segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Claudio Mur - Um retrato da falsa revolução

Um retrato da falsa revolução

A revolução disse que toda a gente seria livre de escolher e toda a gente aderiu. Disseram-se sociais
e comunitários e embarcaram no sonho de uma sociedade livre e de sucesso para todos os sócios e
tanto pelo menos como o nosso vizinho do lado.
Quem se revoltou? Todos o que nada tinham, os que tinham venderam se ainda puderam e fugiram
para gozar reformas no exílio. Deixou-se de ter como amigo o senhor fulano de tal pois este deixou
de ter um amigalhaço numa empresa exportadora para o verdadeiro mercado interno, as colónias.
Deixou-se de ter de fugir para um bidãovil, caso se tivesse um mau currículo ou não se tivesse o tal
amigalhaço, como alternativa à prisão ou à porta da igreja para turista visitar e fama de pedinte mal
educado vendendo o coto de miséria como mercadoria. Tudo porque a revolução disse que o estado,
ao se dissolver progressivamente, seria o sócio amigo em quem confiar e ninguém precisaria mais
de ser pedinte da corporação ou da igreja para o ser, em vez, do novo estado, o sonho prometido
para quem se revoltasse e aderisse à revolução social do cidadão. O estado refundado legislou que
no interesse do novo cidadão, ele, ainda pobre, perdesse a vergonha e se registasse no sistema com
o nome de 'vítima da sociedade' e se juntasse como 'voz da experiência' a uma nova associação, uma
nova casa, loja, lobbie, um novo partido, uma nova corporação que defendesse o sonho privado de
cada um: por decreto regulamentar, aspirar a transcender a natureza do ser humano e ser monarca
do seu próprio nariz e ser ainda reconhecido pela história como o Senhor Alguém Que Fez Obra,
aquele bem falante benfeitor de quem toda a gente fala e deseja vir a ser.
Chamaram-lhe o bolo social e disseram que, se bem integrados neste faroeste social regulamentado,
todos poderiam comer um pedaço de bolo se fizesse o compromisso. Todo o filiado subiu na escala
social trocando de posição conforme a conveniência e dizendo aos filhos: estuda para seres um
senhor porque eu mato-me para te dar um futuro. Se eras amigo levaste uma palmadinha nas costas
e a caridade ocasional de um cheque ao fim do mês. Se não eras amigo perguntaram pelo currículo
e fizeram um contrato dando a ilusão que seria cumprido desde que te tornasses amigo, te
identificasses como escravo do bem comum da empresa, da nova família.
A ilusão do espírito livre, um amigo, um sócio em potência capaz de causar mudança para si e todos
os sócios, vendo a lei apenas como instrumento temporário de registo da sua liberdade, uma medida
para ser ultrapassada. Uma lei para todos mas com a honrosa excepção de cada um. Às vezes
repressora e tirana de quem não pensa de acordo, a ilusão de liberdade é perdida todos os dias no
modo como a nossa mente interpreta a revolução social e o nosso papel na revolução social em
romarias ao cemitério para ver os novos mortos, a nova tradição. Lembras-te de quando éramos
novos, do nosso papel na revolução? Éramos uns pobres salafrários, uns grandes malucos mas agora
depois de mortos somos burgueses cool. Já viste o tamanho do meu instrumento? A ilusão
continuou com o direito a poder participar na festa de adoração do sucesso, personificado no líder.
O sucesso mede-se em dinheiro, na quantidade de bolo redistribuído pelo líder, champanhe para os
accionistas e sopa para novos cartões de pobre, os que não têm amigos nem currículo à porta das
novas igrejas, agora reaccionariamente sociais apelando ao sentimento do turismo de mausoléu,
dizendo que jesus afinal era socialista e nunca gostou de mercadores nem capital.
E assim as corporações se renovaram e voltaram a ser o que sempre foram e pareceram. Estatuto,
hierarquia e repressão para quem não aceita ou não pode aceitar a opção do contrato social. As
coisas não mudaram assim tanto, não passou de uma falsificação organizada por iluminados a soldo
que souberam propagandear nas gentes a ilusão de o sol poder nascer igual e independente, de e
para todos, para que no fim cada um, depois do estatuto adquirido e da ruptura ideológica com o
clube de juventude rebelde, poder viver hoje de pantufas no sofá a reforma dourada mandando
trabalhar as gentes, ou seja, os outros porque, claro, eu trabalhei muito e a minha obra, o meu nome
fala por mim.
Mudaram apenas os nomes numa passeata evolutiva até à dissolução final do seu sentido de palavra,
do desejo de produto à produção do desejo até à propaganda do desejo. Afinal até deus não morreu
e tornou-se múltiplo e relativo, foram-lhe mudando o nome conforme a utilidade, de partido
bondoso e mártir a portador da luz e maldoso até à reforma compulsiva para taxa de juro e capital,
uma teo-social democracia do proletariado, para quem a palavra mudou de anarquistas do partido
social para fiéis colaboradores descartáveis vivendo instrumentalizados no substrato ilusório e
figurado da conveniência social com promessa de igualdade e fraternidade no acesso ao bolo, à
