quinta-feira, 25 de abril de 2024

-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?

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-- Mas nada que conseguiste ainda?

-- Nada, Maneco! -- Zeca esquivou contar o chicote de sô Souto, o melhor era mesmo calar essa história. -- Já mais de uma semana que estou procurar trabalho, e nada!...

Acendeu outro cigarro, cuspiu na água antes de perguntar:

-- E esse do jornal, já foste?

-- ainda.

-- O melhor é aproveitar mesmo hoje, cadavez, quem sabe?...

-- Oh! não vão me aceitar. Estou magrinho assim, eles falam aí no jornal «escritório e armazém». Você já sabe: sai serviço pesado!

Maneco abriu o recorte e leu o anúncio. em voz alta, devagar, a descobrir ainda cada letra, só segunda classe é que ele tinha, e ler depressa custava. Quando acabou, levantou de um salto parecia era gato, falou gozão pondo uma chapada nas costas de Zeca:

-- Vamos, miúdo!

Chamava-lhe sempre de miúdo quando ia-lhe ajudar nalguma coisa, Zeca já sabia, sorriu. Ao lado do amigo, sentindo a cabeça começar andar às voltas e o mar, muito brilhante, a tremer, falou:

-- Eu vou sozinho, Maneco. sim? Você falaste que ias ainda ajudar o teu amigo, fazer umas horas dele, lá na oficina...

Maneco lhe agarrou no braço só, ajudando a atravessar a estrada, e, antes de sair embora, recomendou:

-- Ouve ainda, Zeca. Se aí não consegues, passa na oficina. Então, como você mesmo quer, te levo no Sebastião para amanhã ir no cimento... Mas você é quem quer!

O tempo fugia para a noite; o sol, raivoso, queimava; tinha um céu muito azul, nem uma nuvem que se via, e na Baixa, sem árvores, os raios de sol atacavam mal. A barriga de Zeca Santos já não refilava mas o calor estava em todo o corpo, punha-lhe comichão nos pés, obrigava-lhe andar depressa no meio da gente toda, a sua camisa amarela ia rápida, esquivava os choques, avançando com coragem no anúncio de emprego, arranjando já na cabeça as palavras, as razões dele, ia falar a avó velha, qualquer serviço mesmo que quisessem lhe dar, não fazia mal, aceitava...

Mas na entrada parou e o receio antigo encheu-lhe o coração. A grande porta de vidro olhava-lhe, deixava ver tudo lá dentro a brilhar, ameaçador. Na mesa perto da porta, um rapaz, seu mais-velho talvez, farda de caqui bem engomada espiava-lhe. Num instante Zeca Santos mirou-se no vidro da porta e viu a camisa amarela florida, seu orgulho e vaidade das pequenas, amarrotada da chuva; as calças azuis, velhas, muito lavadas, todas brancas nos joelhos; e sentiu bem o frio da pedra preta da entrada nos buracos dos sapatos rotos. Toda coragem tinha fugido nessa hora, as palavras que adiantara pensar para dizer a vontade do trabalho e só o bicho na barriga começou o serviço dele outra vez, a roer, a roer. Com medo de sujar, empurrou a porta de vidro e entrou, dirigindo-se ao grande balcão. Mas não teve tempo de andar muito. U homem grande e magro estava na frente dele olhando-lhe o papel na mão. Zeca ia falar, ele só empurrou-lhe na mesa do contínuo:

-- Já sei, já sei. Não digas mais. Vens pelo anúncio, não é? anda para aqui. Xico, ó Xico!

O rapaz da farda veio nas corridas trazendo bloco de papel e lápis e parou na frente dele, à espera. O homem magro observou bem Zeca Santos nos olhos; depois, depressa, desatou a fazer perguntas, parecia queria-lhe mesmo atrapalhar: onde trabalhou; o que é que fazia; quanto ganhava; se estava casado; qual era a família; se era assimilado; se tinha carta de bom comportamento dos outros patrões; muitas coisas mais, Zeca Santos nem conseguia tempo de responder completo, nem nada. E no fim já, quando Zeca tremia de frio com aquele ar de escritório e o vazio da barriga a morder-lhe, a voz de todos a fugir, longe, cada vez mais longe, o homem parou na frente dele para perguntar, olhando a camisa, as calças estreitas, com seus olhos maus, desconfiados:

-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?

-- Nasceu onde? -- repetiu o contínuo.

-- Catete, patrão!

O homem então assobiou, parecia satisfeito, bateu na mesa enquanto tirava os óculos, mostrando os olhos pequenos, cansados.

-- De catete, hem?! Icolibengo?... Calcinhas e ladrões e mangonheiros!... E agora, por cima, terroristas!... Põe-te lá fora, filho dum cão! Rua, filho da mãe, não quero cá catetes!...

''

página 35 - 39

de «Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos» no volume «Luuanda»

de José Luandino Vieira

edição Edições 70


quinta-feira, 18 de abril de 2024

Boicotar as multinacionais, comprar no vizinho, não dar dinheiro ao capital

Tenho a voz repleta de mortos.
Amontoam-se em mim, sou um cemitério.
Tenho a voz repleta de medo.
Entre mortos e medo nada mais resta da vida.
Os jornais fuzilam-me ao pequeno-almoço 
e o pão sabe a escárnio.
O mundo é um álbum necrófilo 
que folheio página a página.
Entre rostos de órfãos 
e fachadas de hospitais 
os dias deixam detritos como impressões digitais.

O que devo fazer?

