terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Suita romanesca: Doina "Sus pe culmea dealului"

Samuel Freiburghaus & Thilo Muster

 @ Rádio Antena 2

today December 29, 2020, around 2h PM

best musical find of the season:


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

As minhas propriedades

 


desenho a caneta bic e lápis de pastel seco
sobre papel tamanho 30,5cm por 43cm
2020
ZMB

Este fim-de-semana
estive a ler alguns textos numa antologia de Michaux
e quis fazer um desenho
mas o Michaux é um pintor em verso
e tem demasiadas imagens,
 cada poema dava para fazer uma zine inteira de BD.
Ontem, resolvi fazer este desenho 
a partir dos rabiscos já pintados numa tela em actual progressão.
Pareceu-me que batia certo com Michaux
e não necessariamente com o seu poema 
cujo nome adoptei para título deste desenho.



dedicado ao Portugalex, obrigado pela folia radiofónica
Retribuo citando:

 let there be light

let there be sound

let there be music and

hmm


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O Papagaio Real

 As edições zmb_mur

(antigas Edições Cassiber)

apresentam:

«O Papagaio Real»

com o alto patrocínio da Comunidade do Além

domingo, 20 de dezembro de 2020

Eu, o narrador, sou Muatiânvua

 '

Meu pai era um trabalhador bailundo da Diamang, minha mãe uma kimbundo do Songo.

O meu pai morreu tuberculoso com o trabalho das minas, um ano depois de eu nascer. Nasci na Lunda, no centro do diamante. O meu pai cavou com a picareta a terra virgem, carregou vagões de terra, que ia ser separada para dela se libertarem os diamantes. Morreu num hospital da Companhia, tuberculoso. O meu pai pegou com as mãos rudes milhares de escudos de diamantes. A nós não deixou um só, nem sequer o salário de um mês. O diamante entrou-lhe no peito, chupou-lhe a força, chupou, até que ele morreu.

O brilho do diamante são as lágrimas dos trabalhadores da Companhia. A dureza do diamante é ilusão: não é mais que gotas de suor esmagadas pelas toneladas de terra que o cobrem.

Nasci no meio dos diamantes, sem os ver. Talvez porque nasci no meio de diamantes, ainda jovem senti atracção pelas gotas do mar imenso, aquelas gotas-diamante que chocam contra o casco dos navios e saltam para o ar, aos milhares, com o brilho leitoso das lágrimas escondidas.

O mar foi por mim percorrido durante anos, de norte para sul, até à Namíbia, onde o deserto vem misturar-se com a areia da praia, até ao Gabão e ao Ghana, e ao Senegal, onde o verde das praias vai amarelecendo, até de novo se confundir com elas na Mauritânia, juntando a África do Norte à África Austral, no amarelo das suas praias. Marinheiro do Atlântico, e mesmo do Índico eu fui. Cheguei até à Arábia, e de novo encontrei as praias amarelas de Moçâmedes e Benguela, onde cresci. Praias de Benguela, praias da Mauritânia, praias da Arábia, não são as amarelas praias de todo o Mundo?

Em todos os portos tive uma mulher, em cada porto uma maka. Até que, um dia, estava eu nos Camarões, ouvi na rádio o ataque às prisões, no 4 de Fevereiro. O meu barco voltava para o sul e não cheguei a Angola. Fiquei em Matadi, ex-Congo Belga. Lumumba tinha morrido, a ferida sangrava ainda, a ferida só ficou sarada quando o 4 de Fevereiro estalou.

Onde eu nasci, havia homens de todas as línguas vivendo nas casas comuns e miseráveis da Companhia. Onde eu cresci, no Bairro Benfica, em Benguela, havia homens de todas as línguas, sofrendo as mesmas amarguras. O primeiro bando a que pertenci tinha mesmo meninos brancos, e tinha miúdos nascidos de pai umbundo, tchokue, kimbundo, fiote, kuanbama.

As mulheres que eu amei eram de todas as tribos, desde as Reguibat de Marrocos às Zulu da África do Sul. Todas eram belas e sabiam fazer amor, melhor umas que outras, é certo. Qual a diferença entre a mulher que esconde a face com um véu ou a que o deforma com escarificações^?

Querem hoje que eu seja tribalista!

De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não só de Angola, como de África? Não falo eu o swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual é a minha língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas diferentes? E agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido? O português. A que tribo angolana pertence a língua portuguesa?

'

páginas 119 - 121

'Mayombe'

Pepetela

edição Círculo de Leitores

sábado, 19 de dezembro de 2020

Delirium Tremens

 «Delirium Tremens»

desenhos em A5 de ZMB (2012) para um poema de Artur Rockzane em

'Hortênsio Miraflor -- Suicídio e obra, pág. 131, edições quasi:

Um homem barbudo e em cuecas
passeia um cão bicéfalo e azul numa
rua antiga ladeada de acácias. à ja-
nela duma casa, antiga como a rua,
uma menina vestida de azul fabrica
bonecas de cera; tem os cabelos em
chamas e da sua boca saem peque-
nas aves azuis que se vão esmagar
contra o rosto de pedra do homem,
que ruge versículos bíblicos. na sala,
por detrás da menina, sob um reló-
gio imenso e sem ponteiros, ladeado
de bojudos anjos dourados, uma mu-
lher enorme mas estranhamente bela,
estirada num divã japonês, devora
aves azuis como as que saem da boca
da menina. a freira que de joelhos,
reverente, lhe pinta as unhas dos pés,
canta o avé-maria de schubert - as
meretrizes têm o seu lugar no céu,
com certeza.
'







Vozes optim-satiristas dizem que a covid num ataca o vinho, ergo: este é o nosso inimigo mais amigo, lol


'
e eu na feira disse «o professor [vinho] é como um paisinho que nos diz para pintar assim e não do modo como queremos pinar, e que depois nos castiga com a nota»
e o que ficou por dizer e apenas na ponta da língua como resina prestes a ser lambida foi «nunca deixes de fazer merda como um rei e pedir desculpa como um pedinte»
'


and the transe continues

 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Viva a baixinha



 «Este desenho é de 95? Em 95 eu tinha dois anos...»

Ela sorri ao dizer isto e eu sorrio também. Estou-me cá a lembrar «oh minha rica filha» mas acabo por lhe dizer «é, em 95 eu andava na universidade...»