palavra que dá espírito matando a fome e o choro. Se fores meu amigo e contribuíres dou-te um
prato de sopa no meu palácio, senão meu amigo vai morrer profeta lá longe no paraíso! O papa
benze, o aiatola proscreve, buda contempla, brama é poeta e o imã vive em segredo enquanto deus
omnipotente manda o seu burocrata subir a taxa de juro da nação de poetas. Porque temos de nos
rir, parodiamos de vez em quando em animado congresso de sócios, ou assembleia com as gentes, a
realpolitik da ilusão, fantasia, farsa e propaganda e colamos ao cínico palavras como estúpido
porque não segue exactamente o rebanho, como mau e vingativo porque diz a sua verdade em
noites de facas longas, como mal educado, desavergonhado, impudente, obsceno, imoral porque diz
o que todo o rebanho pensa: a pornografia do poder corrompe.
Agora que o deus anarca do capital deixou cair a máscara e nos expulsou da casa que produzia o
bolo e deixou de distribuir por todo o fiel sócio contribuinte, nós, as gentes, começamos a descrer
do morto deus Sebastião, o tal que foi prometido. Porque esse partido, esse deus, esse mercado não
passa de um turista, um partido estrangeiro, esse que, a soldo e em saldo, comprou o bolo para
produzir sonhos para famílias que vivem lá no paraíso e ter ignorado as gentes de cá. O problema
não é ser um crápula mas não ser eu, err... quero dizer, ser um estranho sem cor e não deixar nada
para mim, ups... quer dizer, para a gente, para a nação, afinal de contas pago impostos para quem?
Não te tenho no meu bolso, deste-me uma facada, oh deus!, eu era teu amigo e, por menos, fiz a
guerra em teu nome. Por favor, não me abandones.
Como resposta os burocratas e polícias cumprem o protocolo e mandam educadamente deslocalizar
a peida para o paraíso porque aqui nunca seremos livres. O estado, a ordem é deus e deus é o
mercado e o mercado sou eu e eu sou o inferno. É trabalhar para comer enquanto há e não bufar ou
só bufar os que nunca trabalham, claro, a quem nos dá de comer por caridade.
Como contra-resposta os clubes e gentes cumprem o protocolo e continuam em passeio a vender a
ilusão de progresso, a democratização do deus capital, capital ao dispor de todo aquele que se quiser
juntar à revolta para ser visto como mártir, um jesuíta dito espírito livre e filantrópico que nos
salvará do inferno, eu, a associação igreja salva do fim do mundo e tu podes ser o meu escolhido.
Para compor a estrutura ditatorial do capital anarca neste cool jogo de futebol no fim do mundo
sobramos nós, os prisioneiros do verbo liberdade, as facas esquizóides do indivíduo e os gunas
dependentes do social. Sempre desconfiamos da promessa, a liberdade sempre foi ilusão, o estado
só serve para receber subsídio em troca de servidão. Sociedade sempre foi e sempre se transformará
em hierarquia e deus sempre foi intoxicação, orgasmo. Conforme a cor do clube ecuménico ou do
capital imperial, conhecemos a verdade com vários nomes mas a palavra com que nos definem
nunca mudará: maluco, imoral, traidor, terrorista, arma de arremesso, drógado. Somos tudo isso.
Dentro de nós um mundo e parte desse mundo é autoridade. Fora de nós existe o mundo-promessa e
esse mundo é autoridade, não nos reconhece direitos se não assinarmos o contrato de recolha de
informação ou provocação social e o máximo que oferece é indiferença bem educada. Para nós
nunca haverá solução porque recusamos que a nossa insurreição seja instrumentalizada embora,
claro, não recusemos o cheque. Não podemos mudar o mundo, apenas mudar o modo como vemos
o mundo e como ele nos influencia numa estratégia de redução de danos. O caos organiza-se
sempre que acendemos a luz do desejo numa outra que és tu. Amor, trabalho, conhecimento e a
responsabilidade de se pudermos não roubar a tv da mãe tanto melhor, deixemo-la rezar porque
rezar lhe dá força. O nosso deus não é jesus nem o capital de jesus, admitimos a nossa condição e
disfarçamo-lo de opção, procuramos o prazer e a experiência sensorial, falhamos perante a
impossibilidade do convívio sem hierarquia, identificamo-nos com uma emoção sempre que o
nosso polícia interno está de folga e às vezes choramos, somos humanos afinal e queremo-nos
imperfeitos, vivemos a possibilidade de eternidade do dia porque conhecemos a noite, intoxicamonos
com um copo de água, e gostaríamos, se pudéssemos, não escrever uma única linha e, quando a
hora chegasse, deixar apenas um corpo bonito sem história, sem efeitos colaterais, apenas pó e já
sem precisar da rehabilitação da laje. Tão válido como dizer sem a tua elegância: quem nunca te
tiver roubado um beijo que atire a primeira pedra.
- Morziinho, vais fazer o jantar?
- Oooó, eu queria ver o futebole...

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publicado no indymedia.pt
em 2012
por alturas do despejo da escola da Fontinha pela camara municipal do Porto

parte deste texto foi reaproveitada em 'Hobo em memória cache',
um conto presente em "Contos de fadas de Manuelle Biezon" por Claudio Mur

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