quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

sábado, 23 de dezembro de 2017

Somewhere in Europe: Night


Então Guma começa a chorar e ele mesmo não sabe se é por ter encontrado sua mãe, se é por ter perdido a mulher que esperava.

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Por volta das nove horas Guma chegou com o saveiro, que era o Valente. Parou no pequeno cais, botou as mãos em torno da boca e gritou:
-- Tio! Ó tio!...
-- Já vou lá...
Guma ouviu as vozes que se aproximavam. Alguém vinha com seu tio, um desconhecido, porque ele conhecia as vozes de longe. Mestre Manuel gritou do seu saveiro:
-- Vem visita pra você, menino.
Quem seria que vinha com seu tio? Era uma mulher, pela voz. Seria que seu tio trazia uma mulher para dormir com ele? Já há algum tempo Francisco e outros homens do cais haviam começado com indirectas, negócios de mulher, e o tio ameaçava trazer uma para deixar com ele sozinha no saveiro no meio do mar...
-- Só quero ver o que você vai fazer, sua besta...
Os homens todos riam em gargalhadas, piscavam os olhos uns para os outros.
-- Já tá um homem o Guma -- dizia Antonico, mestre do Fé em Deus, que parecia não saber dizer outra coisa.
-- Precisa provar -- e Raimundo batia as mãos uma na outra, rindo interminavelmente. -- Meu Jacques já comeu da fruta...
Guma sabia que se tratava de dormir com uma mulher, de satisfazer aqueles desejos que o penetravam nos sonhos e o deixavam como se houvesse tomado uma surra. Muitas vezes nas cidadezinhas onde paravam ele passara naquelas rua das mulheres-damas, porém sempre lhe faltara coragem para entrar. Ninguém lhe daria menos de quinze anos, apesar de ele só ter onze. Por esse lado não tinha o que temer. Mas um receio de não sei o quê, o impedia de entrar. Tinha certeza que ficaria morto de vergonha quando a mulher visse que era a primeira vez. E tinha medo que a mulher não o aceitasse, o tratasse como uma criança, um filho sem pai que se perdeu na rua. Ela não iria adivinhar que ele já conduzia um saveiro e levantava um saco de farinha. Talvez se risse dele. E nunca entrou. Agora seu tio trazia a mulher prometida. Ele ia ficar encabulado diante dela. Com certeza Francisco já dissera que ele nunca conhecera mulher, que era uma besta, um medroso, apesar da faca no cinto. ele ficaria sem jeito diante da mulher. E se o tio quisesse assistir, só para rir, para gozar o mal ajeitado dele, então ele iria embora, fugiria do cais com vergonha, não navegaria mais naquelas águas. E é com verdadeiro pavor que Guma ouve as vozes que se aproximam. Seu corpo treme, e no entanto ele deseja que venham mais depressa porque ele quer ser homem quanto antes e atravessar sozinho com o Valente todos os rios, todos os portos, todos os canais.