Ela continua a folhear a pasta de desenhos e eu digo «esta pasta é a dos desenhos mais malucos, e esta é a dos desenhos mais naturalistas, aqueles em que eu desenho o que vejo, sentado a tomar café ou fumando um cigarro numa viela turística, e depois populo o desenho com pormenores psicogeográficos»

«Este é um retrato?»

«É, eheheh, é um auto-retrato de quando eu tinha cabelo, é de 98.»

É verdade, estou-me a divertir aqui nesta feira, devo ser o gajo mais velho dos expositores e agora estou a falar com uma baixinha de cabelos longos e lisos, e com a carne toda nos sítios certos e roupa a condizer, é, uma delícia vinte anos mais nova que eu, e ela gosta dos desenhos e diz que perdeu um caderno onde fazia rabiscos.

Baixinha, o símbolo das elinhas com quem eu me metia há vinte anos, era com elinhas que eu tinha sorte, as minhas elas sonhadas eram todas altas, e quanto mais baixa fosse elinha, mais carnuda mais fado elinha se tornava. 

Gosto do aspecto matreiro das suas falas, sempre a mandarem uma boca num lábios grossos de sorriso a querer derrubar o macho zed, zed's dead bebé zed's dead, este sempre tão no fim da escala dando confiança para que todas as elinhas cresçam.

Viva a baixinha!, ela dá-me pica.

De maneira que depois de três valentes copos de maduro tinto bem atestados e de uma cachupa do verde cabo ou mesmo da guiné, cheguei a casa aos sses e depois de executadas as urgentes necessidades de fazer a obra, obrei e dormi o sono dos justos.

Hoje, acordei zen e com vontade de ouvir Buraka. Bota xangui.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Cochiló 2020


Amanhã e Sexta-feira de tarde, 
em várias casas e associações num perímetro da zona do Bonfim, Porto, Portugal, 
vai acontecer uma feira de edições artesanais e suburbanas. 
Em alguns destes locais haverá música igualmente.
Eu vou participar com uma banca de desenhos, aguarelas e pequenos quadros a óleo 
na associação afro-portuguesa Cochiló, na Praça da Alegria nº 91. 
Haverá petiscos e youtube
Apareçam!

sábado, 12 de dezembro de 2020

A companheira do vento

 


«A companheira do vento»
óleo sobre tela
50cm por 70cm
2020
ZMB
imaginando Cidália Moreira
a cantar fado cigano no Arco de Santana no CH do Porto

Roots Reggae @ Bazar Esquesito

 


grafite sobre papel, 50cm por 70cm, 2020 ZMB

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Algo debaixo de uma folha de papel coberta de cal

'

O escritor, poeta ou prosador, senta-se à escrivaninha. Seguramente, a luz nocturna iluminará as teclas da máquina de escrever, o tinteiro de cobre e as volumosas folhas de manuscritos. Lá fora, pode ser que a chuva toque no parapeito da janela, que os pássaros piem sobre a tília ou, porque não, que a tempestade de neve sibile numa noite de Inverno rígida.

Pode vir inesperadamente à mente dele que existe algo muito além, num grito, num ululo ou num sussurro (a intensidade é irrelevante nesse caso), à espera de tormar forma, para existir. Pode parecer que esse algo estende a sua sombra sobre o escritor. A sala ao seu redor talvez desapareça. Nesse momento, as proporções desse algo revelam-se paradoxais.

Para não arriscar deixar levar-se por um desconforto infinito, intimamente relacionado com a sensação de ter perdido uma ocasião (não se sabe o tamanho, o que torna o desconforto ainda maior), o escritor tenta dominar as coisas. Tem consciência de que conseguir tal é uma necessidade absoluta para si, porque as dimensões das coisas o assustam e a negligência lhe causa insatisfação, ou, no melhor dos casos, dor de cabeça.

Naturalmente, é impossível indicar um método exacto. Não se trata de um processo de condensação nem de um cálculo matemático. Esse algo que se estende sobre ele apresenta-se sempre de um modo diferente. Como uma bola a ser chutada para cima, como mãos a estrangular o pescoço que devem ser afastadas, ou ainda -- e nesse caso, podemos apenas imaginar -- como algo debaixo de uma folha de papel coberta de cal que deve ser rapidamente limpa.

Quando acaba, ou seja, quando cobre de palavras cada linha, percebe com surpresa o quanto foram reduzidas as proporções daquele algo. Tudo está preenchido, o que, no início, causa um pouco de desilusão. Claro, ele sabia que a poesia, ou qualquer que fosse o detrito, apareceria microscópica em relação à experiência com a cal. Além disso, era claramente indispensável para o equilíbrio interior reduzir as proporções a um tamanho normal. Se houvesse tido força, teria preferido naturalmente esquecer a história a ser limpa, mas não era o caso, e não ousou fazê-lo.

'


páginas 53 - 54


Stig Dagerman,

 em

«A política do impossível»

Edição VS 


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Palavras de Bolso

 'Trans(formar) o olhar'- 
Depoimentos de formandos de projecto pedagógico com adultos, 
de autoria de Elisa Marques. 
Música: 'Alegrías', Camaron De La Isla / Tomatito

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

'Pulsação' de António Barahona

'

Pulsação

Perene é ser soneto: eis do futuro,
essa canção com oitocentos anos:
sábios, mil sons ecoam bons sopranos,
no timbre d'árias tensas de ouro puro.
Catorze versos a fundir degraus
(ligas de cobre e prata e elixir)
refeitos pra durar até que expire
seu último cantor, à flor do caos.
Perene é ser soneto, que reside
na cópia à rasa essencial do verbo:
tal como a roda, o cubo e o triângulo,
vem inscrito no código soberbo
de quem tece um casulo e sente livre
o sôpro do seu sangue num coágulo.
'

António Barahona
página 297 de
'ao ouvido de um moribundo'
edição Língua Morta

Nature Boy

the classic,

here in John Coltrane's blow

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O Cabrita é o maior! Eis o dogma:

 '

É automático. Cada vez que ouço um escritor a gabar-se de ter sido o último operário a substituir o parquê na mansão do real imagino, como o Nabokov, uma pessoa, sob o efeito de hipnose, a fazer amor com uma cadeira.

'


página 237

«Fotografar contra o vento»

António Cabrita

Editora Exclamação

domingo, 29 de novembro de 2020

O reflexo imaginário tornará possível a realidade

O Capítulo minus V

Einstuerzende Neubauten: Keine schoenheit ohne gefahr


Porque será sempre difícil acreditar haver beleza sem perigo.