Héctor Yánover 
em "Por alguma razão, antologia de poesia argentina", página 64

Tradução de Hugo Miguel Santos 
Edição Contracapa


quarta-feira, 17 de abril de 2024

Cegos sem alma

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A festa continuava desconjuntada. Até naquele pátio das traseiras a cair aos bocados havia zonas de gueto e zonas de Malibu e Beverly Hills. Por exemplo, os mais bem-vestidos, os que tinham roupa de marca, agrupavam-se. Cada qual reconhecia os seus congéneres, e não se mostrava minimamente inclinado a misturar-se. Admirei-me de alguns deles se terem disposto a vir a um gueto de Venice. Talvez achassem que era chique. Está claro que o que metia mais nojo era o facto de a parte correspondente aos ricos e famosos ser correspondente, por natureza, a cabras e filhos-da-mãe imbecis. Ou então enriqueciam à custa da estupidez do público em geral. Tinham simplesmente tido a sorte de lhes cair uma fortuna do céu. A maioria era completamente desprovida de talento, uns cegos sem alma, não passavam de montes de esterco ambulantes, mas, aos olhos do público, eram uns deuses, belos e venerados. O mau gosto cria muito mais milionários que o bom gosto. No final, tudo se resume a quem conquista mais votos. Em terra de toupeiras, a toupeira é rei. Então, alguém merecia alguma coisa? Ninguém merecia nada...

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Charles Bukowski em «Hollywood» página 131

edição Alfaguara

domingo, 7 de abril de 2024

A reconhecer pelos notários

 A RECONHECER PELOS NOTÁRIOS


legalizo esta ilegítima presença

assinando o perigo; enfrentando

a ilogicidade do sol. Inteiro

num vago espaço -- sem lugar.


Sou o que risco aberto no vento

a manhã, preclaro do meu sonho,

e de lua em lua, de astro em astro, tento

que a voz seja o teu corpo e a tua

face na água revérbera da luz.


Uma estampa, uma mulher vestida de toureiro,

têm seu retrato na minha locomoção anfíbia.


... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 


Manuel de Castro

em «Bonsoir, Madame», página 159

edição Alexandria / Língua Morta





quinta-feira, 4 de abril de 2024

O jogo do desconfinamento

 O JOGO DO DESCONFINAMENTO

 um jogo de escolhas a jogar a solo e à suivre

em que o jogador joga com e contra si mesmo

Precisas mais duma carta de amor

ou dum extracto mensal de conta?

Precisas de mais um noite de verão

ou de mais um candeeiro design?

Precisas mais de sopa de legumes

ou de suplementos alimentares?

Precisas de mais um parque arborizado

ou de mais um parque de estacionamento?

Precisas mais da conversa no café

ou dos tweets dos poderosos analfabetos?

Precisas de mais uma mercearia gourmet

ou de mais um mercado de frescos?

Precisas mais de um consultor de imagem

ou duma consulta no médico de família?

Precisas de mais escolas livres e gratuitas

ou de mais coaching e de gestores de talentos?

Precisas mais de hospitais públicos

ou de bancos de investimento?

Precisas de mais dramaturgos sem travão

ou de mais opinion makers?

Precisas mais de prados e florestas

ou de cenários virtuais sofisticados?

Precisas de mais filósofos na rua

ou de mais influencers na net?

Precisas mais de serras e oceanos

ou de paisagismo planificado?

Precisas de mais companheiros

ou da companhia de mais hipsters?

Precisas mais de diversidade biológica

ou de transumanismo galopante?

Precisas de mais geografias rebeldes

ou de mais geolocalização dos párias?

Precisas mais do conto a cada encontro

ou do storytelling da netflix?

Precisas de mais do teu precioso tempo

ou de mais tempo para money-making?

Precisas mais de ler e andar nas nuvens

ou de alimentar o éter da tua cloud?

Precisas de mais companheiros de estrada

ou de mais likes no facebook?

Precisas mais do saber-fazer do lavrador

ou das performances do analista de big data?

Precisas de mais instantes inimagináveis

ou de mais fotografias no instagram?

Precisas mais de ideias para mudar mundo

ou dos softskills dum Scrum master?

Precisas de mais professores talentosos

ou de mais horas de e-learning?

Precisas mais da fantasia duma horta louca

ou de roupa trendy e acessórios tendance?

Precisas mais de ver melhor o que te olha

ou de mais selfies em toda a parte e hora?

Precisas mais do café do teu bairro

ou duma casa de chá rétro na baixa?

Precisas de mais gente a bater à tua porta

ou de mais aplicações no teu smartphone?

Precisas mais da sombra das árvores

ou dum bunker com todas as comodidades?

Precisas de mais bancos de jardim

ou de mais garantias de sigilo bancário?

Precisas mais de paraísos fiscais

ou de mais paraísos artificiais?

Precisas de mais saltimbancos

ou de câmaras de vigilância?

Precisas mais de cantinas comunitárias

ou de templos da nouvelle cuisine?

Precisas de mais contraditores ferozes

ou de mais animais de estimação?

Precisas de mais funambulismo na mioleira

ou de mais arame farpado na fronteira?

Precisas mais de ver crianças a brincar na rua

ou de visitar dreamlands e parques temáticos?

Precisas de mais razões para uma longa vida

ou de mais lazer e escapismo organizado?

Precisas mais de quem te ouça e console

ou dos videojogos da consola?

Precisas mais de brincar aos cozinhados

ou de oscilar entre low-food e fast-food?

Precisas de mais memória para pensar

ou mais ram para te esqueceres disso?



