quarta-feira, 29 de julho de 2020

Gémeos





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R Capítulo X
John Coltrane: Be

O professor O abre o livro que C comprara um dia para lhe oferecer como suborno de nota e começa a ler:
Eu não esqueço.
Estou em casa de uns amigos a ver televisão, a ouvir música, a fumar charros e a discutir o cansaço dos festivais de Verão. Aparece uma mula toda boa que, apesar do meu olhar desligado em frente das suas pernas esculturais, resolve interessar-se por mim.
Alguns dias depois, mudo novamente de alojamento. Agora tenho uma cozinha equipada. Após jantar no MarchPush, vou ao Blitz tomar café e volto a encontrá-la. Está com uma amiga e mais um colega. Fica decidido irmos fazer a inauguração do meu novo quarto.
Quando chegamos, verifica-se um pequeno imprevisto, o de não haver luz pelo que nos pomos à procura de velas na escuridão. Improvisamos uma com um prato de barro, uma garrafa de óleo e um saco de algodão. A luz produzida é fusca e reminiscente de tendas rastas e malabarismos com fogo, cria claro-escuros oníricos e ilumina o estilo, por vezes romântico e à maneira dos avós, do meu quarto que contém uma cama de casal, uma mesinha de cabeceira, um guarda-fatos de três portas, uma escrivaninha e, na parede, um espelho vertical. Ela faz um desenho como taxa de sacrifício e deixa o número de telefone, a amiga diz que se deveria encher o tecto de estrelas.
Vamos ao Armenia beber uma cerveja e, após levar toda a gente a casa, ela e eu beijamo-nos no seu carro e combinamos encontrarmo-nos amanhã no meu quarto ao início da tarde.
No dia seguinte, sou acordado pelo meu colega que me diz que está uma maria à porta a perguntar por mim. Quando ela entra, pego-lhe na mão, ponho o trinco na porta e, sem uma palavra, levo-a de encontro à cama beijando-a, ouvindo-a tentar recusar. No fim, beijamo-nos enrolados no edredão e tocamos as folhas da pereira que chegam até à janela.
É tempo de ir para casa. No bar da estação de comboio, quando peço dois rissóis e um leite achocolatado tenho um certo brilho há muito tempo escondido do meu olhar, um brilho de felicidade pelo desejo renascido.
Dias depois estou no Armenia a passar música. Há uma ela que vem falar comigo e pede Miles Davis. Está com uma amiga. No final vamos até sua casa, a amiga estuda em Tirza, está de passagem, dormem juntas. Elas preparam o saco-cama para eu dormir no chão. Não sou capaz de dormir, está muito calor, acabo por me vir embora mas, neste momento, experimento um outro tipo de olhar, bem mais etéreo, bem mais feliz.
Merdra! Mais uma vez a ela desejada duplica-se e do acto de Onan passa-se rapidamente ao de Baco. Hmm… tenho que escolher uma das duas. Sabendo já as linhas com que me coso, opto pelo olhar etéreo, o olhar que deixa coisas em aberto e não sei… nesta fase parece o melhor olhar.
Estabelecemos poesia. Levantamo-nos para ir às aulas, passeamos pelos lagos, pontes e ruas, estudamos juntos, fumamos charros à noite, dançamos no quarto, dormimos juntos. Conto-lhe coisas, mostro-lhe o que faço e aquilo que escrevo, ela conta-me as suas histórias de fadas. Vamos ao teatro ou vamos ao cinema ver o Crash, caminhamos à meia-noite por lugares sem nome com a única protecção das estrelas e chegamos a um miradouro natural onde nos sentamos a observar a natureza lunar. Vamos ver concertos de piano solo, vamos a esplanadas nocturnas no cimo de prédios e, por entre a erva misturada no tabaco de enrolar, inventamos personagens, duplos de nós dois, cores e sentidos, jogos de expressões... o signo dos cinquenta por cento numa pizaria numa noite de Domingo vale dois pontos a meu favor, são símbolos e linhas de amor.
As manhãs tornam-se nostálgicas e aborrecidas, pois temos que ir às aulas. Às onze, estamos sentados a beber café. Olho-a e vejo um certo brilho, ela está bonita. Por detrás, o vidro da janela enquadra-a a três quartos deixando uma impressão de luz e sombra na sua pele fina, na sua cara geométrica, no seu olhar púrpura e violeta, nos lábios finos, no cabelo escuro caindo-lhe sobre os ombros. Tivesse eu uma máquina fotográfica para gravar este momento.
Uma vez, fomos ver uma peça de teatro que acabámos por não gostar. Estava mal representado. Não! Eu minto... era uma peça satírica e rimo-nos até ao inferno. Fomos ao Itapens, aproveitamos para comer dois rissóis, ler o jornal e comentar com uma amiga o filme biográfico sobre Camille Claudel, uma sereia que ficou sem água num filme sobre escultura.
Amo-a tanto que esqueço tudo o resto. Demonstro-lhe a toda hora, a todo o momento. Escrevo-lhe bilhetes, trocamos pequenos guardanapos com pequenos jogos e símbolos, diagramas de cumplicidade em cafés e bares e guardo-os numa vulgar caixa de fósforos. Esqueço tudo, a minha escada deixa de fazer sentido, tenho o seu número de telefone arrumado entre os bilhetes de todos os concertos memoráveis que vi e que guardo junto da carta de condução. Começa, aliás, a ser difícil conduzir-me para as aulas e prestar atenção, falar com os professores, tomar notas só se for às janelas, por onde entra o sol filtrado, perante o desejo de ir ter com ela e gravar os nossos beijos com o gravador de cassetes debaixo da protecção da palmeira prateada e da flauta que encanta a serpente.
Recomeço a pintar, agora maiores formatos, o quarto tem o tecto elevado e, assim, as paredes são cavaletes onde coloco papéis e tecido, arranjei uma mesa velha onde tenho os copos de vidro de iogurte a servir de godés, as tintas, os pincéis, o óleo de linho e, mais tarde, a terebintina que dá uma leveza pura e emotiva. Como protecção de ecrã do meu computador 486 sem dispositivo de cedê tenho a correr uma imagem animada onde estabeleço uma conjugação simbólica entre hardware, software e hipermodernismo utilizando o seguinte aforismo copiado de algum lado: Não me uses porque sou doente.
Um dia, aborreço-me por algum motivo e quebramos por dois dias e, quando fazemos as pazes, chegamos à conclusão que deveremos estudar mais e fazemos esforços nesse sentido para encurtar a distância em relação à matéria dada. Dias depois, vamos ter um com o outro caminhando tarde pela rua escura e amarela da luz eléctrica, chuvosa, fotográfica, sonora, simbólica, surreal, hipermodernista, incerta, um pós-Armenia e ainda o certo desejo de dizer que se alguma vez desaparecermos desapareceremos juntos, indo para algum lado donde o retorno só é possível em teoria, uma profissão, uma caravana, uma floresta negra, Barcelona, Veneza e os museus de arte, o acto de fazer amor e os animais com força e desejo mais forte que o acto, um certo amor, a naturalidade, um certo livro O Erotismo que me custou a modesta quantia de seiscentos escudos e que não lemos porque achamos que já sabemos tudo, os discos de poesia, todas as tabacarias do mundo às vezes interrompidas abruptamente com música pimba para cortar os efeitos da depressão dos dias, no êxtase sabemos aquilo que queremos, sabemos que é necessário desistir por uns longos momentos da música, da poesia, da pintura, da ganza por causa de… tu sabes como é o mundo de merda, que se fodam todas as letras.
No final dos exames intermédios, estamos os dois a tomar café macambúzios e perguntamo-nos se acertámos na resposta à única pergunta que não sabemos se acertámos. Noites de delírios se seguem e regressamos das férias de Natal mais cedo, vamos a Serralves, vamos ao Majestic tomar café como se fôssemos ricos holandeses em viagem, oferecemos a mesma prenda ao outro mas em edição diferente, a grande Ode Marítima, a grande Tabacaria, fazemos o jantar, abrimos a porta para receber as janeiras de duas meninas pré-nubentes cantando, mostro-lhe um início de quadro em pastel chamado Mudar de Vida, é meu desejo expandi-lo durante este fim-de-semana, o último deste ano, pequenas silhuetas no meio das letras, os restos de um filme chamado M. Butterfly, bares de jazz em Baz, ganza e filmes bonitos ad aeternum.
Só há uma coisa que funciona mal em mim e que afecta a minha vivência de nós, o único SE, a disjunção entre a engenharia e a arte de pintar, o desejo de pintar, cada vez mais pintar e, depois, todo esse tempo que se perde em sítios aborrecidos em que chove, e eu não trouxe guarda-chuva pois, como diz o Tom Waits e a Marianne Faithful, there is always one around, e onde está ela para me ajudar a concentrar? Hoje, ela não está, não pôde vir e eu também devo ser capaz de estudar sozinho. Há excesso de informação à qual é preciso dar atenção, nunca te conseguirei dar tudo, não terei tempo, e o que seria isso que nunca to formulei?, não sei bem mas qualquer coisa como um futuro comum, qualquer coisa desse género, as coisas complicam-se, os estudos não correm bem, o profe põe-me a pensar que sou um falhado ou, mais secretamente, um gato falhado, não sou capaz de concluir o trabalho, não dou para isto. Prefiro pintar e não sou rico ou, se calhar, sou mais egoísta que tu, sim, somos esse ser bonito, ao mesmo tempo frágil e forte, misantropo e egoísta mas com muito para dar a quem gostamos.
Dizes que te dissera que te amava quando estava inconsciente nos teus braços, e talvez perguntes se era verdade... e eu respondo-te que não me lembro de o dizer... era assim tão importante num desmaio eu lembrar-me?, e, depois, disse-to tantas vezes que, pelos vistos, nunca acreditaste, e tu nunca mo disseste, não tinhas a certeza talvez, ou disseste-o uma única vez em francês num teatro natalício com o qual nos divertimos dentro da tua cama de ferro, essa voz apareceu gravada numa cassete.