Existe um símbolo presente em memória desde que os gatos passaram a miar abrigados pois os lobos costumam andar à solta por alturas de Outubro na cidade vermelha. Repete-se ciclicamente de dois em dois anos. O dito amor existe em memória, é aquele que está depois da paixão física que termina quando as pessoas se cansam de cheirar o corpo alheio e decidem seguir em frente para a eternidade. Este amor está portanto escondido da realidade pela troca de álbuns que compilam reflexos fotográficos, apenas reais na altura em que a imaginação atinge o cio.

Durante os meus mais violentos acessos de humildade, que geralmente só concedo quando o meu ego se revela uma fonte inesgotável, dou seis meses para concluir uma história de amor. Sim! Quero fazer as coisas com calma. Para que a minha ela sonhada se possa tornar real. Ah Icata! A poesia é tão linda! Sim! Ah Icata, a poesia é linda mas o teu corpo não quer o meu.

Como numa profecia, Icata aparecerá, saindo da crisálida, quando acontecer o meu eclipse solar e a lua ficar sozinha sem ninguém que a ilumine. É esse perigo que deverei procurar. Alguém com quem cultivar jardins zen. Aí, já serei uma prioridade na sua vida. Para encontrar quem não procura o sol e vive na lua, eu deverei transfigurar-me de sol em lua, alterar ligeiramente a minha identidade em breves momentos para que possa aprender o momento em que poderei por fim encontrar-te e para que o meu vazio seja preenchido pela tua força, a força da ela real. Preciso que me esvaziem o escroto. Esvazia-me, vá lá. Como sei que não tens interesse nisso, então castigo-te com a caneta. Evacuo a caneta. Para sublimar resolvo escrever, como sabem dedico-me frequentemente ao abjeccionismo que me traz desencantamento mas também liberdade.

Vem-me à memória que tudo é uma questão de tempo. Quando? Poderá demorar uma hora, poderá ser um dia, um mês, seis meses. Será uma questão temporal até te ter nos meus braços. A sério? Porque não acredito que consigas resistir a ti própria e à tentação de me possuir. Eu sei que sou narciso e que penso que a minha beleza é irresistível. Sonho com a Ela que me derrube, que me faça sentir acabado e careta, seria sinal de que vivi. Por isso, agora escrevo para ti, escrevo um poema chamado Aqaaismja: 

Anseio por te ver, tenho saudades tuas, quero tocar-te, quero sentir, dar-te prazer, as responsabilidades os compromissos não permitem no entanto, aspiro o perfume, inebrias-me o cérebro, estou totalmente fora, nada mais faz sentido, minimal é a chave, não digo coisa com coisa, se calhar nunca disse, chegará o momento onde não serão precisas mais palavras. Mas faço amor contigo nos meus sonhos e poemas brancos: 

Se eu te pintasse minha linda rainha africana, em África onde? Hmm… talvez na do Sul... se eu te pintasse minha linda rainha animal, colocaria a tua alma dentro de uma gatinha, e tu sabes que não és inha, tu sabes que és ona, és cativante, estonteante, a tua cor será sempre castanho-laranja, e usarás o chapéu preto, o símbolo do amor de teu avô. És branca?, ages como uma branca quando estás no quadro de ardósia admirando as crianças de deus, essa beleza? Qual é a linguagem com que me falas nos meus sonhos verdes de lua lua? Alguma vez te falei dos verdes campos do sonho? Confessa.

Icata, começas por ser uma felina egípcia que se transformará numa esfinge e hoje és grega e tens asas, o teu chapéu é o chapéu de Sabina do Kundera, começas por ser a Sabina com quem eu vejo filmes em vídeo e falamos sobre literatura, hoje és muito bonita, tento conquistar-te com o intelecto. Sou correspondido ao nível platónico. Somos amigos sem a parte sexual, embora certamente pensemos nisso quando, por exemplo, vens e eu te mostro o que escrevo e te cozinho um esparguete com costeletas e tu te lembras dos malmequeres que te ofereci. Tento a minha sorte sexual. Repeles-me sem qualquer explicação pronunciada, dizes apenas não desapareças, e eu desapareço sem to dizer e voo sobre o oceano, venho a saber que me telefonas para casa de meus pais e envias cartas, parece que afinal eu te faço falta. Transformo-te num mistério, numa espécie de musadeusa, tento que a memória possa voltar ao tempo presente, penso que posso matar um amor antigo recorrendo a mulher não nova mas antiga, e apego-me à sensação de bem-estar que havia tido no passado. Por isso, faço agora o que me havias feito: escrevo-te cartas correspondidas, chegamos a fazer planos de viagem mas... tudo interrompido porque paralelamente sou internado aqui no CReEA, estou em depressão pós-internamento.

Mas eis que voltas a comunicar. Continuas bonita mas eu sinto que já não te acompanho, falas-me de escritores croatas e eu nada sei, não tenho novidades, não tenho coisas boas para contar, as palavras trocadas tornam-se raras. E eu acabo por ter um momento desagradável: despeitado por as tuas respostas já não serem rápidas como antigamente, escrevo-te palavras às quais respondes com firmeza. A distância de segurança que introduzes entre nós mantém-se inalterada, não há simplesmente contacto.

Tu já não respondes às cartas e eu perdi o teu número de telemóvel, pedi-te em aflição para não me esqueceres e tu já há muito que não te interessas por mim, sou carta jogada ao lixo. Nunca foste minha e eu deixei de ser trêndi. És o símbolo da Ela que me derruba por abandono ao silêncio. Mas isto te digo: se quando acordares todos os dias, de manhã, não sentires que negas os teus impulsos mas, mesmo assim, continuares à procura de um ponto limite, não te assustes. Como poderá haver limites? Porque não atingir esse limite onde provavelmente tudo se desmanchará e o jogo cairá dos céus semeando a destruição da cidade? Porque não viver sem a necessidade de encontrar o limite?, sem a necessidade do elemento Tempo nem a procura do Espaço, porque não deixar o tempo correr sem o medo de arrasar, porque não compreender que isso será uma consequência do medo de arrasar ainda mais? Que fazer? Deixar-te em paz... mas se for obrigado a desistir para deixarmos de nos encontrar... um de nós terá de se mudar para outra cidade por necessidade de ter espaço por um momento, meses ou qualquer outra unidade temporal. Eu diria mesmo nunca mais. Digo-te no entanto que um íman de nós virá inconscientemente procurar o outro. Lembrá-lo-á na memória de quando tudo parecia virgem e por descobrir, e, depois, começar a desistir. Se desistires por alguma destas razões ou qualquer outra realidade cultural, como diz Ondjaki, tu afirmas, minha Ela sonhada, que perderás e, por isso, galopante aumentará o número de dias em que acordas triste, o fogo será arrasador. Perderás porque nunca quiseste. Proponho-te, minha Ela sonhada, proponho que te decidas entre perder o teu tempo para sempre e eu te procurar para sempre. Não conseguirei mesmo falar de qualquer coisa e será necessário descobrir outras formas humanas para te esquecer.