Regina Guimarães

em «caderno das duas irmãs e do que elas sabiam», página 64

editora Exclamação


quarta-feira, 3 de abril de 2024

Lay off

 

LAY OFF


depois da primeira aula de jaula

pousei a cábula do meu corpo

no cimo morno dum muro

e

de livro aberto no colo

passei a fazer gazeta



já reparaste, camarada,

na vida prolífera dos muros

os muros moldura e os muros ninho

os muros de saltar e os de ruir

os muros lavrados de musgos e líquenes

os muros peçonhentos reptilíneos

e os muros abraçados por espinhos



depois da primeira cantiga

gritada debaixo do chuveiro

marquei com os pés ainda molhados

as voltas que o pensamento pode dar

quando está preso a si mesmo

e nem a quem pode libertá-lo se confia



já reparaste, camarada

nos pequenos dilúvios de que sou capaz

para diluir num só bloco

o pico da montanha e o fundo do vale

com aguarela de limar escarpas

e vassouradas de verde bandeira

até eu mesma ser sem cume e sem sopé



Regina Guimarães

em «caderno das duas irmãs e do que elas sabiam»

página 77

edição Exclamação

terça-feira, 2 de abril de 2024

Tuíte Convite na mesma

Como sabem ontem foi dia das mentiras e portanto voltei a ser apenas um remediado que não ganhou o Euromilhões porque não joga nele. Assim, já não poderei aceitar pedidos de namoro a troco de noções religiosas e culinárias de senhoras da federação russa, nem poderei aceitar pedidos de resgate de donzelas da Nigéria.
Mas o convite para aparecerem por aqui mantém-se: tragam os fígados porque terei para os mais eloquentes desafiadores uma oficina de corticoze e para os artistas e demais criançada um concurso de pintura de carapaça de caracóis, sejam bem-vindos!

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Tuíte Convite

Vocês não vão acreditar mas a notícia tem já vários dias: ganhei o Euromilhões e estou a convidar todo o mundo para vir beber um copo à Rua Paga o Que Deves em Conho City, apareçam!

domingo, 24 de março de 2024

Gaza equals Warsaw Ghetto [repost]

Eu tenho amigos judeus a quem vendi quadros.
Mas eu estou do lado dos mais de 32 mil palestinianos que morreram entre outubro e março de 2024 e tenho já pouca pena dos 200 israelitas reféns que aliás já devem estar mortos debaixo das casas destruídas pelas bombas. Infelizmente, já não dá para relativizar e dizer que a morte vale o mesmo para cada um dos lados. 




'Gaza equals Warsaw ghetto'
óleo sobre cartão canelado, 
61cm por 76cm (com moldura)
2009 
ZMB


Fiz este trabalho a partir de jornais activistas.
Em 2009 escrevi o seguinte:

'
Estou em casa.
Ouço Muslimgauze e
uma pequena sequência sonora
faz-me olhar para a porta
pensando que alguém estará a bater.
Então olho e não vejo movimento.
A cortina está silenciosa.
Então não estão a bater.
À minha porta não estão a bater.
Mas nas portas e janelas de Gaza [Janeiro 2009],
nos telhados de uma cidade de refugiados
estão a bater bombas cirúrgicas de fósforo branco.
Numa semana morreram 500 pessoas.
Os judeus deveriam lembrar
a realidade nazi que viveram
e fazer mea culpa com os palestinianos.
Talvez seja uma das razões pela qual
o Irão nega o holocausto de seis milhões de judeus.
'
Claudio Mur


Hoje poderia repetir-me e escrever o mesmo.
O mundo não mudou e tornou-se ainda mais estúpido.

Baile no recreio


 

«Baile no recreio»

óleo sobre papel tamanho A2

2024

ZMB

sexta-feira, 22 de março de 2024

Genesis

 -- A sua mãe está cada vez mais bonita!

-- Obrigado gata, sim, a minha mãe está bonita mas está a...

-- Não diga isso, eu lhe proíbo!

-- Sim mãe é mãe. E a sua mãe está melhor? Recuperou da ansiedade?

-- Foi ao médico e ele passou medicamento. Está melhor mas já tem 80 anos. Ela pensa que eu esqueci mas eu apenas lhe perdoei. A culpa de eu vir embora foi do companheiro dela. Vinha com a primeira luz do dia e dizia «vamos trabalhar», era um safado cheio de doenças, aí eu gostava de dar a injecção nele, de o picar, via a tensão, o açúcar e depois dava a insulina...

-- Iá o velho que se metia contigo...

-- É, uma vez eu disse que ia cortar a língua dele e aí ele, o sem-vergonha pôs a língua de fora pra me provocar, aí eu me passei, e disse se não cala sua boca eu ponho insulina a mais! Aí minha mãe disse vou ter de encomendar dois caixão. E eu respondi na raiva: é melhor encomendar três! E pronto foi assim, não podia ficar lá, tinha de voltar para aqui.

-- Olha, é a diferença de uma mão verdadeira e uma mãe de criação: a tua pôs o companheiro à tua frente; a minha... olha então, ontem mesmo... eu costumo preparar dois pães com manteiga para o pequeno almoço e ontem assim fiz, mas ao dar a dentada no segundo acompanhando o café não quis comer mais e deitei o pão no lixo, então a minha mãe que só se levanta mais tarde depois viu o pão no lixo mas não disse nada, ao almoço olhou para mim com cara de caso mas não disse nada, e foi preciso chegar a noite, ela descer as escadas e chegar ao anexo e perguntar-me quase a chorar: Ru, estás mal do estômago?, percebes, ela passou o dia a sofrer por mim, uma coisa insignificante, cuidado aí com o poste.

-- Sempre que vejo um poste rio-me mas já não sei porquê ihihih.

-- Está no livro, tem de chegar até lá e ler. O livro tem também os seus pensamentos que é a secção das grandes penalidades eheheh está-se a rir? O livro é um jogo de futebol.