Anos de análise introspectiva dizem: uma vez mais as incompatibilidades. Mas desta vez, invertem-se os papéis. Sou eu que deixo a Maria G Joana, não sou deixado por ela como quando, ao escolher Maria e preterir Joana, ela me deixara no fim. A posteriori, digo que escolhi mal porque o futuro que imaginei com Maria não se concretizou. Nesse futuro, estaria cheio de rebentos se os preservativos estivessem furados ou a transmissão enviasse vírus em rede com destino à lua do útero. E hoje teria os filhos a dizer mal de mim.
Esta frase que acabo de escrever mostra o quanto eu quero denegrir esse futuro de família feliz que nunca aconteceu. Senti-me abandonado logo no momento em que percebera que queria construir algo em conjunto com Maria e me deixara de distracções exteriores como a Joana e a Berta. Perdi o céu e, no purgatório, voltei a perder a confiança no futuro e na mulher quando me deixei obcecar pela Dina de lunetas verdes. E quando a Maria Joana agora me aparece paradisíaca, ela deseja e quer-me homem, e eu deixo-a devido à pressão de ser apenas um palhaço tão divertido como depressivo, deixo-a devido ao falhanço iminente nos estudos, deixo-a talvez devido ao desencarnar o conteúdo traumático transportado pelo sentimento merdoso: eu quebro contigo porque outra quebrou comigo.
Há ainda mais história para contar um ao outro, o modo como uma conjugação de factores, estalidos, paranóias, vómitos à porta de um restaurante originará a minha obsessão futura e eterna, até ver: eu arrependi-me de te ter deixado, quero-te de volta. É o inferno.'


Claudio Mur

sábado, 25 de julho de 2020

O mocho cego



'O Mocho cego'
desenho a grafite sobre papel 300grsm grão fino
 50cm por 70cm
2020 
ZMB

a partir do livro escrito por Sadeq Hedayat

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Airf'Auga 24 -- Minueto

At that moment, Airf'Auga non-musicians considered this track
as their best musical moment.
They called it ''Minueto'' Instruments used were
kitchen drumware, acoustic guitar and classical radio. https://archive.org/details/AirfAuga
1992 - Airf'Auga recordings were made by some people at their home, in someone else's home, on the streets, in bars, in trains, at night, by day. Most of these people never made conscious sound before. Some of them don’t know that it was recorded. Most of these recordings were made on tape, some on minidisc, and were collected as is. Airf’Auga sound recordings represent several untouched audiograms of real time existence of some people.





quarta-feira, 22 de julho de 2020

O homem sem cabeça

Um poema de
Wilson Alves-Bezerra

Wilson Alves-Bezerra -  O homem sem cabeça 


- Programa diário de poesia dita pelos seus autores, 
acrescentando património raro e valioso ao arquivo da r

terça-feira, 21 de julho de 2020

Eu serei muralha




Um dos efeitos da pandemia foi eu não ter renovado a assinatura mensal de transporte público e salvo idas mais distantes como a casa dos meus pais, tenho andado a pé. Sozinho, com fones nos ouvidos ouvindo rádio, tenho caminhado e conhecido novas ruas e até fotografado alguns gestos de guerrilha urbana na forma de grafiti. Geralmente, de dois em dois dias lá vou eu.
Nos últimos dias, a minha mãe deu-me um tshirt preta e eu logo a vesti, como estava de calças pretas já ruçadas e cinzentas do uso, disse «nem as tiro, com as sapatilhas e a tshirt preta, pareço um cigano branco, loiro e de olhos azuis, que fixe!»
Nos últimos dias, nos meus passeios tenho conhecido um bairro social onde existem algumas famílias ciganas que instalaram no jardim cadeiras, mesas e até uma pequena piscina insuflável para os pequenos, e eu ao passar por lá, pelo meio deles, senti-me respeitado pelas senhoras que disseram «ai deixe passar o senhor» e até os pequenos calés que andavam em bicicleta roda 18 quase pararam para deixar passar o senhor, que sou eu aos olhos destas famílias. Senti-me bem e agradeci ao passar: «obrigado».
Hoje voltei a passar lá e no mesmo local sou abordado por uma senhora certamente não mais velha de que eu, mas certamente já avó, com o cabelo negro apanhado numa bola atrás da nuca e com um vestido cor-de-rosa de corte modesto e que realça as gorduras extra que todas as mulheres ciganas, pobres e cheias de filhos, ganham a partir dos trinta anos. Diz-me ela:
-- Desculpe, bom dia.
-- Bom dia.
-- Olhe, eu tenho ali muitos polos como esse seu que são tão bonitos como o seu.
-- Desculpe.. mas num tenho dinheiro...
-- Não faz mal.
-- Obrigado. Bom dia.
E vim-me embora para casa feliz. A senhora cigana reconheceu-me como um igual pelo meu modo de vestir, e cortejou-me tentando fazer com que eu lhe comprasse roupa. Hilariei quando me lembrei que aqui há dois ou três anos um grupo de ciganinhas me bateu à porta e eu cheguei à janela para ver quem era e elas mostraram uns soutiens, o que é diferente de mostrar os soutiens, «Não precisa?» E eu a rir-me da janela e a dizer-lhes «Não, não uso, desculpe!»
Sim, esta cigana que conheci hoje no meu passeio sanitário pela urbe... eu até tinha dez euros na carteira, bem que lhos podia ter dado, mas achei que não precisava de mais roupa. 
Ué?!, não dei eu um cd de Sheila Chandra à minha amiga que gosta de música indiana? A minha vontade sabes qual é?, é voltar nos próximos dias e dar a esta senhora, ou qualquer outra cigana que me aborde de novo, o meu cedê de Estrella Morente e dizer-lhe:
«Olhe mana, desde que nunca mais soube do cantor Xano cigano e não conheço nenhuma cantora portuguesa cigana, a não ser a avó de todos nós -- a Cidália Moreira, quero oferecer-vos este cedê, é de uma cantora da Andalúzia, para vocês conhecerem as raízes comuns com nossos irmãos espanhóis!