Tão doce a inocência de um apaixonado, diz Id continuando, o amor é tétrico. Ela nunca me dará a chave do seu botão, eu gostaria de dizer sim.

O erro é pensar que Icata é uma cristalização do passado, esqueço-me que as pessoas evoluem e fazem escolhas, ela fez a escolha de me ignorar, não é a primeira mulher a fazer-me isto. Da minha parte, não pretendo pedir mais desculpas a pessoas que já não querem mais a minha presença. Chego à conclusão que não preciso mais de mendigar carinho ou atenção. Todos me ignoram, sou apenas um número a quem dizem: olha a geleia, é feita de amoras. Vou dormir, que o dilúvio venha e me desentupa a merda na canalização cerebral.

Hmm... amanhã será um novo dia.

Agora, na verdade estou na cozinha dos meus pais em Triza com este quadro na memória.

A minha mamã, que repara no meu olhar ausente, diz: olha filhinho, não te posso arranjar uma moça, olha... vou-te oferecer uma pequena caixa de Pandora com chave e cadeado para tu guardares o teu livro. Deste modo, não precisas mais de saltar a fogueira de S. João enquanto os balões sobem na atmosfera e tu deixas a disquete cair.

O meu papá adiciona: bem filho, eu digo-te filho, existem uma data de agências matrimoniais filho, podes obter um contrato de três anos lá filho, filho...

Respondo estúpido e inocente tal e qual o Bart Simpson dentro da tevê de plástico PH: eh... na verdade, prefiro procurar uma agência funerária e pensar na cor do caixão, depois, receber o telefonema de confirmação de emprego com um copo de vinho na mão.

As minhas irmãs riem-se. Nasceram na estrela sortuda enquanto eu sou o desajustado guna, o bode negro.


Ela disse: e eu ri-me e gravei:

 '

Nas ondas do teu cabelo ensinaste-me a nadar

Agora que és careca ensinas-me a patinar

'

Ceiça

Porto, 2018

Desapareceu, parte 3 e 4

 



sábado, 28 de novembro de 2020

What seems to be the problem?



Javier Mayoral

A nossa flor, que muito respeito pelo que escreve e pelo que não escreve,
talvez veja aqui alguma madeira para encaixar no seu muro protector.
espero que o seu amigo com quem dialoga 
não se sinta diminuído mas sim em boa companhia, da flor.


Desapareceu, parte 2

 


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Beams of sunshine

dedicado à lady alfa

na sequência de uma troca de comentários

«it´s good to be alive»

no matter what happens, always remember that


Aranos é um cidadão cigano oriundo da antiga Checoslováquia

que há décadas vive na República da Irlanda.

Embora tenha algumas obras publicadas em editoras,

ele é um mestre da auto-edição musical.

Visitem:

http://www.aranos.org/blueturt/aranos_home.html


quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Hombres, hampones e ómes

 '

«Hum. A vossa causa parece-me justa, deixem aí a petição na recepção que eu assinarei de manhã, antes de me meter a caminho. Desculpem não descer agora, já estou despido e estou bastante cansado...»

«Muito obrigado, e desculpe a maçada.»

«Deixem aí o documento, por favor...»

«Muito obrigado e sucessos em Espanha.»

«Serão entregues...»

Só depois de fechar o telefone é que notou o absurdo da sua frase final. Entregaria pessoalmente no dia seguinte os sucessos devidos à sua imagem no espelho, não havia dúvidas.

A Tomás Gonzaga não é nada indiferente o desenrolar político do mundo. Com vinte anos, depois do malogro da sua experiência em Sevilha, aonde fora tentar a sorte como bandarilheiro, refugiou-se numa conversão política que fez dele o quadro de célula de um partido de esquerda, tendo então enjeitado o mundo da tauromaquia como um universo burguês e decadente, a evitar. Voltou para Mora e entregou-se à militância política com a benignidade do touro que cresce nos pastos: de forma inconsciente, movendo-se sem ser exposto a dúvidas, com a generosidade de quem rumina sem cálculos.

Foi provocatoriamente que amigos lhe emprestaram o vídeo do filme Good Bye Lenine e o livro Má Memória de Herberto Padilla, embora sem maldade. O filme deslocou-o para o epicentro de um pequeno sismo de que nunca se recomporia, desalinhando-o das respostas dogmáticas. As leituras, a contragosto, de outras obras sobre o estalinismo, despertaram-no para certos vícios de relação dos camaradas, que sempre relevara. Para lhe ser menos doloroso o distanciamento, decidiu ir viver para Lisboa, e aí arranjou emprego na agência mortuária L'Avenir, ironia de um comunista mítico já falecido e que deixara uma casa próspera ao seu filho, mais conservador, o qual olhava para a esfera política do pai como uma ideologia vencida, ainda que guardasse, dizia, um imenso respeito por ruínas. Neste ambiente, Gonzaga habituou-se a militar mais em causas pontuais que no pacote indiscriminado da crença partidária, e, tendo aprendido, por experiência, que as estruturas partidárias -- fossem quais fossem os quadrantes -- se imbuíam dos mesmos erros, mentiras, ambições camufladas e canalhices próprias ao humano, acabara por se reaproximar do seu primeiro amor, da tauromaquia.

Ademais, se o toureio a cavalo configurava definitivamente uma expressão classista, comparava o toureio a pé à rebeldia operária, que só depende da coragem pessoal e da nobreza de carácter. Para além de que o eventual ajuste da dinâmica social no palco das lutas de classe, parecia-lhe agora, não esgostava o desenho da dignidade humana; ao invés, um indivíduo enfrentar a sua própria cobardia numa arena sem recuo, diante de um touro de quinhentos quilos acrescentava brilho ao desassossego da sua fatuidade. E Tomás, alheio à superficial questão dos louros ou da glória, não deixava de citar a evidência física de que tantos matadores, que se escanhoam quinze minutos antes de subirem à arena, cheguem depois da faena aos camarins com uma barba de três dias.