-- Ahahah

-- Pois foi assim, eu comecei a escrever e andava a escrever um pouco escondendo os factos até que você disse Isto dava o livro e então eu escrevi o livro. Depois a gente chateou-se e eu dei o livro por terminado, mas depois você ligou e até veio para minha casa correu mal e aquí pensei É a segunda parte e a final, mas depois você voltou a ligar e eu chamei-lhe prolongamento que só terminou quando eu deixei de ter casa para te receber. Então nada mais natural que haver um Aquecimento, um intervalo, e até uma nota de imprensa.

-- Tenho de ganhar coragem e ler.

-- Olha é o livro que mais me orgulho, eu já tinha escrito livros antes mas eram eu e elas ou eu contra todos e este livro é diferente, este livro és tu, tu e eu. E é por isso que me orgulho muito dele.

-- Chegamos à paragem, agora é só chegar o autocarro.

-- E logo neste fim de mundo...


quarta-feira, 20 de março de 2024

Recordação precipitada de Teixeira de Pascoes

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(Certo dia precisei de um cigarro, mais para mostrar do que para fumar...
Não tinha. Pascoaes abriu imediatamente a cigarreira, quase com precipitação:
-- Tira destas aqui... -- E exibia uns cigarros magrinhos, com todo o aspecto de terem sido enrolados e lambidos por ele na véspera à noite... Com uma certa repugnância, já que do poeta apreciava não a saliva mas o verbo, extraí um dos cigarrinhos, disposto a queimá-lo depressa e a não pensar mais nisso...
Pascoaes mirava-me candidamente. E só ao primeiro acesso de tosse do jovem fumador, aquela falsa candura se desfaz em riso, num riso grosso e folião, mas cheio de bondade... Eram cigarros cubanos, fortíssimos! E o poeta ria infantilmente com as nuvens de fumo, as lágrimas e a tosse do petulante fumador...)

Às vezes acompanhava-o na volta do fim da tarde a Pascoes. Com passo rápido e seco, meio curvado, a bengalinha adiantando-se e abrindo caminho à bicada, o meu poeta murmurava coisas, possivelmente pedras, fragas,restos do Marão por digerir...
E é a última imagem que do poeta guardo: a visão de um terrível andarilho caminhando por uma estrada já tão descarnada como ele, caminhando sempre.
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Alexandre O'neill em
" Coração acordeão" página 16
Edição de Vasco Rosa/ O Independente, 2004

sexta-feira, 15 de março de 2024

Tuíte We're only here for the money? We shouldn't be

 Um jovem, músico ou praticante de um ofício com o qual pretende singrar e fazer carreira, às vezes na ânsia de aproveitar as oportunidades e ser ouvido, lido ou citado e respeitado, por um número crescente de ouvintes e até ouvintes pagantes, aceita todas as ofertas de trabalho que lhe surgem. Como em todo o mercado laboral ou «de fama» às vezes quem paga o devido salário não é a flor mais cheirosa. E muitos de nós, qualquer pessoa na realidade, aceita benefícios de pessoas de quem não gosta ou cujas opiniões lhe são contrárias. Quando confrontadas, dizem que o fazem por terem de ganhar a vida, o sustento, o público.

Mas não deverá haver um limite?
Não deveríamos ser capazes de não aceitar dinheiro, um salário, de não trabalhar com quem não gostamos? Não deveríamos trabalhar só com quem sentimos afinidades?, e não apenas dizermos que se recebemos dinheiro de um gatuno o fizemos apenas por necessidade, como se o dinheiro fosse mais importante que as convicções?
Um pobre ou quem passa necessidade, talvez não tenha outra hipótese porque a sociedade não é justa na distribuição; mas uma pessoa quando já atingiu um estatuto ou bem estar e que não queira sempre mais e mais, deveria agir por convicção e não por dinheiro, que aqui funciona como uma máscara, uma aparência que dá uma imagem falsa da verdade, e que engana o seu próprio público.

Ovro : Revisited : last 3 tracks

quarta-feira, 13 de março de 2024

Tuíte Desiludido

Antigamente, nós, jovens que nos dizíamos revoltados, urdíamos a nossa revolta ouvindo cassetes de Pixies Sonic and Swans e até Mão Morta e Pop dell Arte.
Hoje os jovens revoltados já nem sabem o que é um disco, viralizam as aparências ao som do sertanejo e do Quim Barreiros que votou no Chega.
Enquanto isso, a maioria adora o espectáculo da Deslandes e da Tinoco cantando as Barbies de Abril e dizem A minha filha vai ser princesa como elas, votem em mim, eu prometo.

Pixies Hey

Hey, been trying to meet you
Hey, must be a devil between us
Or whores in my head
Whores at the door
Whore in my bed
But hey!
Where have you been?
If you go, I will surely die
We're chained
We're chained
We're chained
Chained
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
Uh, said the man to the lady
"Uh, said the lady to the man she adored
And the whores like a choir: Uh-uh
All night
And Mary, ain't you tired of this?
Uh, is the sound
That the mother makes when the baby breaks
We're chained
We're chained
We're chained
We're chained
We're chained
(Chained) We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)
We're chained (chained)

quarta-feira, 6 de março de 2024

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O grande homem

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Soube que era um génio quando comecei a encontrar o romance nas livrarias; quando o retrato principiou a aparecer nos jornais: quando dei a primeira entrevista à televisão. Consciente da minha celebridade e do meu talento, pareceu-me injusto não sair para a rua de pé, em carro descoberto, cercado por guarda-costas de óculos ray-ban, a mostrar-me e a abençoar.

