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Eis como morreu Marcel:
Um belo dia, pretendeu-se purificar Paris dos seus clochards. A assistência mais pública, que vela também pela boa apresentação das cidades, apareceu, com a polícia, na rua Monge, desejava-se apenas reintegrar esses velhos na vida, logo, primeiro que tudo, lavá-los, fazer deles criaturas apresentáveis. Marcel ergueu-se e seguiu-os, era um homem extremamente pacífico, mesmo depois de alguns copos continuava sensato e dócil. Esta intervenção deixava-o totalmente indiferente, possivelmente pensava que poderia encontrar a seguir o seu cantinho de rua, onde através das grelhas chega o calor do metro. Mas nos lavabos, repletos de chuveiros, da Saúde Pública, chega a vez dele, obrigam-no a passar por baixo de um chuveiro cuja água não estava certamente nem demasiado quente nem demasiado fria, só que era a primeira vez, desde há muitos anos, que ele se via nu, por baixo de um chuveiro. Antes que alguém tivesse tempo de perceber, de saltar, Marcel deixa-se cair, morrendo de imediato. Percebes o que quero dizer? Malina olha-me, um pouco inseguro, ele que nunca o é. Podia poupar-me uma história destas. Mas é como se sentisse outra vez esse duche, sei perfeitamente do que é que não deveriam ter lavado Marcel. Quando alguém vive na exalação da sua felicidade, quando alguém não tem muitas palavras além do "Deus lhe pague", não se deve correr o risco de o lavar daquilo que lhe faz bem, não se deve querer tornar um homem apresentável para uma vida nova, que não existe.
Eu: No lugar de Marcel, também teria morrido ao primeiro jacto de água.
Malina: Assim a felicidade teria sido sempre...
Eu: Por que hás-de estar constantemente a antecipar-te aos meus pensamentos? Estou realmente a pensar em Marcel neste momento, não, já quase não penso nele, é apenas um episódio, penso em mim e noutra coisa já, Marcel, era só para me ajudar.
Malina: ... Como os belos amanhãs do espírito, que nunca chegam...
Eu: Não me recordes constantemente o meu caderno escolar. Devia ter dentro outras coisas, mas queimei-o na casa da barrela. ainda me deve cobrir uma fina camada de felicidade, desde que nenhum jacto venha apagar um certo odor sem o qual não posso viver.
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página 198
'Malina', 1971
Ingeborg Bachmann
tradução de Maria Fernanda Branco
Edições 70, 2ºedição
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