Não sei se alguma vez lhes darei este cedê, mas ficam aqui as palavras cantadas:

''
eu serei muralha
para que não te ofendam
e a ti não te tirem eterno amor
''

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Bolso na fada


'Bolso na fada'
óleo sobre tela, 
60cm por 71cm
2020 
 ZMB

My idea of painting bolsonaro as a vampire bat was set and painted before Covid got him. 
Even if my idea is poisonous I don't suffer from Christ megalomania, 
and it is not because of this work is painted that bolsonaro got his 'little flu' as he calls it.

But bolsonaro is bad for the people of Brazil, 
for the indigenous and the poor and the misfits! 
Impeach!

****

Adenda 9.30 PM July 20

I could paint also his twin brother,
see what's happening in the role-model country of capitalist democracy:


domingo, 19 de julho de 2020

Salve meu pai o teu filho cresceu

Canção da terra Zélia Barbosa
(Edu Lôbo e Ruy Guerra) Olorum dê Olorum dê Olorum I si bê o bá I si bê o bá Ave meu pai o teu filho morreu Sem ter nação para viver sem ter um chão para plantar sem ter amor para colher sem ter voz livre pra cantar e meu pai morreu Salve meu pai o teu filho nasceu E preciso ter força para amar pois o amor é uma luta que se ganha e preciso ter terra para morar e o trabalho que é teu ser teu só teu de mais ninguém Salve meu pai teu filho cresceu E muito mais é preciso não deixar Que amanhã por amor possas esquecer que quem manda na terra tudo quer e nem o que e teu bem vai querer dar por bem não vai não vai salve meu pai o teu filho viveu Olorum dê



quarta-feira, 15 de julho de 2020

Primeira página de «O mocho cego»


'O mocho cego'

Sadeq Hedayat

tradução do persa por Carimo Mohomed
edição E-Primatur 2020

sábado, 11 de julho de 2020

Ex-xenofónico


Juandrés Vera : ′′Me, myself and I"



Há poucos dias mandei uma mensagem pelo facebook à minha prima de Lisboa, disse-lhe: se me quiseres ouvir, eu às vezes preciso de falar e não tenho com quem.
Ela respondeu dizendo que ligaria no dia seguinte mas entretanto meteu-se o problema das matrículas dos alunos, que pelos vistos até foi falado no telejornal, e só hoje me ligou. À tarde.
A minha prima é dois anos mais velha que eu e é formada em psicologia embora não exerça, ou melhor, vai exercendo no dia-a-dia, no trato que dá à sua comunidade de vizinhos, na educação dos filhos, e também na atenção que me dá. 
O assunto da conversa seria talvez os encontros clandestinos 'na paz do senhor e sem maldade' com a minha amiga, mas o tema desviou para o facto de eu estar a preparar mais um volume em formato a5 com textos do meu vizinho Giuliani. Ela já me perguntara antes o que eu achava do trabalho dele e eu até lhe enviara um pdf já realizado para ela própria avaliar. Agora comentamos este facto e ela diz que não aprecia muito poesia porque às vezes não a entende. E eu digo-lhe que concordo com ela, que também sou mais de prosa e que, digo eu agora que escrevo isto, às vezes os poetas são tão abstractos e tão herméticos que apenas eles compreendem. Acabo por lhe dizer: é triste dizer isto mas eu não gosto muito do trabalho do meu vizinho, mas faço-o para o ajudar a vender depois exemplares e ele ganhar algum dinheiro, além disso, ele começou a pagar-me estes últimos trabalhos e eu acabei por aceitar fazer a transcrição para computador e preparação para impressão digital e encadernação porque este dinheiro me faz jeito. 
Digo-lhe por exemplo que acabei de passar uma parte em que ele diz que acabou com a guerra do vietname ao escrever o poema três meses antes. A minha prima compreende a ilusão do poeta e diz: sim, como se eles tivessem lido o poema. Sim, digo eu, ele é como eu, é o síndrome de Jesus Cristo, o Giu pensa que é o salvador e eu penso que sou o diabo, que o que escrevo faz mal às pessoas, lhes bate. Mas, digo eu, ele está pior que eu, ele não tem consciência, ele não se acha esquizofrénico. Eu sei que sou, eu tenho essa consciência de pensar que mudo o mundo mas sei que é doença, é um sintoma.
Acabo por lhe falar que estou zangado com os vizinhos à excepção do Giu e conto-lhe por alto a violência daquele que eu designo por comandante. Digo: sabes prima, eu, que tenho um curso superior e fui assim treinado para ser um membro das classes superiores, cedo me fartei desse modo de vida e cedo me desleixei e fui perdendo os empregos de estagiário em engenharia ao mesmo tempo que a minha actividade se desviava para a pintura e para uma ideia de pobreza: o ter dinheiro a mais faz-nos mal. Prima, eu sou uma pessoa simples, que tenta falar com toda a gente, com o grande e com o pequeno, de igual para igual. Eu, ao vir morar para esta ilha, quis fazer-me amigo do povo, do pobre, mas acabo por ver que o pobre só tem inveja do grande e quer ser como ele não se importando de fazer pior que o grande. E eu aqui, vejo a garganta deste comandante, diz que fez e aconteceu, é filho de uma mãe rica e de uma família com nome ilustre, e é mais básico que um cepo e é violento,é um pouco parecido comigo embora eu não bata em ninguém. Ele obriga pela violência física, eu só mando umas bocas foleiras e retraio-me porque depois perco a convivência se me desboco. 
Assim, vivendo no meio de pobres, ou de pobres mentais, sou estranho a eles do mesmo modo que sou estranho à minha família (remediada, de classe média baixa) e estranho ao grande, seja em estatuto e fama, ou posse de dinheiro, ou valor intelectual. Digo-lhe: eu acho que não fui muito bem educado pelos meus pais, eles delegaram a minha educação na escola e nos professores e eu cheguei à universidade e não sabia nada da vida. Não me quero queixar dos meus pais agora porque eles fizeram o melhor possível. 
Sim, diz a minha prima, sabes que eles nunca contaram nada a nós sobre a tua vida mas eu fui sabendo, até uma vez fui aí ao Porto e te fui ver ao hospital, mas os teus pais gostavam de ti, tiveram a preocupação da escola particular, tu eras um bom aluno até mais que nós, bonito e inteligente mas eras mau às vezes, e nós éramos mais velhos e tinhamos de te pôr na ordem, os teus pais talvez não te impusessem limites, não te davam uma palmada como às vezes merecias porque tu eras bom aluno e eles desculpavam, tu quando não conseguias o que querias vingavas-te e davas um pontapé. 
Sim, eu sei, eu era mau, tens toda a razão. Mas era porque não tinha liberdade, só o facto de ter uma carrinha escolar que nos levava ao externato era controlo a mais, por isso a escola pública, lá ao menos todos somos iguais, e não os filhos do senhor de tal que tem uma mota ou um carro, e eu não tinha porque os meus pais já faziam um esforço enorme para nos terem no colégio.
-- Sim, tu já na altura falavas da escola pública e como era bom andar lá.
 -- A sério, já não me lembro do que a gente falava.
E depois, a conversa acaba com a minha prima a dizer que agora vai ver a mãe e o irmão e sua família, os meus primos, vão desconfinar num jardim porque a minha tia fez anos recentemente e desde Março que não se reúnem. Diz-me que me liga amanhã da Costa, ou seja, vai ver o sol da caparica. 
Desligamos e eu fico a pensar: então, era eu pequeno e já pensava em vingar-me. Começo a relembrar. Descubro o motivo e tem a ver com o facto de eu ter dito à minha prima que passei a juventude a pensar que o meu pai não gostava de mim e que hoje e já há alguns anos sei que ele gosta de mim. Começo a desfiar o que não disse à minha prima e chego à evidência, eu no dia do primeiro internamento estava eu na sala de observação e os meus pais assomaram à porta, e eu sabia que dali não saíria e queria levar uns quantos atrás de mim e lembrei-me de dizer, de insultar o meu pai, os meus insultos são sempre cínicos mas este foi revelador, disse: lembras-te pai do que me fizeste quando eu tinha quatro anos?
Isto, que o meu pai me fez e que eu não especifiquei e apenas com raiva e vingança lhe atirei à cara com o intuito de o magoar, foi algo que eu bloqueei desde esse instante aos quatro anos e só aos vinte e sete no internamento se revelou e como catarse... e o que foi?
Um miúdo de quatro anos gosta do pai e o meu pai estava doente no hospital e ele um dia à noite volta do hospital para casa e o filho vem à porta com saudades do pai e o pai atira-lhe com um chinelo. E o filho ainda hoje não sabe mas certamente que chorou por esse desamor do pai, certamente que reprimiu essas lágrimas e bloqueou o momento, esqueceu-o no fundo da memória e reprimiu-o, em seu lugar cresceu o desejo de vingança contra o mundo e contra o desconhecido.
É esta a causa da minha esquizofrenia, estou certo e sabê-lo e aceitá-lo como algo brutal mas imponderável e ter feito as pazes com o meu pai quando há uns anos ele esteve para ficar inválido e saber que ele gosta de mim (à sua maneira), tem feito com que eu deixasse de ser «xenofónico», palavra que ouvi no programa Portugalex da Antena 1. 
Sou um ex-xenofónico.
Agradeço à minha prima o ter-me proporcionado este pequeno apontamento. Ela conhece-me bem.