Decerto que ao passar, num cortejo lento com motociclistas à cabeça, os homens tirariam o chapéu a persignarem-se, vergados de respeito, decerto que algumas velhotas ajoelhariam a rezar. Convicto da minha fama e da admiração dos contemporâneos, resolvi, como era Agosto, oferecer à Praia das Maçãs a dávida da minha presença, seguro de aplausos, autógrafos, interjeições entusiasmadas e gritos de fãs à beira do desmaio.

Cheguei por alturas do almoço após horas e horas numa bicha de automóveis domingueiros obviamente repletos de leitores entusiastas, e parei no restaurante do Augusto onde uma multidão de súbditos se debruçava para o cherne pronta a aclamar-me no fervor das paixões ilimitadas. Ninguém pareceu dar pela minha entrada: nem um maxilar deixou de mastigar o bitoque, nem um nariz emergiu do galheteiro para me observar com pasmo, e quando eu, agastado com a incompreensível distracção das pessoas, tossi a chamá-las, a voz do Augusto veio lá do fundo do balcão, a apontar-me num brado que fez tilintar de susto os copos de Colares e sobressaltou a hibernação das lagostas mancando nos calhaus do aquário:

-- Olha o Antoninho! Dei tanto pontapé no cu daquele gajo!

''


página 11

António Lobo Antunes em «Crónicas»

edição Publicações Dom Quixote

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Coil - Paint me as a dead soul

Paint me as a dead soul With a halo of black joy Medusa in a mirror Etched out in acid The flesh, the image, the reflection One who dwells in scarlet darkness Like animals in palaces Drawing blood The flesh, the image, the reflection Let's complete the illusion Paint me as you see me From memory or history In a fever or a frenzy Paint your lucid dreams and visions In a chamber of nightmares In a temple of locusts So violent, vile and vivid May the colours make you fearful Blind and hypnotizing In our subterranean heaven Paint my cunt with dragonflies My eyes as bright as diamonds My heart open like an ulcer Or a sacred crimson rose Bathed in blood Or drowning in my bed With the fragrance from the flowers In the gardens of the dead Paint ghostly foxes, cats and camels A red dog and a black dog Paint a putrid sunset In verdigris and violet Ochre, amber, mauve Four monks Carrying a goat Over the snows To nowhere And paint the shades That come with evening Peacock angels Dream of leaving Paint me as you see me Paint me as I see me Paint me as a dead soul

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Tuíte político

Eu falo pouco da minha infância e adolescência porque ela foi um pouco opressiva e desprovida de muita felicidade e teve muita alienação, não há coisas bonitas que façam um livro futuro. Assim fugi dos meus pais aos 18 indo estudar noutra cidade e um mundo novo se abriu, à custa dos meus pais que me pagaram a estadia, a renda e as propinas. O estudo correu mal mas terminei-o. Trabalhei e fui despedido, fiquei doente, lutei por ser alguém, pintei e vendi, tive amores incompletos e falhados, escrevi livros que poucos lêem porque são em edição de autor e eu pouca publicidade faço. Além disso, enterro-me sempre que abro a boca e o escrevo ou digo em público. Por tudo isto me reformei e a casa dos pais voltei porque não aufiro valores necessários para viver na minha própria casa.
Hoje sou obrigado a fazer compromissos com pessoas comuns que têm ideias com as quais não concordo e não é só no café. A minha atitude em casa é fazer chegar conhecimento à minha mãe que ouve mal e ao meu pai que tem ódio ao socialismo.
Ganhei uma batalha quando fiz que ele não vote no Chega, o neofacho do Ventura queimou-se quando chamou o Montenegro de prostituta política,  ele compreendeu finalmente. 
Esquerda 1 - Fascismo 0

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Tuíte O céu e a lei

Bem venturados os loucos
Porque deles é o reino do céu
Votam em quem lhes atira um osso
E não se importam de dormir com o cão 

domingo, 18 de fevereiro de 2024

E ergue entre sorrisos esse copo, e diz-me:

 O protocolo do rubor


Logo haverá tempo para a farsa

do «estudas ou trabalhas, costumas

vir aqui, como vai o teu irmão,

e o teu pai, e o teu cão, onde é que vives,

do que é que gostas, viste este filme

- olha, surpreendeu-me -», se preferes

comida chinesa ou italiana,

o whisky em copo raso, se és abstémia,

praticas ginástica rítmica, sessões espíritas,

se já estiveste em Londres ou em Paris.


Logo haverá tempo para o «meu amor, minha querida»,

tempo para o calor e para a ternura,

o doce recolhimento pós-coital,

o cigarro da tua marca favorita,

um copo de vinho ou café

com leite, confidências

sussurradas ao ouvido

na penumbra do quarto.


Logo haverá tempo para a indiferença,

a incúria, os gritos, as palavras

feias, a louça partida,

e para as lágrimas e consolos, encontros

e desencontros, mensagens de ódio

ou de rancor, se for isso o que a vida

nos exige e isto não se limitar

às cinza de uma noite que se esgota

aqui e agora, entre os fogos

fátuos de uma estúpida comédia programada

por ditame de um deus desmiolado.


Porque tu sabes e eu sei que nunca

há tempo. Por isso cala-te. E olha para mim.

E ergue entre sorrisos esse copo, e diz-me:

«Cala-te e fode-me».