'

página 38 - 39

"Fotografar contra o vento"

António Cabrita

Edição Editora Exclamação


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(para ser subtil não linco a dedicatória ao senhor X, esse senhor herdeiro de Borges, com quem aprendo boas maneiras à boa maneira vitoriana, e que mesmo não parecendo lhe agradeço os recados. 

mas não esqueçamos que o «governo de hombres e não de hampones» que Borges apoiou em certa altura da história argentina, era ao que parece um governo de ditadores. e então, estes não seriam hombres nem hampones, seriam apenas ómes.


terça-feira, 24 de novembro de 2020

«Roger Alvo Identificado Artista em Fúria Esperando Ordem para avançar Roger Cambio»



«Roger Alvo Identificado Artista em Fúria Esperando Ordem para avançar Roger Cambio»
desenho a marcador, caneta bic e lápis de grafite e de pastel seco
tamanho 43cm por 31cm
 ZMB 2020



Dedicado ao «O Impontual»

que desde que o musa deixou de escrever e o deixou órfão 

tem-se dedicado a escrever textos misóginos

talvez por pensar que o musa é misógino e homofóbico e que se sentiria retratado.

Quanto de verdade haverá neste texto do senhor?



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(imagem de ontem em baixo desfocada por falta de luz, 
tirada logo após o desenho acabado)






sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Dois momentos ideológicos ao almoço

 1.

Pai: Há só dois países onde a covid não chegou. Coreia do Norte e Cuba. Bem... na Coreia houve um mas como foi morto não transmitiu. Aliás, como fez ao tio: deu-lhe um tiro.

Filho: Acho que a esse foi de canhão.

Pai: Mas em Cuba nada.

Filho: Ficavas contente se soubesses de casos em Cuba, ficavas feliz com o mal dos outros?


2.

Filho: Pois é, as pessoas às vezes deixam o cão passar fome mas com a covid toda a gente aproveita e vêem-se cada vez mais cães a passear o dono.

Pai: Há um senhor que vem todos os dias aqui há rua passear o cão. Ele é da rua da agrela, não é daqui.

Mãe: Mas olha, o cão fez cocó e o senhor apanhou com um saquinho.

Filho: Então, ele não pode passear o cão por onde quiser? Eu quando passeio não gosto que ninguém nem mesmo um polícia me diga que não posso passar.

Pai: Mas podia não vir para aqui. Podia ir mostrar outras paragens ao cão para ele se admirar.

Filho: Mas achas que o cão se importa para onde vai e que admira eheh agora fizeste-me rir.

O pai baixa a cabeça para o prato para esconder o seu próprio sorriso.

Filho: Se calhar, pensas que é outro terrorista?

Pai: Não, mas pode transmitir doenças, olha na Dinamarca mataram não sei quantos animais por causa da covid.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Ah como gosto das mulheres da Ásia



«Ah como gosto das mulheres da Ásia»
desenho a marcador de preto permanente com ponta de 0.3mm, caneta bic e lápis de cor 
sobre papel cartonado de tom bege, 
tamanho 50cm por 30cm
ZMB 
a partir de Olivier Rolin, 
no seu livro «Peregrinação» 
editado em 2019 pela Sextante Editora

domingo, 15 de novembro de 2020

Extractos de «Peregrinação» de Olivier Rolin

 

 

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Nadar, simplesmente. Passar o limite, a grande fronteira das terras, deixar por alguns instantes a nossa parte do mundo, deixar de «ter os pés assentes no chão», deixar de andar. Entrar noutro reino, aventurar-se. Voltar para a infância, pois a lentidão, a falta de jeito da nossa progressão remetem para as dos primeiros tempos, e também a sensação de ser minúsculo, frágil, num espaço imenso. Nascer. Estar nu. Voar, devagar, desastradamente, mas voar, ser levado, deixar de pesar. Sonhar, a água é o lugar das imagens sem seguimento, desacordadas, dos sonhos sem nexo, dos fragmentos de vidas possíveis, dos deslumbramentos, do vago (esse vague, adjectivo que um feliz acaso faz, na língua francesa, o homónimo das grandes ondulações do mar), do inconstante. Entrar na água é fazer a experiência do épochè, essa filosófica suspensão de tudo. Morrer um pouco, também, pois sabemos que não resistiríamos muito tempo, que lá dentro, lá em baixo, apenas há lugar para os «afogados pensativos». Nadar, deixar-se acariciar por um perigo imenso, brincar por instantes com ele. Setembro chegou, o areal está deserto, a maré depositou nele franjas de vareque, todo o calor do verão está ainda encerrado na extensão calma, de olhos abertos debaixo de água vês os pequenos turbilhões de bolhas brilhantes que as tuas mãos fazem ao mergulhar em ritmo, ouves o seu rumorejar, o seu deslizar contra o teu corpo, quando respiras adivinhas o sol quebrado por mil arcos-íris, sentes-te mais livre e mais forte, e quase mais jovem, e não importa que seja apenas uma ilusão. Michaux: «A alma adora nadar.»

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página 113

«Peregrinação»

Olivier Rolin

tradução de Joana Cabral

Edição Sextante editora, 2019


sábado, 14 de novembro de 2020

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Kneeling angel with ball


 

«Kneeling angel with ball»

desenho a carvão, grafite e lápis de pastel seco sobre cartolina

70cm por 50cm

2020

ZMB

No ano 2000 em Angola era assim.
E nós por cá: cumué?

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Por toda a Angola se consome e vive como se o mundo fosse acabar amanhã, se calhar vai mesmo, e não há que reservar seja o que for para um improvável mais tarde. Ou não tirar rendimento imediato possível do que se tem à mão. Também ali ia ser assim e todavia não era por razões de crise. Angola é grande e enganosa até inscrever no panorama geral da sua crise expressões de sofreguidão que afinal são antes de cultura e de sistema. Estávamos no tempo da carne e no meio de uma sociedade pastoril, em que ela só se consome, deliberadamente, quando o gado está gordo e é o tempo dos cultos, das festas e da ostentação distributiva dos mais prósperos, promotora de disputas, reciprocidades, alianças e produção de clientelas, e por isso a concentração de gente ali, naquela noite, era enorme, acorrida de todos os quadrantes ao encontro da pletórica fartura que o poder económico da linhagem do finado Luhuna garantia e a já proverbial generosidade do Nungunu, seu filho, anunciava. Desde que os bois tinham começado a ser abatidos, e a carne a ser cozida segundo as regras da sua divisão, da sequência do seu consumo e do acesso estatutário às partes, o chão tremia com as danças que muitos homens adultos e mulheres sobretudo mais-velhas não largavam. Os rapazes das famílias anfitriãs permaneciam, por dever de função, à volta da carne, a dividi-la e a cozê-la, enquanto as mulheres não paravam de trazer água e lenha, hieráticas silhuetas de braços erguidos e passo pesado a fluir e a refluir em filas e a dar corpo e voz às torrentes do crepúsculo.

