terça-feira, 21 de agosto de 2018

É como andar escondido à vista de todos.
Passar despercebido, anónimo.

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42.

Burro, anjo rafeiro, resvalado, besta doce de beira de estrada. Híbrido e estéril, macho mesmo se fêmea. Deslembrado, trôpego, uma tal bebedeira nos ossos, dir-se-ia que nem ossos tem. Sombra de sombra de outra sombra, numa linhagem perdida que se sucede medindo os caminhos que servem a errância da terra.
Um odor penetrante de laranjas... Humidade e silêncio na azinhaga das Bruxas... Migrante sedentário. Eco vagabundo e de origem desconhecida. Eco que não se abate, como um assobio que fosse passando de lábios. Jogo de cartas para chamar o azar; apostada a vida, foge lento, como se na garupa levasse um cavaleiro arruinado, tristíssimo da vida, desfalecido, moribundo. Solto, o burro serve de túmulo. Um que ande, vá sobre a terra, acariciando levemente com o focinho, mal as roçando, as florinhas róseas, azuis-celestes e amarelas...

Coze-me lento no calor que resta das coisas que se lembram, quando o burro era a sombra que um homem fazia quando suava. Faz-me da cor mais sem espanto, a luz perdida no pêlo, sou um resto que já não sobra. Carga de quê? Lembro altezas de relance, mas olhado de frente há algo em mim da baixa condição mais nobre.
Pobre montada, sombra feita de carne, ossos um tanto confusos quanto à nossa espécie: mansa, distraída... Vamos, assembleia em fila, eu e eu e eu de novo. Um cortejo de nada.
(...)
Vale todo um reino, o burro. É como andar escondido à vista de todos. Passar despercebido, anónimo. Quando nele passo é sempre domingo, e o mundo desinteressa-se do futuro. A cidade dobra-se sobre si, encolhe passando por aldeia. Descemos a avenida que nos mira com o pasmo de qualquer ruela. E os camponeses, vestidos de lavado e vagarosos, param e os olhos deitam-se no chão, para que a gente passe.
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,página 86 - 88

'Ultimato'
Diogo Vaz Pinto
Edição Maldoror 2018

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