As vozes se aproximam. É uma mulher, sim. Seu tio vem cumprir a promessa. Sem dúvida já anda envergonhado do sobrinho que ainda não é homem, que não conhece mulher. E como Guma não tem coragem de entrar na casa de uma delas, o tio vem trazer como se leva comida para cego, como se dá água na boca de um aleijado. É bem uma humilhação, mas ele não quer pensar nisso agora. Pensa que em breve terá a seu lado um corpo de mulher, um corpo que sabe todos o segredos. Pedirá ao tio que vá embora, que o deixe só com ela, e levará o saveiro para o meio da baía. Do forte velho ou de outro saveiro virá uma música. Ele amará, sentirá o mistério de tudo, e então poderá levar sozinho o seu saveiro pelas terras do Recôncavo, poderá, quando seu dia chegar, ver sem susto o rosto de Iemanjá e poderá amá-la porque já aprendeu aqueles segredos em que os homens tanto falam. Por isso está até com frio, se bem que a noite seja morna e o vento que passa esteja quente, uma brisa que quase nem balança o saveiro. A verdade é que tem medo. As vozes estão cada vez mais próximas. Ele já ouve o que conversam:
-- É ainda um menino, mas já tem cara de homem feito...
É seu tio quem fala. Naturalmente a mulher pergunta como ele é. Quer saber como o há-de tratar. Mas ele mostrará que é um homem forte, a apertará até que ela chore, até que diga que ele é mesmo igual a um homem dos que ela conheceu na sua vida. Agora, ouve a voz da mulher:
-- Quero que seja um homem bonito e valente...
O coração de Guma se enche de felicidade. ele já ama essa mulher que ainda não conhece, que seu tio traz para a sua cama (...). Ouve a voz de Francisco:
-- Guma!
-- Tou aqui...
O aveiro está bem perto do cais. (...) A mulher sorri. Guma olha os dois e o seu riso é de inteira satisfação. a mulher pergunta:
-- Você tá me conhecendo?
Ele a conhece, sim. Há muito que ele a espera. Ele a procurou nas ruas de mulheres perdidas, na beira do cais, em todas as mulheres que olharam para ele. Agora a encontrou. Ela é sua mulher. Ele a conhece de há muito, desde que os desejos penetraram seus nervos, perturbaram seus sonhos.
Francisco fala:
-- É tua mãe, Guma.
E o desejo não fugiu. Não era possível que fosse sua mãe, aquela mãe em quem ninguém nunca lhe falara, mãe em quem nunca pensara. Uma pilhéria de seu tio, com certeza. Aquela que estava ali era mulher de rua que viera para dormir com ele. Francisco não devia tê-la comparado com sua mãe, que seria boa e suave, muito longe daquelas coisas em que pensava. Mas a mulher se aproxima dele e o beija como devem beijar as mães. As mulheres da vida beijam de maneira diferente, sem dúvida. A voz da mulher é pura:
-- Te deixei há tanto tempo... Nunca mais te deixo...
Então Guma começa a chorar e ele mesmo não sabe se é por ter encontrado sua mãe, se é por ter perdido a mulher que esperava.
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, páginas 31- 34