Roger Wolfe

página 74 - 75

em ''Fazer o trabalho sujo''

tradução de Luís Pedroso

edição Língua Morta


Before the white men came [repost]



Instruments used by Raksha Mancham are: Arghul (Egyptian double bamboo flute), Balafon, bass drum, bells, blowpipes, Bu Cham Rol Mo (Tibetan cymbals), cattle bells, Chöd Tön dhar (Tibetan narrow drum), claves, congas, cymbals, Darbouka (Moroccoan and Tunisian hand drums), Djembe (Malian drum), Drilbu (Tibetan bell), drums, Dung Chen (Tibetan horn), Dung-dKar (Tibetan conch), flute, g-Ling-Bu (Tibetan double flute), gong, r-Gna (Tibetan drum), r-Gyaling (Tibetan shawn), Ingoma (Rwandese drum), r-Kang Ling (Tibetan horn), marimba, Mendjan (Cameroonese xylophone), metal, Nachung r-Kang-Dung (Tibetan thigh bone horn), panflutes, acoustic percussions, metal percussions, rattle, Riqq (Egyption tambourine), rototoms, Sallamiya (Egyptian reed flute), Sanza, Limbu shaman drum, Shehnaï (Nepalese shawn), snare drum, Tal (Egyptian cymbals), tambourine, tapes, toms, Tön Dhar (Tibetan narrow drum), violin, vocals, voices, woodblocks, wood percussions, zither-cymbalo,... The use of the traditional instruments, especially when they are sacred ones, has been made with the greatest respect. It is important to consider the particular cultural heritage of the indigenous peoples as a source of enrichment for the whole Humanity.

Swans - Miracle of Love

She holds a key to the room down there And I, I will follow, but I'll never fall in Yeah, we'll suffer for nothing and we'll never forgive God said to no one to do what he did One second in your presence is a miracle of love One second denied is a miracle of love The young man is weakness in a lover's disguise The woman is strong in her warm, bitter lies How will they hope what they can never perceive And how do they love what they fail to deceive One second in your memory is a miracle of lies One heartbeat in your body is a miracle of love White light on a black sky is a miracle from above One lonely moment in your arms is a miracle of love

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Tanta gente sem casa Tanta casa sem gente

A Comunidade do Além
Num momento feliz.
Esta comunidade já não existe.
Alguns dos actores infelizmente já faleceram, outros poderão hoje continuar sem abrigo ou estarem presos em hospitais, espero que a Sara Bidente já não viva na rua.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Tuíte Café de saco não manda ninguém de saco e tira o asco dos puxa-saco

 Quando já é difícil encontrar um café na vizinhança que não tenha fechado ou não esteja invadido pela música sertaneja e o teu único vizinho, com quem tu ainda trocas algumas palavras além do respeitoso «bom dia, boa tarde» e antigo colega de festança copofónica, que já poucas saudades deixam que não tenham sido escrevinhadas por alguma personagem do meu eu... 

e ele me diz que só quer saber de quanto lhe vai custar comprar um carro eléctrico enquanto eu lhe falo da obsolescência das baterias e dos prejuízos sociais e ambientais que são provocados ao produzir uma bateria de lítio... 

e ele me fala da teoria da grande substituição quando vê um negro entrar no café para registar o euromilhões rematando com «olha o que se passa em França, vais ver aqui dentro de alguns anos...»,


fica explicada a razão porque cada vez menos saio de casa e prefiro dialogar com as personagens dos livros que leio enquanto fumo cada vez menos, ouço um disco e bebo café de saco fervido no fogão da cozinha.

Salvam-se actualmente dois cafés a uma hora de distância: O Asa de Mosca e o Macau onde de vez em quando me reúno com os meus dois leitores preciosos.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Em agradecimento aos meus dois únicos leitores em papel da encadernação anónim@s do séc XXIII, transcrevo o mestre Tcheckoff:

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Se eu tivesse desejos de encomendar um anel, escolheria a divisa: «Nada passa!» Na realidade penso que nada passa e tudo deixa os seus vestígios; o mais insignificante dos nossos passos tem o seu sentido, quer nesta vida, quer na vida futura.

Não foi em vão que vivi a meu modo. As minhas grandes desgraças e a minha paciência sensibilizaram o coração dos meus conterrâneos e agora já não me chamam Melhor-que-nada. Já não fazem troça de mim e, quando passo pelo mercado, não me atiram com água. Acostumaram-se a ver em mim um operário, e a ver-me, a-pesar-de ser nobre, acarretar baldes de tinta e colocar vidros. Agora, muito ao contrário, dão-me encomendas de boa vontade e passo por ser um bom artífice e o melhor empreiteiro da cidade depois de Redka que, já curado e continuando a pintar cúpulas de campanários sem andaimes, continua a não ter forças para se impor aos seus auxiliares; corro a cidade, em vez dele, à procura de encomendas; contrato e pago operários; peço dinheiro emprestado com grandes juros e agora compreendo por que razão, por causa de uma encomenda insignificante, se possa percorrer a cidade dois ou três dias à procura de homens para cobrir um telhado. São delicados comigo; tratam-me por senhor e, nas casas onde trabalho, oferecem-me chá e mandam-me preguntar se não quero jantar. As crianças e raparigas vêm muitas vezes ver-me, cheias de curiosidade e compaixão.

Um dia, como eu estivesse a trabalhar no jardim do palácio do govêrno, a fingir mármore num caramanchão, o governador, que andava a passear pelo jardim, entrou ali e, por não ter mais nada que fazer, pôs-se a conversar comigo. Lembrei-lhe o dia em que me tinham obrigado a vir a casa dêle para uma explicação. Olhou-me um instante, depois arredondou a boca como um O, afastou os braços e disse:

-- Não me lembro.

Eu agora já envelheci, tornei-me silencioso, rude, severo. Raras vezes rio, e dizem que me pareço com Redka. Como êle, aborreço os operários com os meus sermões inúteis.

