cavalo na ponta do nariz e quase me enterneceu. Pobre homem, sozinho com a sua maldita ciência e sem imaginação. Era evidente que não entendia nada. Desesperado, começou a remexer em papéis, a consultar fichas, a lançar olhares assassinos aos embaciados vidros dos seus óculos e da janela, e finalmente acabou por levantar-se e dizer-me num tom crispado, tão ridículo como patético: «Aqui não há nenhuma Rita Rovira. De modo que essa amiga é uma invenção sua.»
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,páginas 125-127
'Suicídios exemplares'
Enrique Vila-Matas
edição Assírio & Alvin

Suicide, the dream ing tense


'Suicide, the dream ing tense'
óleo sobre tela
50cm por 40cm
2001 - 2016
ZMB

O ano 2000 começou mal para mim, 
terminei o mês de Janeiro sendo internado no Conde Ferreira.
Coincidiu com, ou porque a minha mente se acalmou, o final do acto de escrever 
[o que viria a ser o primeiro rascunho do livro] 'Kcoillapso.'

Este livro tinha um capítulo por cada letra do alfabeto
e cada capítulo tinha uma numeração algo obscura e um título
e um desenho de capítulo associado além de desenhos interiores ao próprio capítulo.
Cada capítulo tinha igualmente propostas de audição sonora que 
ou estavam relacionadas com o conteúdo do texto ou 
com a audição no momento em que o texto foi escrito.
Ou seja, era um complexo encadeamento de ideias baseadas em factos reais.

Com o decorrer do ano 2000, tive a mégalomana ideia de, a todo este sincretismo,
juntar mais uma camada: quadros pintados a óleo sobre tela, um por cada capítulo.
Este trabalho é assim o portal do capítulo:

'V Chapter IX Suicide the dreaming'
Astonishing Urbana Fall: Acetaminophen

em português: 
in english:


'Acetaminophen' é o título de um CDEP com quatro temas
dos Astonishing Urbana Fall, editado em 1996:



Em baixo, fotografia de época:


quarta-feira, 6 de abril de 2016

O triunfo dos pobres


daqui:

Birthday present


aguarela sobre desenho (em traço preto) 
impresso a laser sobre papel A4
2016
ZMB

No final de 1997 quando fui estagiar para Cork na Irlanda,
a minha irmã enviou-me uma fotografia dos seus tempos de caloira.
Essa fotografia serviu de modelo a um desenho e a uma pintura.

Este ano decidi recuperar o desenho e imprimi-lo e colorir com tinta de aguarela
para lho oferecer como prenda de anos.

Velhice e Morte em Paz


'Velhice e Morte em Paz'
desenho a pastel
60cm por 80cm (aproximadamente)
2016
ZMB

Os meus colegas na aula disseram, que este trabalho
com o homem curvado a passear o cão,
lhes transmite uma sensação de calma.
Eu concordo e acrescento que é um desejo de futuro,
um que contrarie os preanúncios de catástrofe que escrevi no passado,
um desejo de morrer de velhice
em calma e na companhia do melhor amigo do homem.

É o último de oito desenhos a pastel com o título genérico de 
'As idades do homem'.

1. Triciclo 
2. Fisga 
3. Primeiros Cigarros 
4. Amor 
5. Discurso e Poder 
6. Desastre 
7. Sofá Pantufas e TV 
8. Velhice e Morte em Paz


Mas como as aulas continuam e a vida de um modo geral também continua
vêm aí
'Desenhos do Outro Mundo'!

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Lady Cão


'Lady Cão'
óleo sobre tela
40cm por 40cm
2016
ZMB

Todo o material, as tintas, o óleo de linho (é impossível eu comprar, é muito caro), a tela...
Esta tela foi pintada usando uma tela reciclada,
originalmente tinha sido palco de experiências de alunos do Espaço T.
Pertence, portanto, ao Espaço T.
Se alguém no futuro a quiser adquirir terá de falar com o Espaço T

Este trabalho surgiu de um nada, esse nada era a superfície,
 parcialmente pintada parcialmente com colagem de jornal.
Comecei a desenhar em cima da superfície e começou a surgir a figura,
como a figura começou a apresentar um focinho -- dei-lhe o nome de Lady Cão.
Actualmente, estou a pintar o Meister Cão.


sábado, 2 de abril de 2016

O amor entre fantasmas



Nos anos 80, esta música foi editada como lado B de um maxi na 4AD,
E depois, mais tarde foi reeditado numa compilação em duplo vinil com o título 'Hysterie':
https://www.discogs.com/Lydia-Lunch-Hysterie/master/67126

Não sei detalhes da vida em comum deste par
e é com pena que soube da morte recente deste extraordinário guitarrista.
Sei que ele gravou com as bandas do Nick Cave, esteve também numa banda chamada
'Crime & City Solution' que aparece, actuando ao vivo, no filme 'As asas do desejo' do W Wenders.
Sou da opinião que o estilo deste guitarrista foi uma influência no som de guitarra
que aparece nos discos iniciais dos Mão Morta, no  lp 'Corações Felpudos' em particular.

Eu sempre gostei musicalmente da Lydia Lunch, tenho também este vinil,
ela é para mim a Viúva, e não será extraordinário pensar assim
pois ela teve uma editora, onde editou vários discos, que se chamava
'Widowspeak Productions'
Além disso, dois dos seus discos chamam-se 'Honeymoon in red' e 'Shotgun wedding'

Agora ouçam:
«Eu apaixonei-me por um fantasma ele é apenas uma sombra do seu ser anterior, eu apaixonei-me por um fantasma ela é apenas uma sombra do passado»

Letra de Lydia Lunch e Rowland S Howard:
http://songmeanings.com/songs/view/3530822107858757686/

Quero acreditar que
sou um exagerado e que nem tudo terá sido mau, nem tudo terá sido um inferno, também fomos felizes.
Quero acreditar porque
em alguns momentos os teus olhos diziam-me que éramos felizes.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

La bohème


'La bohème'
óleo sobre tela
70cm por 90cm
2016
ZMB

Às vezes ela, outras vezes o companheiro e sempre a criança, 
formam um trio que toca um realejo.
O companheiro também seria um bom motivo para pintar 
porque tem a particularidade de tocar com um piriquito no ombro,
quem diz piriquito diz uma pequena ave exótica que não sei identificar.
Quando fotografei esta situação ela cantava a música 'La bohème',
nasceu nessa altura o título deste trabalho.

Em baixo, apresento a música cantada pelo Charles Aznavour.
Seria coerente lincar esta música sendo cantada pela Edith Piaf
mas neste vídeo, que escolhi, é apresentada a letra que, eu próprio, não conhecia.