Aquela era uma noite de Junho, era mesmo a noite do solstício de Junho, quando o Sol inverte a marcha dos seus lugares de nascer e pôr-se, eu via o fogo, os fogos, havia fogos por todo o lado, e não podia deixar de evocar fogos, fogueiras, solstícios por toda a parte do mundo, por todos os hemisférios, evocações que hei-de encontrar em casa, voltando a Luanda, certamente em Eliade e Caillois, sobre o sagrado, sobre a festa, orgias, saturnais, e num belo texto qualquer coisa que eu sei que há, de Yourcenar, e outro nos Diários com Leuco, de Pavese, de que Jean-Marie Straub extraiu um daqueles límpidos episódios, talhados em pedra branca, do La Nuée et la Résistance... O Biloa, ou um dos outros meus mais próximos do convívio no Vitivi, saía de vez em quando das arenas da dança para vir puxar uma fumaça dos cigarros sucessivos que eu, sentado na beira da minha desmantelada cadeira articulada, acendia, e o aturdimento daquilo tudo arrastava-me, sem que eu resistisse, para essas perigosas zonas da reflexão que, em certas alturas, tornam o antropólogo suspeito até perante si mesmo. Quadros míticos, neolíticos românticos. Que antropólogo honesto negará ter cedido por vezes ao fascínio de impossíveis mundos destes? E ali estava eu agora perante uma dessas sociedades onde se preservam matrizes assim. Presentes, meios e procedimentos afins a outras complexidades, a outras complexificações de actuação e de entendimento do mundo, mas o modelo das relações, as práticas de relação, são as que se atêm a um muito restrito apetrechamento tecnológico, o bastante, apenas, para extrair o rendimento máximo da água e do verde, da flor e do fruto, sem ir além da acção de uma elementar lâmina de catana ou de um gume de machado, e é todo o aço.

Da sorte, do destino até mesmo mais imediato, destas «comunidades»? Entrarão no século XXI sem que as dinâmicas de uma economia fundamentada na gestão dos equilíbrios se tenha alterado profundamente. Mas o fenómeno maior dos séculos XIX e XX, do ponto de vista social, terá, em meu entender, sido a chamada de todo o espaço planetário à aceitação, com resistência ou sem ela, à adopção vital perante toda a ordem de pressões, dos modelos ocidentais de prática e configuração ideológica da vida.



Terrenos perigosos. Ninguém hoje mais ou menos tributário do senso comum consegue deixar de associar despojamento tecnológico a miséria. Pôr isso em causa seria confrontar a redenção igualizante da ideologia do progresso, do crescimento económico e da acumulação de capitais financeiros, ao elogio, politicamente retrógrado, de uma prosperidade possível nos terrenos do equilíbrio e da redistribuição. De uma imputação deste tipo até os ecologistas cuidam em defender-se. Mas quem era eu para estar com estas coisas se, para meu uso pessoal e íntimo, quase, tinha apenas cinicamente passado da ideia sedimentada de evolução à de complexificação, substituindo Teillard de Chardin a Darwin? Ninguém fala hoje de darwinismo, é certo. Mas o iluminismo e o evolucionismo estão implícitos em toda a produção ideológica e intelectual que vigora e ainda e sempre omnipresente e dominantes, cientes já dos seus maiores pecados do passado, na aferição da qualidade dos homens segundo escalas físicas, primeiro, e depois segundo uma hierarquização das culturas, mas a fundamentar o mesmo espírito de império, ainda quando disfarçados de um igualmente abjecto paternalismo que confere a uns o direito de decidir, benemérita e providencialmente, pelos outros e em nome dos outros, os ignorantes e os atrasados, os coitados. E esses uns e outros somos todos nós, uns para os outros e por aí fora e sempre em função do ganho do outro.

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página 114 - 117

«Os papéis do Inglês»

Ruy Duarte de Carvalho

Edição Círculo de Leitores


domingo, 8 de novembro de 2020

Máscara de Baile



«Máscara de baile»
desenho a pastel de óleo sobre cartolina preta
50cm por 70cm
2020 
ZMB

sábado, 7 de novembro de 2020

Mark Fisher: 2 transcrições do seu livro «Realismo Capitalista»

 Mark Fisher

''Realismo Capitalista, Não Haverá Alternativa?''

tradução Vasco Gato

edição VS. 2020


página 35 - 36:

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Porém, as questões ecológicas são já uma zona disputada, um território onde se luta pela politização. Assim, gostaria de realçar duas outras aporias no realismo capitalista, que estão longe ainda de se encontrarem politizadas no mesmo grau. A primeira é a saúde mental. Na verdade, a saúde mental é um caso paradigmático do funcionamento do realismo capitalista. O realismo capitalista teima em tratar a saúde mental como se esta fosse um acto natural, como a metereologia (embora, uma vez mais, a metereologia já não seja um facto natural, mas, sim, um efeito político-económico). Nas décadas de 1960 e 1970, a teoria e a política radicais (Laing, Foucault, Deleuze e Guattari, etc.) consolidaram-se em torno de condições mentais extremas, como a esquizofrenia, sustentando, por exemplo, que a loucura não era uma categoria natural, mas, sim, política. Todavia, o que é necessário agora é uma politização de um número muito maior de distúrbios vulgares. Aliás, a questão é mesmo a sua própria vulgaridade: na Grã-Bretanha, a depressão é hoje a doença que o Serviço Nacional de Saúde mais trata. No seu livro The Selfish Capitalist, Oliver James postulou de forma convincente uma correlação entre as taxas cada vez maiores de problemas mentais e o modo neoliberal do capitalismo que é praticado em países como a Grã-Bretanha, os EUA e a Austrália. Na linha do que James defende, gostaria de argumentar que é necessário reenquadrar o problema cada vez maior do stresse (e da angústia) nas sociedades capitalistas. Em vez de se tratar esta questão como cabendo aos indivíduos a solução das suas próprias angústias psicológicas, ou seja, em vez de se aceitar a imensa privatização do stress que teve lugar nos últimos 30 anos, há que fazer a pergunta: como é que se tornou aceitável que tanta gente, e sobretudo tantos jovens, esteja doente? O «flagelo da saúde mental» nas sociedades capitalistas levar-nos-ia a dizer que, em vez de ser o único sistema social que resulta, o capitalismo é intrinsecamente disfuncional e o custo do seu aparente funcionamento é elevadíssimo.