Maria Victorovna, a minha ex-mulher, vive agora no estranjeiro. Seu pai, o engenheiro, constrói um caminho de ferro nas província orientais e compra terras. O dr. Blagovo também está no estranjeiro. A propriedade da Dubetchnya voltou à posse da mâi do Tcheprakoff que a comprou vinte por cento mais barata. Moisés anda de chapéu de côco; vem muitas vezes, numa aranha, à cidade e pára em frente do banco. Dizem que já comprou, por cessão, um morgadio e faz constantemente preguntas mo banco acêrca da Dubetchnya, que também faz tenções de comprar. O pobre Ivan Tcheprakoff andou muito tempo a coçar as esquinas da cidade, sem fazer nada, e a embebedar-se constantemente.

Tentei dar-lhe trabalho e durante algum tempo andou connosco a pintar telhados e a pôr vidros nas janelas; chegou mesmo a gostar do trabalho e roubava óleo; pedia gorgetas e embebedava-se como um autêntico pintor. Mas depressa se aborreceu. Tornou-se triste e voltou para a Dubetchnya. E os operários confessaram-me, algum tempo depois, que os tinha incitado a irem com êle, de noite, matar Moisés e roubar a mãi.

Meu pai envelheceu muito. Está corcovado e passeia de noite em frente à porta de casa. Nunca vou visitá-lo.

Prokofy, durante a cólera, tratava os doentes a vodka com pimenta em que deitava alcatrão, levava dinheiro aos clientes e, segundo o que li no jornal da cidade, foi condenado a levar chibatadas por ter falado mal dos médicos, no seu talho. O caixeiro Nikolka morreu de cólera. Karpovna ainda vive e, como sempre, continua a amar e a temer o seu Prokofy. Quando me vê diz-me sempre, abanando a cabeça e suspirando:

-- Desgraçado! Desgraçado de ti!

Durante os dias de semana, estou sempre ocupado desde pela manhã até à noite, mas nos dias feriados, quando está bom tempo, pego na minha sobrinha ao colo (minha irmã esperava um rapaz mas nasceu-lhe uma menina) e vou devagar até ao cemitério. Fico lá muito tempo a olhar para a campa que me é querida e digo à pequenina que a mãi está ali deitada.

Às vezes encontro, perto da campa, Aniuta Blagovo. Cumprimentamo-nos e ficamos silenciosos, ou falamos de Cleópatra, da sua filhinha, da triste vida que levamos neste mundo; depois, ao sairmos do cemitério, caminhamos em silêncio e ela afrouxa o passo a-fim-de seguir mais tempo ao pé de mim. A pequenita, alegre e feliz, piscando os olhos por causa da luz crua, estende-lhe as mãozinhas; paramos então ambos a fazer-lhe festas.

Ao chegarmos à cidade, Aniuta Blagovo, perturbada e còrada, diz-me adeus e continua a caminhar sòzinha, séria e severa... Nenhuma das pessoas que a encontra pensará que ela acaba de passear ao meu lado e que até fêz festas à pequenita.

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páginas 168 - 171

Anton Tcheckoff em «Romance duma vida»

tradução de Cordeiro de Brito

edição Vasco Rodrigues \ editor, 1938



segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

You have to fight for your right to party

 


desenho a grafite, marcador de preto permanente e caneta bic 
sobre papel de 300grms
50cm por 70cm
2024
ZMB

sábado, 27 de janeiro de 2024

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

270 fadistas corruptos «de bem» no barbeiro

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E tomava ele consciência daquela tragédia do medo?

A sua valentia era proverbial, conhecida em todas as terras de Entre Douro e Minho, uma valentia física, rica nos momentos de bordoada, falada com respeito pelos que iam escanhoar-se ao Xasco de Ponte de Lima. «Ah, para esse fidalgo não bastam quatro homens armados! Teso como quê! Ainda no outro dia os da Beringela andavam com uma questão de águas da serra e ele veio em socorro e matou dois feitores de Bertiandos sem esfregar um olho. Duro como granito! Assim é que eu gosto de os ver! Conservam a velha raça. Sem medo. É capaz de ferrar uma mula e não desmontar da alimária, com vossa licença. Ó Xasco, tu não ouviste dizer que o fidalgo até escrevia para os jornais? Dizem que manda botar cantigas pelo S. João, que oferece, com os craveiros, às primas da Torre -- as poucas que ele ainda não desflorou. É danado para isso. Valentão. Nem armado se pode andar à confiança. No outro dia passei por ele perto da Fontinha e, não fosse o Cavaleiro da Barbela vir em minha ajuda, ele afogava-me ali mesmo para seu bel-prazer. Tem uma força! E depois ninguém lhe vai à mão! Enfim, são sortes e a gente que se aguente no balanço. É mais a fama que o proveito. Também lá há de ter as suas horas de tristeza já que o medo ele não conhece. (Corte lá isso com mais jeito, seu Xasco, rape para a frente, à escovinha para a piolhagem saltar viva cá para fora!) Parece que os anos em vez de lhe darem mais tino o tornaram pior. Que fidalgos! Querem tudo e não dão nada... Lá para a Beringela é o que se sabe... Nunca foi vista uma mulher que não estivesse prenha; é tudo a eito. Também cruzam uns com os outros e acabam sem raça; uns rafeiros que afinal é o que nós somos. (Ó Xasco, corta-me mais a pera do lado direito.) Dizem que esteve aí uma francesa que os pôs a todos a pão e laranja. Grande mulher! O pessoal de fora esmera-se sempre um bocado; vêm bem arreadas; trazem cheiros para a sovacagem e sabem endrominar coisas sem fazerem filhos. Boa fruta! Parece que já se foi embora. eu cá não tenho visto o carro. Se calhar está para o Porto ou Lisboa. -- Parece-me que sei quem ela é. Não foi ela que esteve no Monte de São Semedo quando das festas? Sei bem quem é. Boa carne! Se é tenra não sei, isso é lá com os que a provaram. (Não deite tanto álcool que me faz arder a cara. Uih, uih, e a toalha? Ah, sempre a mesma porcaria, e a gente que se limpe às mãos!) E esse louco do italiano, o bobo ou lá o raio que ele é, tem aparecido por cá? Desde as Feiras Novas que nunca mais o vi. Dá a impressão que esta gente se mete lá nos buracos e fica fechada todo o ano à espera que cheguem as festas. Mas o tipo é bacano. Diz cada uma, numa língua de preto! Aquilo nem é já italiano nem espanhol e ainda não é português. O bobo é bem caçado, e deita cá para fora cada uma que até faz corar um regimento de artilharia de campanha.