terça-feira, 7 de julho de 2020

A manifestação, a experimentação do ser alternativo ser gótico ser electrónico, ser qual?

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J Capítulo L
K Capítulo minus L
Current 93: From broken cross, locust
Dead can dance: Yulunga(spirit dance)

Meio-dia. A sai do alojamento com ar de chulo, lamento dizê-lo. Veste calças brancas e um blêizer igualmente branco. Falta só a gravata e o sapatinho platinado. Vou contar-vos isto na primeira pessoa para ser mais fácil:
É a hora de transfixar a minha realidade, enfim... é hora de ultrapassar paredes, é hora de reencontrar a minha consciência, vou visitar I à prisão, levar-lhe cigarros à biblioteca e debater os princípios do manifesto. O destino, a fé é assumida. O referendo interno aproxima-se. É necessário obter votos, passar com distinção e pensar nos primeiros slogans, nos testes, na campanha eleitoral, eis o rascunho com as questões a abordar:
Libertem a consciência de Id, definam o sexo de Id. É o que me apetece dizer. 
Eu escondo-me no ruído que crio para tirar os meus nabos da púcara alheia, para que o alheio seja o meu professor anónimo. Questiono-me, questiono-te, continuo a negar a tua existência mas vou visitar-te, tu és o meu espelho, sigo o teu caminho por meios experimentais, comi gajas iguais às tuas. Pergunto se há vida além da morte mas penso mais, penso também nos primeiros cinco minutos após, o que será, como será, ver-se-ão apenas luzes negras e esqueletos e crucifixos arranhados? Continuo por circuitos de radiação, diagramas de Smith e outros palavrões, por fases de lua e lunáticos. Esses teus rivais vêm à procura de mel mas com eles nada há a partilhar, eu não partilho com os meus iguais que nada de desentediante têm para partilhar. Não tenho paciência para virgens, mesmo aquelas que se renovam todos os meses. Estou a ficar velho e já não sei o perfil que procuro. Que Ela procurar, que filosofia ainda é valida? O que compilar? Deveria fazer um ficheiro... que filosofia, pergunto que Ela procuro. Porque catalogo dados pessoais? Talvez porque não tenho mais nada para fazer. Nunca um artista pode ser mórbido, um artista pode dar expressão a tudo. O pensamento e a linguagem são instrumentos de arte para o artista. O vício e a virtude são matéria de arte. 
Foda-se, A! Onde ouvi já eu isso? Disse-o Oscar Wilde, digo eu esbardalhando: Oh filho, é o mito do eterno retorno, eheh. Tenho os olhos fechados. Penso na primeira estrela pop. Abandono-me com a gravidade de um pêndulo e rio-me como um menino escolar, sem a sabedoria do político mas com todo o fogo na língua. És Tu uma inteligência tipo B de Berta ou Belinda ou uma D de Dina? Negativo ou positivo? O facto é que esqueci. Qual a tua preferência? É tudo uma questão de preferência? De que modo és tentada? 
A resposta da minha consciência surge sobre a forma de um aforismo da cartilha: a sinceridade de um escritor manifestar-se-á tanto mais verdadeira, mais pura, mais sublime quanto mais se libertar de todos os vestígios ilógicos e largar as falhas súbitas no universo, o amor, os objectos, os crimes, as impessoalidades. 
Mas aqui pergunto: é o contexto ou a forma que interessa? É o valor do que se faz ou o que se é aquilo que interessa? 
A realidade seja ela qual for. Cada vez mais é necessário separar o valor do ser, aquilo que se é é diferente daquilo que se vale, são conceitos distintos, ser valor contexto forma. Para o perceberes, se calhar, é só explicar o porquê de desejares atingir a lua, a luz branca e nua de uma auto-realidade, objectiva e histórica. Tudo isto que vives é um real de fantasia, onde tudo tem uma explicação escondida. Tu tens apenas de olhar porque, se não olhares, a lua pode não estar em Lá. 
Insisto que será necessário despir tudo, tirar todos os adereços, todas as flores abrirem, se depois murcham... azar, não será preocupação nossa. Insisto em procurar o branco, puros brancos, passeios marítimos durante o Verão, tambores vindos de qualquer Lá. Mas apenas existem fotografias covardes, chupa-chupas, actos filosóficos e solitários, ascensão de mais degraus, utilizando os suportes? 
Ah mas, e então a multidão museológica de um rio em cascata, a praia verde ensolarada de cio e o pinhal ao fundo, se tomas café acompanhado de pessoas que lêem por catálogo ou por ordem alfabética? São elas os primeiros catalogadores, os analistas do mercado. A náusea pode vir ao de cima, esse é um dos dilemas que te peço que analises. 
É fácil, é só imaginar alguém, uma espécie de Ela definitiva, a última solidão? Sou muito novo mas estou a ficar velho cedo demais. Será apenas o desejo de ronronar por Elas que eu imagino. Vá lá, responde! 
Não, como eu disse ao senhor grelos, eu vi revistas pornográficas aos quinze anos, e ele respondeu que o nu não lhe interessava. A gente começa a pensar na máxima daquele gajo que, uma vez, disse que não gostava que duvidassem dele e que não gostava de estar e duvidar dessas mesmas pessoas, e a gente começa a duvidar... há que ter respeito, nestes dias, eu, a consciência é a tua voz de confiança, a que não tinhas antes mas eu levo-te à perdição, pressinto-o porque entendes tudo errado. 
Quando o FC Porto marcou o golo da vitória naquela tarde, e eu saí do café para fumar o cigarro enrolado, estava mesmo a pensar: para o R pintor, que nada tem de comum com aquele ser duvidoso benfiquista que vi agora mesmo, ela reflecte-se de cabelo azul iluminado sobre o ombro, o seu ser reflecte-se no futuro. Sóbrio é o desenho dos seus olhos... as sobrancelhas, a cana do nariz verde, maçãs bege, a boca vermelha. Será através da manifestação de um duplo, a existência de um deus supremo provada? Segundo o génesis apócrifo, L criou um homem como ser final à sua imagem, nós somos o último degrau, a última versão. Será L egocentrista, será um caranguejo? Não será o primeiro Adão um só ser andrógino contendo homem e mulher, gémeos e idênticos? 
Misturando-se, confundindo-se, andando às turras porque idêntico não, não pode ser, dizem: só um uno ad aeternum. Urge criar criancinhas para a posterioridade. Terá esse ser sido criado por deus e o seu duplo para que pudessem, finalmente, comunicar após se fartarem do tédio? 
Faz-se tarde ao não partires o espelho, se o espírito dos samurais habitasse dentro dos caranguejos, talvez a profecia se cumprisse. 
Vai daí, pergunto-te, minha consciência condenada: O tutor dá-se bem contigo? Entende-te, dá-te dinheiro? Ainda moras naquele local? 
Hã, naquele cubículo... não! Fui convidado a sair. E depois, toda a casa cheia de paisagens tropicais, muita saudade para o meu gosto. Fiz asneira. Lembro-me do senhorio, era simpático mas... o tutor mudou-me de senhorio. 
Queres contar como foi? 
Basicamente, disse-me que não podia ficar lá. Não me facilitava a utilização da cozinha e, por causa disso, teve o cuidado de me colocar um fogão na sala de estudo. O problema é que os maus cheiros subiam ao primeiro andar onde ele vivia. 
Hum, cheiros do fogão, aromas, ela em éter, afrodisíacos talvez? 
Sei que não me quis lá devido a essa metafísica rebelde. 
Pois. 