'Mar morto'
Jorge amado
edição Círculo de Leitores

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Janaína Iemanjá Mãe d'Água


'Janaína Iemanjá Mãe d'Água'
aguarela sobre desenho impresso em papel de aguarela, 
tamanho A4
2017 
ZMB

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Pois é, o Natal...

Pois é, às vezes os homens, como nós ou mesmo como os rapazes, dizem da mulher, da companheira, da namorada, da amiga e menos da mãe, da irmã ou da filha: «elas só querem dinheiro, é só mamar à minha custa, tremoços e finos, sandálias e cinema com pipocas, é só mamar, trabalhar é grupo!»
Eu próprio o cheguei a dizer quando vi que uma mulher lutava antes de eu a conhecer e deixou de o fazer quando me conheceu, também eu disse «tu engordas e eu emagreço» e para mim dizia «até ao dia em que me farte!», esse dia veio, adquiri alegria e força, compreendi ambos os lados da questão: se, por um lado, eu tinha gordura a mais que me tirava saúde, ela, por outro lado, tinha deixado de ter dinheiro para sair à rua e comprar saúde e alimento.
Hoje dou mais sem nada pedir em troca, há dias em que imagino que não seria inverosímil um dia próximo me baterem à porta dizendo «tenho fome» e ficarem estupidamente à espera que eu lhes sacie a fome porque sabem como eu sou, há quem me veja como um anjo, e eu devo ser «católico» porque todos os dias dou e todos os dias me dizem «quando amadeus chegar ele vai-me dar e depois eu dou-te» e todos os dias me canso de ouvir promessas e histórias de enganar o otário católico, que todos os dias lhes dá porque se lembra que, um dia houve em que, também, quis pedir porque não tinha e teve vergonha de pedir e passar por lixo na passadeira ou passar por ser um cão a quem se dá um pontapé. Eu dou mas sei que quem pede hoje, se for atendido, vai pedir o mesmo no dia seguinte, ou mesmo mais, e o abuso vai acabar por encher a cabeça, por fazer saltar a tampa, como naquele dia em que a rir me pediram seis mortalhas, não um mas seis! belos papéis de arroz, e eu mandei-os foder para que soubessem que há um limite.
Além de tudo isto e voltando às mulheres que não querem trabalhar... hoje a situação é distinta: todos os dias fico à espera que ela venha para me ver no intervalo dos seus turnos de serviço e  ela não vem, ela não vem porque sai de casa às nove da manhã e passa o dia no trabalho, come lá, bebe lá, fuma lá, e volta para casa às duas da manhã, para no dia seguinte voltar à mesma rotina, de vez em quando liga e eu tanto a reconforto e lhe digo que estou orgulhoso de ela estar a lutar trabalhando, isto quando estou bem disposto porque, quando estou com os ciúmes, digo que ela nem sabe quanto e quando vai receber, «essa parece ser a tua família, ainda nem sabes qual o teu salário, estás há um mês a trabalhar sem nenhuma folga e nada, nada de salário, nada de descanso, esqueceste-te de mim, ouvi dizer que o restaurante te deu um anel de noivado, fica com ele e com o ramo de flores», e eu desligo o telefone e penso «eu que tenho a cerveja para ela no frigorífico há quase um mês, mulheres houve as quais eu mandaria trabalhar, e esta trabalha de mais, é uma escrava e parece que gosta, aqui ao lado na ilha ninguém trabalha e bastaria que eu gritasse alto Tenho Cerveja para que aparecessem, imediatamente, sete copos limpos e prontos a ser engolidos de penálti, ainda pediriam mais a seguir mas ela não... ela prefere beber com a cozinheira e demais colegas de trabalho, eu já passei à história.»
A verdade é que ela sempre me considerou um amigo e, portanto, não se pode dizer que alguma vez me enganou, fui eu que a seduzi quando ela estava carente e gostámos, sou eu que comecei a vê-la como uma «crítica de arte» mas... a erosão dos dias, as cedências, as adaptações, a necessidade de se jogar às escondidas como a boa desculpa para a ilusão se não transformar em realidade... a verdade é que há muito que a arte deixou de lhe interessar, há muito que a nossa cama está fria, resta-me viver, a pintura é agora essencial nestes dias, sozinho mesmo que tenha vizinhos nesta comunidade que se orgulha de já ter tirado um selfie com o Presidente, pfff!, como se não estivessem igual ou pior desde que se sentiram perús na foto, até dizem «quando eu o voltar a ver, ele vai ouvi-las.», andaram todos com ele na escola e vão todos re-elegê-lo.
Previsões para o natal que chega? O mais certo é não haver perú nem bacalhau nem polvo, o mais certo é passar eu-próprio o natal sozinho e, por opção, comer sozinho o mesmo de todos os dias porque há muito que sou um estorvo para a minha família e uma chucha para a comunidade, as mulheres da minha família são adeptas da Jonet, o meu pai gosta do Cavaco e do Passos Coelho e, para ele, além da geringonça sou eu o inimigo, tem-me ódio ou medo, evita falar comigo e só o faz obrigado- Por isso, sozinho não aborrecerei ninguém e ninguém me aborrecerá, que sa foda o natal e a coca-cola!, eu tenho o jazz.