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páginas 208 - 209

de «A Torre da Barbela» de Ruben A.

edição Colecção Miniatura, Livros do Brasil

sábado, 20 de janeiro de 2024

Ru Mur Monk, do u b?



Ru Mur Monk, do u b?
óleo sobre papel A2,
2023 ZMB

Under the influence of
https://www.youtube.com/watch?v=d2VvBLeCQ9w


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Ru Sousa

Ando há anos com uma frase de Baudelaire atravessada na garganta e desde que a li que tento escrever uma refutação mas acabo sempre a perder-me no raciocínio.
Baudelaire escreveu em O meu coração a nu, fogachos qualquer coisa como isto: Só os pederastas se interessam por mulheres inteligentes.
Eu quis refutar e dizer: É falso o que ele diz, eu não sou gay e gosto de mulheres inteligentes. Mas abandono sempre o assunto e não o concluo porque fico dogmático.
Eu gosto de mulheres inteligentes mas se não lhes descobrir um pormenor de beleza não me aproximo. Ideal seria uma mulher bela e inteligente.
Mas o que é a inteligência? 
É saber falar de um livro ou de um quadro ou de economia empresarial ou de filosofia? Estas despediram-me às vezes com educação mas enojadas com o meu mau aspecto e a minha burrice.
É saber gerir a família e os filhos? Essas chamam-me filho quando se riem dos meus absurdos mas depois quando há algum stress dizem que o marido não deixa.
É fazer-se à vida esgravatando cada cêntimo e assim sobreviver e até subir de nível social? Essas chamam: ó sócio!, arranja aí cinco euros para o café.
Eu quando reparo no que os meus amigos querem das mulheres reparo que casaram com a namorada do liceu, tiveram filhos e engordam de cerveja no café, talvez porque não suportem já a burrice da mulher, porque as inteligentes arranjaram maneira de se divorciar levando-lhes a honra e enchendo-os de ressabiamento contra elas e indo semanalmente satisfazerem-se com prostitutas e crack.
E em que eu sou diferente deles?
Sou apenas diferente porque não casei nem com a primeira namorada e se calhar apenas porque ela não me quis mais e eu como vi que tinha culpa na sua decisão de me deixar.... tentei mudar de atitude, tentei deixar de ser um típico macho ibérico e não quis nunca mais casar, quis partilhar em vez de apenas possuir, quis trocar ideias. No fundo, passei a preocupar-me mais com a satisfação dos seus desejos do com a satisfação dos meus, dar cada vez mais e receber cada vez menos, aniquilar-me.
E como os anos passam e até as mulheres inteligentes querem quase todas constituir família, as mulheres que vão aparecendo são fugitivas a realidades opressivas e já não importa a beleza nem a inteligência, só importa se tens o dinheiro que compra a chave para abrir a prisão.
E assim um Ru transfoma-se num Sousa ditador que não queria ser, o Sousa só queria ser um Ru que conseguisse dar e receber em igual medida.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Tuíte Começou a caça ao voto

 Em dois meses decorridos de campanha eleitoral foram já dois líderes partidários a dizerem que me irão aumentar a reforma em 500 euros.

O primeiro foi o montenegro no congresso do psd a dizer Vamos equiparar todas as reformas ao salário mínimo!

O segundo foi o venturra na convenção do chega ontem a dizer o mesmo.

O primeiro foi desmentido no dia seguinte quando se esclareceu que não era a reforma que ia aumentar mas sim o complemento solidário de idosos, que como se sabe não é universal, e se um idoso tiver um filho a viver no Japão com um bom salário, o idoso tem de meter o salário do filho que não vê há décadas na folha de rendimentos, e logo o idoso perde o direito ao complemento solidário de idosos porque se admite que se o filho é rico então que cuide do pai mesmo que este não o possa ver à frente.

O Venturra até disse que se tal equiparação ao salário mínimo não acontecer ele demitir-se-á.

Como fez aqui há uns anos: disse que se demitia, demitiu-se, e no dia seguinte voltou a concorrer como candidato único e ganhou fazendo disso uma grande vitória, mesmo que considerada pelo tribunal como inconstitucional.

Só quem for ótario é que vota nestes intrujões, que sabem que algum povo tem memória curta.


Baile no recreio, futuro óleo

Desenho A2 a pincel sobre papel

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

A Malvada Família

 


A Malvada Família,

óleo sobre aglomerado de madeira, 60cm por 90 cm,

2023 ZMB

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Tuíte o início do PDI

-- Tou fodido, vou fazer análises ao sangue, vão descobrir que as minhas células adquiriram a forma de uma folha de erva.
-- Já eu tou fodida também com pau dentro e dezoito a redor, mãe misericórdia.