Agora estou bem melhor, classifico a casa velha onde vivo como uma clínica clandestina, quartos enormes, duas casas de banho, várias salas, chão de madeira podre, abandonada, pelo menos dois idiotas tiveram já a ideia original de filmar este covil, ninguém lhes pediu promoção ou baptismo, já temos a nossa fé. Pobres tipos, nunca consumarão. Vive lá um tipo esquisito, um velho de cabelos brancos, ele parece pintar, é raro vê-lo, oiço mais depressa a sua música, imagina lá tu isto... um gajo, às duas da manha, põe John Cage, uma música esquisita, sabes, pianos preparados, põe o cadeado na porta, esquece-se da janela aberta, as luzes estão acesas talvez tentando atrair a audiência, enorme população de pombas, rolas e cotovias. Sai de casa fechando a porta a cadeado. Talvez procure alimento ou um público que o compreenda, o público virgem mas até ele sabe que as conversas sonhadas lhe são inúteis, não serão as virgens brancas que o salvarão, nem sequer as virgens, se calhar ao primeiro toque partiriam as suas lágrimas de cristal, que aprendem a esconder enquanto se penteiam todos os dias com dedicação ao espelho. Não sei, eu só há pouco tempo ali cheguei. Ele saiu e deixou a janela aberta uma destas noites e as luzes acesas e, depois, a história conta que, a muitos quilómetros de distância, ocorreu o assalto à residência do procurador geral. 
Engraçado, não ria há muito tempo. Rio-me mais do que digo do que da situação mas... iá, ele sai de casa e, depois, volta pela madrugada, sai do táxi podre de bêbado acompanhado de duas mulas valentes e... eis que, de súbito, um carro surge, atropela-o e, no hospital, dizem-lhe que ficou inválido... iá, estou mesmo a ver, Morton Feldman e flores em cima da mesa de cabeceira. Mas essa estéril compulsão está lá. Não acredito. De qualquer modo, a Seigneur é podre de boa mas não acredito. 
Claro que não é plausível. Eu não sou o Roman P. Volto a dizer-te que o velho é passado dos carretos. 
Ok, claro que acredito. 
Jura? Estou habituado, aqui dentro, ao mesmo olhar que me deste agora. Olha. Repara à tua volta. Não será preciso procurar muito. Olha, vê ali ao fundo aquele par, pai e filha, não os achas deslocados? Terão eles ar de maus? 
De facto, não parecem nada. Não sei responder. 
O. É o nome dele, tenho falado com ele, é um verdadeiro psicopata, um genuíno, tenho ouvido também muitas histórias sobre ele, acredita, não há ninguém como ele, é um bom motivo. Nunca o tinha ouvido antes mas, uma vez ao almoço, estendeu-me a mão gloriosa e, em duas ou três palavras, contou-me a história da sua vida. Sabes que toda a gente tem uma história para contar. Às vezes, a história é contada repetidas vezes ao longo de toda a vida... chatamente interessante mesmo muito interessantemente chata, afirmo-te que põe o teu Genet de joelhos e todos os teus depressivos na algibeira, e ainda pede aos guardas para lhe engomarem as calças. Ah sim... digo-te, ao lado dele todos os teus depressivos são caloiros. 
A minha consciência delira e eu penso: este casal é um caso de fundamentalismo, chamar-lhe-ão de santo, ela será uma estrela pop, parece pura e tão natural, será santa? 
Olho para eles. Vejo também aquela criança que passa discretamente um pequeno embrulho a um recluso ali à frente naquela mesa, um pai jovem, outra inocência. Observo o terrível erro. O edifício é protegido por câmaras de alta sensibilidade cuidadosamente colocadas... 
Ouço o que parece ser uma sineta vagamente parecida com a das missas de Domingo na aldeia. O guarda E dirige-se discretamente na direcção da cafetaria, detém-se duas mesas à frente perante os ecrãs de vídeo, apreende o objecto, oh… era apenas uma caixa de bombons!, dirige-se à caixa, à sala de locução, para anunciar que, por ordem superior, os privilégios de comunicar estarão interditos de hoje em diante. A sessão de visitas terminou. 
Como vês tudo é possível. 
Murmuro espantado: ela vai alimentar o seu gato malhado que está calmamente observando o canário e a rola dentro da gaiola. 
Conto-te a história noutra ocasião. Fica bem, A. Obrigado pelos cigarros. 
Três da tarde. 
As pessoas vão saindo, dirigem-se de volta à cidade. Apanham comboios. 
Eu, deixando a minha consciência ser levada pelos guardas, saio da biblioteca do CReEA e sigo em direcção ao jardim onde um grupo de miúdos, que não deverão ter mais de cinco, seis anos, joga a bola num espaço entre castanheiros. Sento-me no banco... 
Ah pois, saíste do encontro homoerótico com ar de chulo e foste ver os meninos ainda meninos, pois é, explica lá isso bem. 
Arre merda, o escritor é um autoabjecta maledicente, não sou nada um chulo, fui ver o meu eu, olha, não posso ter um blêizer branco e parecer um capitão da marinha de chapéu mas sem galões?, olha que eu sei nadar, não sou como o comandante que diz que foi comandante!, olhamesta, e não posso porventura sair para ir tostar a pele ao sol no jardim? Os meninos a futebolar é mera circunstância, orafôdasse. 
Por isso, continuo. Sento-me no banco do jardim. Ao longe o mar. Olho para eles e tento lembrar aquilo que fui e os sonhos que tive. No relvado improvisado, o defesa olha desconsolado o guarda-redes que, furioso, berra com ele. Não devias ter feito falta, agora o jogo acabou, nunca mais vamos jogar a bola, bem sabes como é a vizinha, nunca mais vamos ver a bola, diz ele desconsolado. Pois é, é tal e qual, esta vizinha deles é o cão do senhor Salomão dos meus dez anos, os problemas dos meninos jogarem à bola em qualquer canto do bairro ou mesmo no jardim mantêm-se inalterados, pelo menos desde que inventaram o fute na bola. 
Tão inocentes, tão cândidos, tão felizes, quem sabe o que vão ser quando forem grandes?, alguns nem vão ter a hipótese de escolher, outros irão talvez escolher mal, igualmente muitos não quererão escolher, quererão se calhar que escolham por eles, vão entrar no ciclo do deixa andar e não poderão ser ou serão apenas isso... um nada de vómitos e subtex, muitos poderão ficar pelo caminho, é o rumo natural das coisas, não acredito que a luta de classes tenha sucesso, ninguém vence o dinheiro e a letra que tiver dinheiro governará, será forte… há certas letras que nasceram para serem consideradas fortes, outras letras que nasceram para serem consideradas fracas, letras há que nasceram a pensar que eram fortes, outras a pensar que são fracas, nem todas as letras poderão escolher. Quem sabe, deixa lá ver… piloto de automóveis, jogadores de futebol, cientistas, engenheiros, médicos, advogados, ministros, banqueiros ou... o oposto, os pedintes, os bêbados, os ladrões, os drogados, os canalizadores, os pescadores, os pintores, todos estes... deverei classificá-los de os loucos? 
Agora, vou fazer uma pausa no discurso. Vou tirar o meu lindo chapéu branco de um modo teatral, vou despir o meu lindíssimo casaco branco e com frugalidade enrolar um cigarro. De momento, ando a fumar Amber Leaf. 
É tudo um enorme trocadilho, uma enorme associação de palavras. Às vezes, começa-se a falar de alhos e termina-se em bugalhos. Às vezes. fala-se mesmo de caralhos. Estou alterado ou, se calhar exagerando mesmo muito, às vezes, as coisas devem ou deveriam funcionar ao contrário e para outros alguns arrasar, afastar a conversa fiada... há quem se ache inteligente, há quem diga ser uma boa experiência filosófica, por exemplo, falar com um velho e com uma garrafa de vinho rasca à frente. E eu digo: oh… é bom ter o prazer de duvidar… sim duvidar, ser céptico… ter esse prazer mas escrever com fome aos vinte ou escrever gordo aos sessenta? 
Este meu eu, A é o seu nome., hoje ainda é jovem e não sabe nada de política, embora se diga de esquerda tem reservas em relação ao comunismo por causa da liberdade de expressão e dos direitos humanos mas o mito da revolução pela liberdade, o Che e o Clandestino dos Manu Chao, a rebeldia e a anarquia que o haxe traz... são tudo ideias de esquerda que lhe dizem muito como filosofia de vida. A não sabe mas não passa de um ressabiado com palavras que chocam de tão extremas e, porque não o dizer, palavras fascistas, palavras que afastam, palavras que não admitem a sua queda do poleiro. Tudo isto se mistura com sentimentos e acções em que se digna agir como se as outras pessoas ocasionalmente possam dizer coisas acertadas no meio de tantas coisas desinteressantes. Qual a percentagem... setenta, oitenta? Põe-se ele a avaliar. Mas ainda bem, espanto dos espantos!, segundo dizem, deveremos ter o espírito aberto a novas ideias, deveremos ser todos diferentes, todos iguais. Ainda bem que não sei tudo, assim ainda haverá algo mais para aprender. Se na teoria será assim, na realidade talvez não o seja, talvez se devam ignorar todas essas campanhas filantrópicas, talvez o fundamentalismo... 