No caveman bites the dog

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

E saiu de casa para comprar um burrofone mais inteligente do que o seu actual

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Hoje saí de casa de manhã e fui comprar o meu tabaco de enrolar, com o troco tomei o pequeno-almoço no café. Depois cheguei à ilha e dirigi-me a casa do Benjamim, lá encontrei igualmente o Rui. cumprimentei ambos e virei-me sorridente, quase hilariante para o Rui e disse-lhe:
-- Atão Rui, estás vivo? ainda bem que estás vivo, nem imaginas o que disseram de ti, olha que o estrunfe e o quim da coreia do norte planearam uma conspiração para te enviar um míssil num drone pelo cu acima?!, nem imaginas... estás vivo! Afinal, ouvi dizer que ontem fugiste com o ouro!
-- Queres um cigarro, Mur? Eu dou-te um cigarro.
Aceito o cigarro e fico contente, Benjamim está calmo, ontem estava com ganas de esganar o Rui, afinal levantaram-se às cinco e meia da manhã, para ir levantar a reforma e a metade do subsídio de Natal mas esperaram até às seis e meia à porta da caixa multibanco. nada, ainda não havia dinheiro, decidiram voltar para casa, mas antes das sete Rui voltou a sair e disse que já vinha, mas não voltou, e Rui devia dinheiro ao Giuliani e ao Benjamim que por sua vez deviam dinheiro ao Adriano e à Bidente que por sua vez é conhecida por se vangloriar por ter sido a maior ladra de Amesterdão e que ganhou a alcunha de Bidente porque um dia resolveu fazer olhinhos a um traficante à frente do companheiro, só para que ele lhe desse uma de borla e o companheiro partiu-lhe os dentes todos, ficaram só dois, daí a alcunha, além disso tem cara de bruxa, anda agora a infernizar o Giuliani que passa frio na cama porque ela lhe rouba os cobertores e a ganza além de se suspeitar que lhe roubou os antibióticos para os vender... é complicada a comunidade a que eu pertenço por afinidade e vizinhança, hoje o Benjamim dizia que o Adriano quase que esteve ontem para entrar num táxi e ir buscar o Rui ao bairro das lagartas, arrastá-lo pela bochecha e dizer-lhe «anda para casa, paga o que deves conho», a própria Bidente afirmava que o Rui era um perigo em qualquer casa porque era toxicodependente, mas hoje o Rui estava sorridente, ofereceu-me um cigarro, pagou as dívidas, deu vinte euros ao Adriano por umas sapatilhas e saiu de casa para comprar um burrofone mais inteligente do que o seu actual. Quando ele saiu, virei-me para o Benjamim e disse-lhe:
-- Afinal estavam tão alarmados, ele nem gastou muito, pagou tudo e ainda tem dinheiro para um smartphone! Bem vou para casa fazer o almoço, até logo.
Vim para casa, fiz o almoço e pus-me a ler, continuando a leitura de «O idiota» de Dostoievsky, o que eu tenho a dizer é que a personagem principal, supostamente, um idiota recuperado é na realidade a pessoa que mais calma e inteligência apresenta no livro até ao começo da segunda parte, chega a dizer a um palhaço qualquer coisa como «era idiota, mas fui tratado, e estou curado, e já não me sinto idiota, por isso trata-me com respeito, se não vira à direita e eu à esquerda». é certo que o idiota assim o era por causa da epilepsia que era tratada com métodos hoje considerados antiquados, é certo que o idiota ganha uma herança que torna muito mais fácil a sua recuperação, de qualquer modo  e para terminar que estou com vontade de fumar... esta história é uma fonte de orgulho, é quase um manual de sobrevivência, é uma inspiração, um grande livro. Disse.
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Claudio Mur

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Mente, sai dizendo que me ama



Composição: Paulo Vanzolini / Eduardo Gudin Mente ainda é uma saída É uma hipótese da vida Mente Sai dizendo que me ama Mente Espalha essa fama Me chama de meu amor constantemente, no meio de toda gente e a sós, entre nós dois, mente. Mente pra dar um novo inicio, ninguem liga sacrificio, quando ele é o único meio. Pois na mentira, meu amor, crer, eu não creio. Só pretendo que, de tanto mentir, repetir que me ama, você mesma acabe crendo.