quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Perdidos estamos todos

Eu às vezes sou mau. Tenho pensamentos maus. Estou habituado a ter tempo livre demais e a nem sempre ter vontade de pintar e a estar a maior parte do tempo sózinho em casa e a não querer ir passar o tempo no café, por exemplo, a ler e ser objecto dos mirones que passam e se espantam e dizem uns para os outros «sabes ler?». Passo o tempo em casa, saio só para fazer as compras necessárias e quando não estou a ler, ponho-me a pensar comigo próprio. Às vezes, falo mesmo comigo como se eu fosse um tu e assim me responde a consciência. Em tempos de descompensação mental, fazia este diálogo em voz alta em casa, na rua, no café e toda a gente era obrigada a levar comigo e com frases que não compreendiam e atitudes exóticas e ou obtusas, das quais ou se riam ou então dizia «olha, vai ser internado». Agora, às vezes, e já só em casa, falo entre dentes, comigo e contra os outros. Ando numa luta para me regenerar das coisas erradas que fiz, do mal que expressei em palavras ou acções, das pessoas que fui perdendo, a luta é por tentar ser um gajo saudável o mais possível aprendendo com o que de bom e de mau acontece e aconteceu. Como sei que às vezes a causa dos meus males e de perder pessoas sou eu-próprio, estou sempre a atacar-me nestes meus diálogos e agora já não sei se sou egocentrista porque estou só ou se estou só porque sou egocentrista, as outras pessoas serão talvez egocentristas também, todo o ser humano se acha especial ou quer se sentir especial, reconhecido por alguma qualidade digna de destaque. Acontece que eu, às vezes, de me preocupar tanto comigo, com as minhas razões, com o pensamento de agora ser não mais mau mas bom e entrando nos eixos da sociedade das boas maneiras, esqueço que as outras pessoas poderão não ser como eu, ou ter ideias diferentes das minhas, verem o mundo de modo diferente. E aqui há um paradoxo: se eu não quero ser líder de Coisa Nenhuma também não quero ver as minhas ideias como erradas e ver as pessoas a fazerem diferente, a ignorarem as minhas ideias. É uma questão de extremos: não quero ser líder mas também não quero ser um zero.
É em coisas como estas que eu penso quando estou só, invento diálogos entre mim e a minha consciência, e quando as coisas não me correm bem socialmente começo a pôr um «eles» no diálogo, é aí que sou mau, e, porque eles fazem diferente ou dizem coisas com que eu não concordo, fico a ruminar pensamentos sobre o que deveria ser e não é, sobre o que eles são, o que dizem e não fazem, o porquê de certas atitudes, certas palavras. O mundo não é como eu o quero, e se eu quero fugir à degradação e tento elevar o meu pensamento e fugir das coisas rasteiras do quotidiano, não consigo muitas vezes aceitar que os outros não façam o mesmo, que não tenham o sucesso, que não se esforcem mais, que não consigam sair de condições adversas e se deixem abater por depressões ou iludir por ideais de telenovela e reality-show. É o que disse. o mundo não é como o queremos e cada um o vive à sua maneira, no nosso caso vamos todos sobrevivendo na prosa dos dias, a nossa vida pode parecer, aos de fora, a quem connosco não vive, poética e mesmo romântica no sentido século XIX, mas o nosso dia-a-dia é pobre, não tem glamour, vamos passando o tempo cada um na sua luta:
O Giu tentando arranjar cigarros e escrevendo poemas declarativos, eu tentando deixar de fumar e não deixar de pintar, o Luis sem vontade de viver dormindo de dia e de noite, o Dário sempre calado e propondo-me o negócio «eu ofereço a ganza e tu pões a tocar esse duplo cd do Bob Marley», a Bidente sonhando em subir de vida, deixar este abrigo do qual está farta e inspirando-se nas estrelas cor-de-rosa da sociedade portuguesa, como ela diz e é verdade «na vida, é preciso um pouco de hipocrisia, um petit peu». 
Vivemos numa ilha e todos somos a ilha e precisamos uns dos outros para manter a comunidade em paz, para termos alguma alegria e conforto, para que estejamos menos sós. Mas é como eu digo: eu tenho pensamentos maus e às vezes ignoro as razões dos outros, culpo-me primeiro a mim e castigo-me, e quando vejo algo de errado nos outros e sem compreender as suas razões ponho-me com pensamentos maus contra eles e chego mesmo a ser irracional, perco mesmo a razão nas situações, acabo sempre prejudicado e só.
Vem tudo isto para dizer que, ontem fui pedir desculpa à Bidente, disse que fui estúpido na minha atitude, e ela disse a palavra que já antes haviam escrito «Não gostei do teu carácter, da tua atitude».
Falou das suas razões: ela é epiléptica mas desde que está connosco ainda não teve nenhuma crise, está medicada e é de nós quem tem menos dinheiro, além disso diz que a sua memória devido à doença se degrada, se esquece das coisas, não se lembra. Eu ouço e faço mea culpa, salta-me a tampa contra o meu semelhante, contra as pessoas que como eu sofrem da cabeça, e por isso me considero mau por vezes. Mas uma coisa que tenho conseguido fazer recentemente é «fazer as pazes», primeiro ressabio interiormente mas depois ajo, dou um passo em frente para reduzir os danos do mal criado, vou pedir desculpa. Se não o fizesse ficava sózinho. E que me importa que tenha razão se fico sózinho no final. É por isso que engulo muitas vezes sapos com ou sem copo de água. 
Perdidos estamos todos.

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