Tázaver!? Originalidade?, Direito à diferença? Será tudo isso verdade?, será que não penso em ser original, em ser diferente ou não fui eu que vesti a minha personagem de chulo hoje? Até sou capaz de ter algum jeito para frases sonantes, aforismos ou palavras bonitas... mas não estarei só a tentar viver acima das minhas capacidades?, a dar espaço ao conhecimento?, e se isto é ser original.. então, deixem-me ser, desculpem-me lá se sou original, se sou diferente, se mais ninguém procura o conhecimento. 
Pareces o relvas vai estudar eheheh. 
Ignoro e continuo: Aliás, estamos em tempos hipermodernistas em fins de milénio com meteoros incandescentes caindo sobre nós e o Armenia em imagem dupla, o antes e o depois, um preto e branco de destruição em apoteose, a originalidade é uma mistura de conhecimentos aprendidos aqui e ali por observação empírica, é bom dizer a mim próprio quais são os meus ídolos e heroas, com quem me identifico, presto, aliás, um serviço ao dito Original, àquele de quem disseram eu, A, ser uma Cópia, reciclo-o, salvo-o do lixo e do esquecimento, tiro-o da garrafa de vinho e aproximo-o da almofada, dorme meu menino dorme, sonha com todos os teus mitos, filosofias e perversões... digo-te, menino, o dito de A Cópia tem valor acrescentado: lê lá o Marx masé, o A C...ópia tornou-se autónomo sem nunca ter sido dependente ou sanguessuga, masoquista talvez mas agora devo ir a procura do meu próprio rebanho... não!, talvez não queira rebanho porque não quero ser líder, uso é meios que não divulgo, não é bom alguém saber como agimos a seguir. Liberto-me crio(me) crio(me), resisto de boca fechada, nada há que dizer, silêncio!, deixo a imagem a vosso cargo, que se criem os duplos e os avatares com nomes de realitíchuis, que não se apaguem as imagens gravadas, viva-se hoje e agora. Devo levantar-me, andar e procurar o meu caminho, digo ao meu ser. 
O mal não é eu mentir mas sim fazê-lo a mim próprio, quando o meu desejo é talvez fazê-lo aos outros, talvez por me aborrecer com a sua incompreensão ou a máscara da incompreensão ou será que não me explico bem ou será que deverei falar em burrice? 
Talvez o burro seja eu. Às vezes, a eternidade fascina-me, a santidade fascina-me, fascina-me pensar em anjos negros, anjos brancos nunca!, nunca anjos absolutamente brancos porque a cor branca tudo reflecte e nada guarda. Estas coisas sentem-se, não se vêem. Às vezes, penso que tive uma visão onde fui iluminado mas de electricidade. 
Gostaria antes de falar do futuro se é que ele existe, se é que ele existe agora que me imagino rico, não é verdade que ganhei a lotaria? 
A meio da tarde, estou num jardim africano pensando. À minha frente, um canal, um prédio em construção eterna, uma palmeira ao longe e uma casa pequena, de onde num qualquer filme dos anos vinte o Buster Keaton poderia ter saído. Estou simplesmente a apanhar sol, vendo os miúdos a jogar futebol. Acabo por não saber a que horas combinei com ela algo de tão maçador que nem me lembro do quê, nem conheço bem o local, nem sei se ela está lá ou o que pretende. Decido antes ir falar com D, a minha outra consciência, aquela que me é mais provocadora, quase inimiga, aquela que deixei na loja. É bem capaz de ser aquilo que mais quero fazer neste momento e vai ser já, porque fugindo do novo part-time, Id escapa-se, fecha logo a livraria, e abanca no café ao lado, não podendo eu falar com ele nem podendo olhar para aquela peça etnográfica que me assusta ao mesmo tempo que me fascina, aquele machado de Henrique VIII. 
Sacudo as minhas calças que estão cheias de restos de tabaco, limpo igualmente os meus sapatos novos, levanto-me, para mim tudo é lógico, sinto a Paz pousar nos meus ombros. Mesmo que nada tivesse lógica ou existisse apenas a minha lógica e os meus anjos negros. Saio do jardim, entro no parque de estacionamento, ligo a chave imaginária do meu jipe imaginário e penetro no caos imaginário da cidade em hora de ponta. Chegado ao destino, paro. Entro pelo parque subterrâneo do centro comercial e, ao sair do elevador, vejo uma senhora em desespero pedindo esmola em troca de flores. Dou-lhe a maior nota que tenho no bolso e ela oferece-me um pequeno jasmim amarelo. 
Caminho para o posto de correios e envio-lhe por correio azul as flores e um cartão com desculpas e corações. Chego por fim à loja. Seis da tarde. A minha consciência não está lá. Desta vez, começo a sentir-me atraído pela quantidade enorme de garrafas, garrafinhas e garrafões em exposição na montra, pequenas luzes acesas, velas eléctricas imitando as artesanais, as velas de cera do cemitério, estas recuperadas e com um novo design galopante recordando, exigindo, fazendo questão em imaginar as épocas maravilhosas em que as naus e as caravelas cruzavam os mares carregadas com especiarias e ouro, muito ouro roubado. 
Olha, deixou a porta encostada... 
Como eu não estou e estou no café, entro e ponho-me a folhear alguns livros antigos. Já não se fazem livros velhos. Vendem-se novos e caros, os outros são baratos mas são os restos de uma sociedade alienada que se desfez das suas memórias pessoais, dos livros que deram orgasmos ao tio ou dos livros que nunca obtiveram o devido valor, dos livros que talvez mais valesse não terem sido escritos. Talvez quem vende estas antiguidades a um intermediário como D, não goste de orgasmos, talvez um dia?!, quando todos estiverem mortos (!) seja útil contar mas... valerá aí a pena? 
Abro um e leio: 
Ele não é gentil ele não é gentil. Estou triste, é preciso que se saiba. Batem as quatro badaladas no relógio da torre de uma catedral invisível. Faz calor. Vi J ontem, ia com um aspecto duvidoso e lamentável, a única coisa que ele quer da vida é ficar cego com a moca. Agora vejo um homem deitado num banco do jardim, cinquenta e poucos anos, é a idade que lhe dou. Parece dormir. Tem um gorro na cabeça e não lhe consigo ver os olhos, talvez por causa deste pormenor possa ele estar salvo e ser anónimo. Nunca confirmei a sua identidade. No passeio, caminham dois homens de uma certa idade com as faces corroídas pelo sol. Talvez pescadores já com rugas e reformados da faina. Procuram um banco para se sentar. Sentam-se perto de mim. Consigo ouvir as suas palavras cheias da rouquidão, do catarro de longa data, quem é fumador sabe distinguir: olha... parece que já tenho programa para logo à noite, dá um jogo importante na televisão. 
Largo o livro, a minha consciência parece ausente, o livro é sobre alienação e velhice, é sobre tudo o que eu posso obter se tiver uma má experiência com as coisas que ainda quero fazer na vida. Não quero ser velho, quero morrer jovem, sem palavras e com um belo rosto, um rosto anónimo. 
É esta última frase a frase que escrevo no meu caderno preto de linhas como uma das impressões do dia sentando-me à espera que a consciência retorne. Engasgo-me para dar a ilusão de me rir e de analisar o ridículo, tal como o sublime Ionesco, afinal não foi ele que escreveu um livro chamado O Solitário? 
Arrumo o caderno no bolso de trás das calças e dirijo-me a outra banca com livros. Reparo numa capa onde se vê uma mulher agarrada à gravata de um homem. Pego nele. 