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página 107:

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Em Tarrying with the Negative, Zizek faz a afirmação célebre de que um certo espinosismo é a ideologia do capitalismo tardio. Zizek acredita que a rejeição da deontologia por Espinosa em prol de uma ética baseada em torno do conceito de saúde equivale supostamente à engenharia afectiva amoral do capitalismo. O exemplo famoso disso mesmo é a leitura que Espinosa faz do mito da Queda e da fundação da Lei. Na visão de Espinosa, Deus não condena Adão por ser uma acção errada ter comido a maçã; diz-lhe que ele não deve consumir a maçã porque esta irá envenená-lo. Para Zizek, trata-se da dramatização do fim da função do Pai. Um acto é errado não porque o Papá diz que é; o Papá apenas diz que é «errado» porque a realização desse acto é prejudicial para nós. Na perspectiva de Zizek, a jogada de Espinosa destitui a fundamentação da lei num acto sádico de cisão (o corte cruel da castração) ao mesmo tempo que recusa o postulado infundado da vontade própria num acto de pura volição, em que o sujeito assume a responsabilidade por tudo. Na realidade, Espinosa oferece imensos recursos para se analisar o regime afectivo do capitalismo tardio, o aparelho de controlo do tipo Videodrome descrito por Burroughs, Philip K. Dick e David Cronenberg, em que a vontade se dissolve numa névoa fantasmagórica de inebriantes psicológicos e físicos. Tal como Burroughs, Espinosa mostra que, longe de ser uma doença aberrante, o vício é o estado normal dos seres humanos, os quais são habitualmente escravizados por imagens paradas (deles próprios e do mundo) com vista a adoptarem comportamentos reactivos e repetitivos. A liberdade, mostra-nos Espinosa, é algo que só pode ser alcançado se conseguirmos apreender as causas reais das nossas acções, se pudermos pôr de lado as «tristes paixões» que nos inebriam e arrebatam.

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terça-feira, 3 de novembro de 2020

Pessoal ou transmissível

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 Há já algum tempo que R pegara no livro cinzento e começara a ler ao acaso. Já nem lembra o que leu ou o que recordou de pessoal e intransmissível. Agora, lembra-se de palavras como miscigenação e lembra-se do seu eu antiquário que o instruiu acerca da não-autoria do livro que comprara juntamente com as mortalhas no centro comercial. Depois mais à frente, noutra folha lê: o mundo, o amor, a identidade, o dom da palavra e da comunicação, o dom de amar, o dom de não ter dúvidas de ser suficientemente amado, o dom de ser feliz e ser capaz de trabalhar... e pensando que também ele, mesmo tresloucado, tem direito a uma voz, decide fazer como os outros e adicionar palavras ao espaço em branco entre capítulos, decide mistificar a sua história.

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Claudio Mur

sábado, 31 de outubro de 2020

«Sereno Variável» exposição colectiva em S. João da Madeira, Portugal

 



The exhibition “Sereno Variável” is now open to the public at the
Centro de Arte Oliva
.
The exhibition catalogue design by Dayana Lucas take shape in the format of a newspaper.
Make sure to grab yours when visit the exhibition.
Curated by Antonia Gaeta, #SerenoVariável is a story, a destiny, a form of personal writing, the study of a collection, or perhaps the invention of a reality where ogni pensiero vola (every thought flies) and which contains everything – every gesture, every writing, every rumour, every discovery, every scenic architecture, perspective and turnaround.

Featuring works by Abraham Hadad, Agatha Wojciechowsky, Agnès Baillon, Alain Lacoste, Albino Braz, Alekos Fassianos, Alessandra Michelangelo, Alexandre Lobanov, Almazov (Nicolaï Vorobiov), Aloïse Corbaz, Ana Carrondo, Anónimo espanhol (Collection Lafora), August Walla, Aurel Iselstöger, Barbara Demlczuk, C.V.M. (Carlos Victor Martins), Carlo Franco Stella, Christina Canetti, Daldo Marte, Davood Koochaki, Derrick Alexis Coard, Donald Mitchell, Donovan Durham, Dusan Kusmic, Dwight Mackintosh, Edmund Monsiel, Egidio Cuniberti, Ergasto Monichon, Ernst Kolb, Eugene von Bruenchenhein, Evaristo Rodrigues, Franck Lundangi, Friedrich Schröder-Sonnenstern, Gabriel Bien-Aimé, Gerald DePrie, Giovanni Battista Podestà, Giovanni Bosco, Gorgali Lorestani, Guo Fengyi, Hans Verschoor, Henry Speller, Igor Andreev, Jaber (Al-Mahjoub Jaber), Jacqueline Bartes, Jaime Fernandes, James Deeds, Janko Domsic, Jim Delarge, Joaquim Vicens Gironella, Johann Fischer, Johann Garber, Johann Hauser, John Henry Toney, Jorge Alberti Cadi, José Manuel Egea, Josef Karl Rädler, Joseph Barbiero, Josette Rispal, Karl Vondal, Kashinath Chawan, Lewis Smith, Lubos Plný, Malcom McKesson, Manuel Bonifácio, Manuel Carrondo, Marco Berlanda, Margarethe Held, Marilena Pelosi, Martha Grünenwaldt, Mary T. Smith, Masao Obata, Maurice Rapin, Michel Macréau, Miron Kiropol, Miroslav Tichý, Misleidys Francisca Castillo Pedroso, Mose Tolliver, Mozart Guerra, Nacius Joseph, Nina Karasek (Joële), P. Veerasamy, Paul Amar, Pépé Vignes (Joseph Vignes), Philipp Schöpke, Pierre Dessons, Pietro Ghizzardi, Prophet Royal Robertson, Raimundo Camilo, Reinaldo Eckenberger, Robert Combas, Roy Wenzel, Simone Le Carré-Galimard, Ted Gordon, Terry Turrell, Thornton Dial, Vitalis Cepkauskas, Wladyslaw Grygny, Ymène Chetouane, Zbyněk Semerák, ZMB (Rui Lourenço).
Discover artworks of intelligent creatures in the midst of shadows of mannerism and grotesque, with echoes of medieval literature and Central European epics. Within the exhibition rooms, the artworks are accompanied by mythological and enigmatic references in the form of masks, satires and illusionistic games.
On view until May 2, 2021.


