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Notas da ilha,
onde se prova que a realidade é superior à melhor ficção, neste caso uma realidade trágico-cómica.
1. Giu, o nosso poeta, foi convidado para uma noite ir ao albergue jantar. Não que não tivesse esse direito mas porque o Presidente ia lá estar. Giu começou a pensar na honra que era poder cumprimentar o Presidente, e começou a perguntar aos amigos se deveria lhe entregar as suas obras auto-editadas. O objectivo de Giu era que o Presidente lhe editasse as obras e o fizesse Nobel. Eu e muitos outros lhe dissemos para não entregar as obras, aqueles seus exemplares eram os últimos exemplares, Giu agradeceu-me e disse que ia fazer de acordo com o nosso conselho. A tal noite chegou, as televisões estiveram lá, houve quem visse Giu a abraçar-se ao Presidente e a entregar-lhe os livros. Segundo Giu, o Presidente disse: «Você entrega-me estes e receberá muitos mais!» Giu ficou contente dois dias e andou a contar o evento a todos e eu ainda procurei na net se havia registo filmado e encontrei o Presidente a jantar com os sem-abrigo no albergue, a ir visitar o local de dormida de outro e entregar-lhe um cartão do cidadão, a distribuir refeições na rua, enfim, um trabalho de mérito e o primeiro Presidente que abraça a causa dos mais desprotegidos.
Mas eu desconfio do Presidente e depois de brincar um pouco ironicamente ccom o futuro camião de livros que viria numa manhã próxima estacionar à porta da ilha, disse a Giu: «Fizeste mal, ele é de direita e afilhado do antigo ditador com o mesmo nome, tu tens um verso, antes de 74, em que critícas o 'Deus Marcelo', e ele pode não gostar, não te pode prender porque temos já liberdade de opinião mas pode abafar-te, fazer-te esquecer, deixar os teus livros na estante junto a tantos outros que ele recebe e nunca deles nada fazer...»
O certo é que passaram três meses e Giu ainda não viu o camião de livros e já escreve versos no seu 'Diário do Quotidiano' a queixar-se do Presidente, rebaixando-se ao dizer que, naquela noite, quis-lhe dizer que o Presidente era o pai que ele nunca teve, mas não conseguiu, vieram~lhe as lágrimas aos olhos e chorou no seu peito. É triste.
Andamos todos a começar a mudar a opnião sobre o Presidente, muito blablablá nas televisões e nada de concreto.
2. Para aumentar a desgraça de Giu, foi-lhe proposto receber a prestação de inclusão, um novo apoio social dado por este governo. Giu assinou os papéis todo contente, iria receber mais algumas dezenas de euros e este mês já com retroactivos, mas o que aconteceu é que acabou a perder o subsídio de férias da sua reforma por invalidez este mês de Julho e a tal prestação ainda não chegou. A gente fez as contas e alguém também lhe disse que o corte seria permanente e igualmente no subsídio de Natal: «Dão por um lado e tiram pelo outro, cabrões!» O resultado foi que o Giu não pode pagar o fiado no café e noutros lados e andou a chorar pelos cantos, a resmungar, a dizer que já não iria ter forças para ver a sua obra editada em vida, coitado do Giu.
O caricato foi ouvir a Bidente contar que o senhor do café veio à ilha uma tarde perguntar pelo calote do Giu e encontrou o mastodonte Luis a pintar as unhas dos pés da Bidente em cor lilás: «Vês Mur, eu também sou pintor!», eu bati palmas e disse «Sim Luís, tu aplicas a técnica à melhor prática eheheh, a cor é fixe!» Ao olhar para o contraste entre o alabastro da pele e o lilás das unhas, imaginei-me Rembrandt mostrando aqueles pés numa bandeja ao imperador Nero.
3. Estava eu a fazer um charro na casa três quando olho pela cortina da porta e vejo um capacete branco e um uniforme. Demoro uns momentos a reconhecer que é uma polícia motociclista que fala ao telemóvel. Desmarco o charro e toda a gente repara que a polícia chama pelo Luís. «Então Luís, pensas que eu tenho tempo para estas merdas, vá lá... porque faltaste à injecção?, tenho ordens para te levar, da próxima vez vais algemado, prepara-te rápido que o carro-patrulha está a chegar!» «Mas senhora guarda, eu faltei porque estava a trabalhar no Parque da Cidade, sou técnico de som!». «Vá lá, veste umas calças quaisquer, anda que eu ainda tenho de ir a outro lado!», O Giu mete-se na conversa e diz «eu também tomo a injecção, sou poeta, olhe este livro que eu tenho à venda, deixe-me recitar um poema...», «Não», diz a polícia «faça um dedicado a mim, chamo-me Rosa.» e o Giu recitou-lhe o poema 'Vácuo' enquanto ela esperava pelo Luís folheando o livro e os agentes do carro-patrulha já perguntavam em que concerto trabalhara o Luís: «Foi primeiro Xutos e depois Toni.» «Bem, estás pronto? anda daí, isso é que é, nós somos um belo táxi!», «Ó senhora agente, vai-me levar o livro sem pagar, ó senhora agente!»
E eles lá foram ao hospital, o Giu fodido foi comprar a receita à mercearia e eu fiquei-me a rir com a Bidente e o Dário, e a tresvariar a canção dos Mão Morta, Giu como o Adolfo cantando: «a polícia roubou-me, roubou-me o livro, rai's partam a polícia!»
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Claudio Mur
Claudio Mur
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