Perdendo a noção de onde estou, acuso em alta voz, pensando talvez estar em casa em frente ao espelho admirando o bigode: sou apenas mais um com a mania das grandezas ou com a mania que é diferente dos outros ou um ser superior. Oh... o que acontecerá aos meus cadernos? Oh... o que acontecerá às páginas flamejantes, ao veneno dos meus cadernos?? 
D, o elemento consciência que entra, vindo do café sem ser visto, ouve A e vê o livro que ele tem nas mãos... e intervém adicionando caos à verborreia: Oh... mas será que alguém os lerá? Oh meu deus oh meu deus ainda existes? Procurei-te vivo ou morto na rede da sociedade da informação, ofereci recompensa, não me parece que deus exista... 
O que Id diz dá-me vontade de escrever, ainda bem que Id ouve apenas a minha voz e não os meus pensamentos, pois senão iria ficar para sempre na dúvida acerca dos motivos do sarcasmo. Daria para uma tarde inteira num caderno cheio de explicações mas há uma pulga para ser fichada e, por isso, retiro o caderno preto do bolso e adiciono mais um item: 
É a vida. É o seu rumo natural. Ela tanto pode andar por caminhos tortuosos e escuros como por longas avenidas cheias de flores. 
Largo o caderno outra vez e pego noutro livro. Introjecto como se arrastasse uma grande mágoa dentro de mim, até que expludo de raiva mas nem eu próprio percebo o meu desprezo mas Id percebe e diz-me com veneno na língua. 
Agora A, lê este título de um modo apaixonado, sim meu filho? 
Maria, não me mates que sou tua mãe. Interessante. Deixa ver?, Camilo... o quê? Castelo Branco, o quê, é o conde dos realitíchuis? Ahahah, imagino dizer estas palavras tendo um ataque epiléptico. Tento acalmar-me. Pergunto o que se passa. Está tudo bem, não se passa nada. Só me passei com o título. Achei engraçado mas é o melhor escritor português do século dezanove e ele também tinha de comprar pão e circo. 
Talvez exagere um pouco ou talvez não seja bem assim e talvez um dia venha a compreender. Sempre o talvez, espero esse dia mas espero sentado, pois a consciência pode demorar muito para conseguir arranjar a cisma do espelho. 
D chama-me agora a atenção para uma página dobrada num outro livro. Estranho. Nenhum destes livros tem nome de autor impresso. D aponta-me uma linha do texto e diz: 
E agora, sim meu filho? Lê isto de um modo sonhador: 
Posso ver, à frente, a lareira da minha mansão de vinte e quatro quartos e seis casas de banho. Aqui, devo olhar para mim porque me aproximo de mim, não me vejo, eu só transmito a imagem que todos vêem, eu não vejo nada excepto as suas reacções, eles não existem como espelhos. Devo ter uma pose longínqua, em som contínuo minimal, em cada casa de banho um funâmbulo, num lugar quente e confortável. Culpa? Não deverá existir. Neste instante, devo levantar o dedo acusador de um juiz. Para que exista um juiz é necessária a existência de um sistema, esse sistema personificado na sociedade pelo símbolo do Alfa Beto. A sentença diz: condenado. 
Mais uma vez, a palavra culpa e condenação presente. Começa a ser repetitivo. Paro de ler. Olho para o tecto, fecho os olhos, abro o livro outra vez e continuo a ler umas páginas mais à frente: 
No primeiro andar do autocarro em andamento, beijo os teus seios por cima da camisa, nós indiferentes aos passageiros. Toco-te, tu beijas-me, gemes, mordes e eu sinto o retesar da pele dos teus bicos e o perfume do teu cabelo acastanhado em caracóis compridos. Cheiras a inocência, a virgindade, nasceste ontem durante o signo virgem a dezoito. Beijo as mãos que reflectem o teu desabrochar, a tua pele vermelha toda marcada para que te possas recordar de mim, para que eu me recorde que tu foste a mais bonita que tive e tenho, ups tinha... merda para as recordações, destruam-nas, que se queimem todas as provas. Por outro lado, essas memórias são os pontos de ganza erógenos que me masturbam a próstata. Deverei implorar aos céus, bradar aos céus para que matem este ano condensando-o num instante por oferenda de deus, como no conto do argentino. Mandem um raio e violem-me para que todos se possam rir de mim, e eu também, durante o momento de expiação, o ridículo descarado à minha frente reflectido no espelho, triste… triste… triste muito triste. Eu aqui devo chorar mas já não tenho ninguém com quem chorar, ninguém, ninguém que me ouça. Estou só. Falo sozinho. Suicídio: o acto verdadeiramente filosófico. A vida merece ser ou não vivida? É mais um teste. Se resistir, e aqui deverei voltar a ser sonhador e a ter esperança, se sobreviver deverei dizer certamente: não!, não me matei!, ainda aqui estou, a vida merece ser vivida, quero forçosamente continuar por Cá mais algum tempo, não serão vocês, as consciências enganadoras, os massmédia, as opiniões e as associações, os infames e as bestas que me impedirão. Eu hei-de chamar-vos nomes mesmo na fogueira. O ego levanta o punho bem cerrado e vocifera, lívido e atónito de cólera, olhando em frente uma garrafa de vinho tinto: Estou aqui para vos atormentar e a todos fazer a vida negra. Eu hei-de chamar-vos... 
Digo alto estas frases e D responde dizendo que estarei sempre em dúvida permanente sobre a condição do eu, coitado e querido, a mais preciosa flausina. Terminarei eu louco esperando etereamente a morte tal como todos os meus anjos negros? Cansei-me de ti e desse teu livro, não levo nada hoje. 
Bom, D, até à vista, vou-me embora. Fica bem. 
Desiludo-me, murmuro a mim próprio no caminho de volta: o fim do milénio aproxima-se. Como seria feliz se te tivesse beijado quando bateste à minha porta naquela tarde de Sábado em que eu escrevia à máquina. Haveria destroços por todo o lado. Como gostaria de te ter mostrado o amor que, nessa altura, te escrevia, como o deveria ter feito também quando fui obrigado a optar, como deveria ter desligado o trabalho e ter-te pegado na mão e levado para o quarto. Irias talvez dizer que um fogo avermelhado caíra do céu e que nós, há muito tempo estávamos acabados e só o Platão nos unia e talvez nunca mais valesse a pena começar de novo, porque nada se tinha perdido, porque a cidade poderia estar em transe de se consumir. A voz gritaria: tudo será mais difícil sozinho, o ser uno, eu e ela sozinhos, um ser desfeito. Tremo de medo quando me feres súcuba os ouvidos, o meu amor por ti que não te tenho mais, estou aqui sozinho. 
Chego ao alojamento e atiro-me para cima da cama. Ligo o computador, já sei... vou-me ligar a ela por esta internet, esta novidade já em fase de testes no campus, suspiro porque não sei se ela vai atender a chamada telefónica de um número estranho, vou pensando: ah! Miséria, eu não agi quando devia mas... no futuro, a casa alternativa fundir-se-á com a beleza pop se Icata, tu a deusa, te recusares tornares-te um cadáver cheio de rugas e, ao mesmo tempo, a minha consciência sair da clausura provocada pela ilusão mistificadora. Enquanto isso não acontece, vivo entre estas quatro paredes e penso frequentemente em traficar rosas, qué frô?, todas as que forem necessárias, penso em transfixar-me para sempre, penso em pecados clandestinos, penso em ter-te nem que seja às escondidas. 
Quando ela atende, A diz: Olha desculpa, sempre apareceste lá no evento e que tal?, recebeste as minhas flores? Não? Pois, amanhã sem falta terás uma surpresa mas agora... lembrei-me, ora pensa comigo, eu tenho uma câmara de vídeo, o teu computador tem outra câmera, eu dou-te o código de acesso, vamos fazer sexo pela rede de informação. Não?! Porquê? Não acreditas em mim? Não, não precisas de pagar nada, eles até agradecem, estamos a experimentar-lhes o serviço, mas nunca fiando... liga o antivírus, ok? 
Bai pastar a toura, é a linguagem que tu entendes, não me ligues mais. Para ti morri. 
Mas querida...
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Claudio Mur