#TregerSaintSilvestreCollection
#ArtBrut

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A refutação do professor O



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A refutação do professor O,
porque [até] o monstro precisa de amigos!, já o cantaram os Ornatos

- Hello professor O.! How are you keeping your self lately man?

- I'm fine man! And how are you, your self man? Are you doing all right man?

- Bem vamos lá acabar com estas tretas e falar… man!

- Tens aí a cena, faz esse enquanto eu ponho aqui um disco. Vai ser para arrasar.

- E que vais pôr?

- Halloween, a versão maxi dos Sonic Youth.

- Ah, lembro-me bem, de um lado Flower e do outro Halloween.

- Então, o que fizeste até ao dia de hoje?

Flower apanapa, svieira halloween e kim no muro do terraço.

Long brown curly hair and some weed in the belly, lábios de Cabinda.

Long black wavy hair and brown red breasts, lábios da Buraca.

A flor no meu pelourinho e tu olhando colada em mim, desejando que te dissolva.

O teu corpo animal olhando-me das dunas, eu que fotografo a possessão.

O teu desejo de me possuir nas nuvens porque te ofereci uma rosa vermelha.

Aquilo que ela é comigo eu sou com ela.

Às vezes a flor mostra-se infantil e a abóbora introjecta.

Horas mais tarde a abóbora projecta na musa o nosso interior ingénuo.

Um fio de prumo, um ponto de equilíbrio perfilando-se num trajecto em forma de ∞.

Às vezes a flor suga-me a consciência e a abóbora alcança a beleza.

Horas mais tarde a abóbora com uma tocha sugará a consciência da musa.

Que conclusão tirar de um maluco com meios de escape online?

Balanço, jingo, tendo e opto dizendo: não é esta a minha canção.

Apenas para sentir a convolução de mim com o absurdo em forma de ∞.

O resultado desta aniquilação: picos de existência e picas na bochecha do cu.

Escrevo que não sou profeta nem professor nem doutor ou médico.

No entanto filosofo e digo: a desordem de personalidades múltiplas é

Verdadeiramente o suprassumo da loucura, a verdadeira fragmentação.

A esquizofrenia é aquele estado de redução ao menos que zero,

À não consciência, onde no vazio invento o caos apenas para me sentir,

Personagens e identidades actuando para ser capaz de sentir a experiência de existir.

A fragmentação é teatral, perco-me no sonho devir ser algo.

Posso ser confundido ou usado como doença.

Serei mais talvez um modo de vida, uma dádiva, um potencial de ser.

Sempre que não me encaixo, sempre que pressinto que o mundo me oprime,

Lembro-me de partir e experienciar nova experiência de vida e se partisse hoje

Levaria como sempre comigo um objecto com valor fetichista.

Desta vez seria uma embalagem de calgon com resíduo do The Singer de Galás.

A pensar no feitiço, o professor O está hoje em casa a ouvir O disco. Diz:

Uma desgraçada berrando assim a um microfone,

Com o seu próprio acompanhamento de piano o nosso sangue pecador,

Berrando no dia do juízo final a nossa língua assassina.

Seremos a poeira, o musgo da laje gargalhando, fantasmando os viajantes in love.

O pintor muda uma vez mais de ambiente e na mesma sala vê um filme.

O que significa que mudou uma vez mais de cidade, agora habita Anexus 51.

Vê uma comédia com famílias felizes. As filhas crescem e irão para a faculdade.

O que elas não irão fazer em Lá? Festas e orgias?!, diz a personagem.

O que os rapazes não lhes farão, às minhas inocentes filhas!, ai meu deus!

Ah que raiva! 'Não sei qual das três amei menos…', relembra o professor O.

Então eu pintor rio-me da prole que não tenho.

Não tenho remorso. Agora… pouco provável que as venha a ter.

Deixo essa felicidade ansiolítica para o falecido professor que acabo de fumar.

As filhinhas queridas crescerão, ao mesmo tempo as suas maminhas.

Uma voz canta agora em memória cache:

Daddy's coming! Come to daddy!

Yeah! He's a bit of a control freak. Oh! She's a lady of doom.

Em solidariedade cada um de nós seguirá o seu próprio caminho.

A voz do professor raciocina ao dar o último suspiro neste dia no fim de mundo:

Deixei tudo, tive oportunidades, fodi tudo.

Desperdicei tudo por causa da arte. E onde estou eu agora? Ai ai… a obediência.

Expiar a culpa, a traição. 'Se eu pudesse [ao menos] pagar de outra forma'…

O pintor desenha na sua mente as linhas gerais. Soletra as suas vidas passadas:

I think professor O was a bit of a control freak.

He liked that way, he liked to control.

That's why he slammed the holy grail on the priest lady.

That's why he asked for suicide by murder. An useful fiction.

A conscious mistake we've got rid of since.

A conscious error we'll not omit: Lending the lair's lock.

Uma sensação uma cadeira um poster uma cama um quadro.

Frio como a noite eu pareço. Um vulcão de flores de cacto no deserto eu sou.

Um vaguear um delírio um tecto uma caneta um papel. Minto. Capto. Mância.

Nada sei do que realmente gostaria de parecer. Terno como os lençóis gostaria de ser.

Um objecto no meio da multidão perdido? Jamé!

Uma divagação uma negação uma escrita? Tujú!

Só como a sombra eu me sinto. A sombra que enfeiticei.

Uma sombra uma luz uma melodia um objecto um tema um lema uma conversa.

Triste como a noite? Nim! Em paz eu estou só mas não sozinho. Ela dorme.

Um esvoaçar de cigarros uma vontade de adormecer o poema.

Fraco o meu corpo eu permaneço em névoa verde.

Uma sensação de alívio… um sufi fumado com triste beleza.

Eu, [o tóxico místico,

não confundir com tosta mista porque prefiro torrada e galão]

Ouço Fatima Miranda e Galás. Fumo como um sufi.

Atinjo a leveza, dou piruetas no ar. Abandono-me ao vosso cantar sedutor.

Sou infinito no meu castelo masmorra e um grão pecador na areia da praia.

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Claudio Mur