sábado, 4 de julho de 2020

Merveilleuses paroles de Walser

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Levantou-se da cama, vestiu roupas melhores do que o costume e saiu para o pequeno varandim quadrado que tinha à sua disposição. Daqui podia ver as copas das árvores do pomar vizinho. Estava tudo tão tranquilo e cheio de sol que quase encandeava. Pauline, a criada, estava a pôr a mesa do pequeno-almoço ao ar livre. O ajudante já não podia resistir mais a esta visão, o café, o pão, a manteiga chamavam-no para baixo.
Mais tarde desceu para o escritório. Não havia muito que fazer mas, atraído por um hábito quase amoroso, sentou-se ainda assim à secretária, que mais parecia uma mesa de cozinha, e começou a escrever. Ah, mas hoje era só um flirt com a pena, nos outros dias sempre tão séria. As palavras «conversa por telefone» pareciam-lhe tão lavadas e domingueiras como o tempo e o mundo lá fora. A expressão «e permito-me» era azul como o lago aos pés da vivenda Tobler, e os «melhores cumprimentos» que fechavam a carta quase cheiravam a café, sol e compota de cereja.
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página 71

''O ajudante''

Robert Walser
tradução de Isabel Castro Silva
edição Relógio d'Água

...

Comecei a conhecer Robert Walser, há dez anos talvez, através do antigo blog dos actuais editores do blog Bicho Ruim. Eles são entusiastas de Walser e transcreviam no blog passagens dos livros de Walser. Deste modo me tornei eu próprio um entusiasta de Walser quando comecei a conhecer pormenores da sua biografia, afinal Walser escrevera livros e vivera as últimas décadas da sua vida longe do mundo, sem mesmo querer saber dele, internado num sanatório. 
Mais tarde, Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral apresentaram uma sessão walseriana na livraria Gato Vadio (Porto) que encheu pelas costuras. Naquelas duas horas, Walser foi o presidente adorado de todos nós. 
Quem me dera ser ajudante de Walser. Eu que escrevo há anos, sem verdadeiramente me importar em enviar para editoras e ser publicado ou recusado sem resposta, eu que fui já também internado em psiquiatria, e que já me senti mais longe do mundo do que na realidade vou estando e que vou acalmando a revolta dizendo que ainda assim «ainda há gente que come» e eu sou gente, eu como e muitos não, eu olho para Walser como um mestre, em vida e obra, porque a sua obra imita a sua vida, e ele tem tanta fineza de espírito, é um génio de fazer conversação amável e com as melhores palavras com a frau Tobler sem deixar de ser o ajudante do marido, o secretário pessoal. 
Onde Walser é refinado eu sou bruto. Walser é desastrado como ajudante mas sabe compôr o ambiente e aceita o destino com naturalidade, o que o patrão desejar está bom. Eu que já fui estagiário e ajudante de armazém e tive os cargos mais básicos dessas empresas, pelo contrário, se fui despedido dos trabalhos não foi por falta de habilidade técnica como talvez Walser-Marti ajudante de Tobler o será quando eu chegar à página e ler o que ela nesse momento diz. Não, eu no meu caso fui mais um Wirsich, um gajo que se passou dos carretos e explodiu e tornou malcheiroso o ambiente da empresa, impossível continuar a trabalhar lá. Mas também a minha mãe ligou a pedir que me readmitissem mas claro... 
Tenho pena de Wirsich. Walser substitui-o e leio-lhe os pensamentos, o modo como ele antropomorfiza os objectos, o modo como ele dislexia as relações entre substantivos e adjectivos fazendo-me visualizar pumas esvoaçantes, o modo sinestésico como ele dá cor aos vocábulos, e eu divirto-me, sorrio ao ler, retiro mesmo um prazer sensorial comparado a uma boa conversa com uma amiga, dá uma vontade de não parar de ler, de descobrir o sorriso da moça nas páginas e quiçá aspirar a um amplexo no fim do livro, 
Walser é prazer, Walser é grande. Que me importa que eu nunca publique? Walser escreveu o suficiente para descrever a vida de tantos como eu, os meus livros são desnecessários e só ensinam pela negativa. Pelo contrário, os livros de Walser fazem-nos querer ser Walser. Os meus livros são ácidas memórias que corroem, os livros de Walser são flores que se oferecem às damas ou respostas aos nossos emails quando calha escrever a alguém que consideramos. 
Walser teve em Seelig um amigo de caminhadas. Eu não tenho ninguém que se interesse verdadeiramente por mim. Ainda vou tendo a minha amiga que me visita quando se lembra mas que não gosta de caminhar, não gosta de andar a pé, afinal tem um parafuso no pé que é fruto de ter caído de mota numa ribanceira, apostaram com ela e ela ganhou a aposta e, em troca, o cirurgião ofereceu-lhe um parafuso. Coitada, tem os pés pequeninos e chama-me Francstain quando a vou buscar ao metro com a careca no ar, mas eu gosto um pouco dela e ela gosta um pouco de mim, vamo-nos ajudando à distância, ela é quem tenho mais perto de me compreender e de botar por mim a mão no fogo.
Walser retirou do seu mundo as coisas belas sem deixar de dizer em metáfora as coisas más. Eu extirpo as coisas más do meu mundo e nunca consigo dar beleza às coisas boas que também vivi. E sim, tive pessoas belas comigo, boas mulheres, mas só em poucos momentos vi nos seus olhos a admiração, elas queriam um chefe, e eu sou um simples ajudante. 
Walser, eu Mur me ofereço para guardião da tua estátua.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Lendo os jornais


'Lendo os jornais'

óleo sobre madeira, 

49cm por 71cm

2020 

ZMB



Neste trabalho, represento-me lendo a reportagem do jornal Público, onde Alexandra Prado Coelho aprecia a exposição 'Lusofolia' com obras do acervo da Treger Saint Silvestre art collection, no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira, até ao final de Julho de 2020.

Neste trabalho, interpreto livremente as obras apresentadas como fotos na reportagem do jornal e que são da autoria de Ana Carrondo, Jaime Fernandes, Marilena Pelosi e Manuel Carrondo.