sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Depois dizem que não queremos trabalhar

A minha amiga precisa de trabalho. Este fim-de-semana encontrei-lhe um emprego no jornal. Fui com ela pessoalmente lá na Segunda-fera. A senhora gostou dela. E até de mim gostou, tive de dizer-lhe que era pintor de quadros, se fosse pintor de casas também lá tinha emprego.
-- Quando pode começar?
-- Amanhã!
Cancelou-se Carnaval e ela começou no dia de Carnaval.
Hoje, na pausa para almoço, diz-me ela:
-- Olha o que a senhora me perguntou: «Santinha, uma senhora veio me dizer que você já andou a pedir...
-- E tu que lhe disseste?
-- Eu disse: ah fale sério, eu não sei o dia de amanhã, mas se precisar de pedir no futuro não terei vergonha, é melhor pedir que roubar. E ela calou-se e foi embora.
-- É, fizeste bem, mantém a tua dignidade, a tua seriedade. Mas sim, as pessoas às vezes fazem tudo para nos deitar abaixo, depois dizem que somos malandros e não queremos trabalhar, a gente procura o trabalho, é humilde ao ponto de trabalhar no escuro porque precisa, e depois há aqueles que só estão contentes em ver-nos na lama, na desgraça. Diplomacia, usa a diplomacia.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Faz de conta


'Faz de conta'
desenho a grafite sobre papel de 300gsm2 grão fino
50cm por 70cm
2020
ZMB

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

domingo, 16 de fevereiro de 2020

me the zombie wolf

Myself ZMB at Centro de Arte Oliva (S. João da Madeira) in a group exhibition of art brut artists from Portugal, Brasil and Angola, and organised by the Treger Saint Silvestre art collection. Thanks to everyone involved and to everyone who was there this Saturday February 8.
The exhibition can be visited until mid-March 2020. and it cost less than a pack of cigarettes  have fun inside!
... the left image is called Óvulo, the right image is called Almost a kiss.
I have also two A4 drawings in pencil on display (one about religions side by side and the other depicting a patient friend of mine on our last hospitalisation) and two other 50cm by 70cm drawings in pencil and pen.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Insídia


'Insídia'
óleo sobre madeira
48cm por 38cm (com moldura)
2020
ZMB

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Porquê porque não? Pergunto-me porquê...


'
Acordo à uma da tarde.
Tenho uma aula às duas, penso agora em ir almoçar. Ao me levantar da cama, noto que a minha cabeça sente algum cansaço e nela existe uma enorme branquidão nos meus sentidos, é tudo o esforço e a consequência, é o reflexo fotográfico da noite de ontem passada no Armenia a beber Bocks, a fumar charros e jogar bilhar.
Quando me dirijo à casa de banho começo a pensar: como por sistema não tomo banho em dias pares, lavarei apenas os dentes, beberei um copo de leite, calçarei os sapatos, sairei de casa, subirei a longa avenida e virarei à direita até chegar à cantina.
Sou servido, procuro um lugar e sento-me. Não como quase nada. É o resultado de me ter posto a pensar no porquê de continuar com a minha maria, não consigo compreender o porquê de andar com ela, deve ser amor?, mas não me parece haver um motivo nem mesmo este (e é mesmo necessário haver uma razão?, seu nabo!). Pergunto-me se o acto de namorar procura a sua explicação de existir. De qualquer modo, não é tão grave como dizer: caralho... se não me deixas de foder a cabeça, vai já a maria para o caralho! Quero dizer: arruma os trapinhos e rua por favor.
Não. O porquê de pensar em tudo isto hoje, à hora de almoço, é simplesmente a discussão de ontem à noite, cuja razão pergunto se me salva. Essa razão, da qual ela não tem conhecimento, faz-me pensar em como reagiria ela se a descobrisse. Quem sabe um dia, alguém lhe conte, alguém que viu e depois, naturalmente ela trair-me-á e abandonar-me-á por um belo modelo
dez anos mais novo que ela...
Como descrever a nossa relação? Talvez o prefácio da vida tipo familiar, aquele género monótono para a minha idade. No entanto, às vezes, observo o lado emotivo e descubro na nossa relação essa união, esse princípio moral e fundamental da sociedade do colarinho branco. Descubro apenas uma diferença: estamos afastados da média etária por cinco, seis anos. Somos por isso casados sem o ser e na nossa frigideira existem alguns ingredientes atractivos, como já saber fazer arroz com ovos estrelados, fritar batatas e grelhar um bife. (Fala lá da razão mazé.)
Enfim, se me queres ouvir eu explico: na sociedade moral o homem controla a mulher ponto Ou melhor, este valor explica-se, este facto é observado naturalmente: ela chega a casa, faz o jantar
para a família ou dá instruções para alguém, a criada fazer. É este o seu papel. (Pareces viver desligado da realidade, meu nabo) Ao homem, por outro lado, exige-se o dever de tomar decisões como, por exemplo, dizer onde ir tomar café, despertar o seu amor, dizê-lo, produzir provas, demonstrá-lo por actos. É necessário explicar constantemente que se gosta da maria. Pergunto-me por isso se não será, então, o homem que é controlado pela mulher. Pergunto-me pelos valores intrínsecos de masculinidade e feminilidade. (Ei! Não percebes?! Ouve zé ninguém, compra o merdoso novo livro que está na berra, lá explica.)
Perante tantos olhares para o fundo da cantina onde a paisagem verde água é emoldurada pelas janelas e recortada pelas pessoas que comem, levantam-se para ir buscar água e retornam, conversam, levantam-se para arrumar o tabuleiro e lavar as mãos, descubro que me esqueci das horas e que ainda preciso de ir tomar café. Estou muito atrasado para as aulas. Uma aula chata já a seguir, perco-me na voz monocórdica do professor, o meu pensamento divaga, em vez de tirar notas daquilo que o professor diz, começo a escrever:
Tenho total controlo sobre ti. Partilho muito pouco contigo. Digo-te quando nos podemos encontrar porque tenho de dedicar a maior parte do tempo a estudar. Eu digo-te quando podemos sair para jantar e, igualmente, faço por ignorar certas datas consideradas especiais como dias de aniversário, dias que a sociedade moral diz terem de ser passados em conjunto e harmonia. As cedências que te faço são abortos não pensados e não desejados. Quando há uma festa entre amigos e colegas de apartamento sempre com muita cerveja e música à mistura; quando há uma ida à discoteca para dançar a nova música da qual tu gostas e eu... Maria, eu tenho de gostar também, tenho de fazer um esforço por me mostrar feliz e tenho de demonstrar perante toda a gente o meu amor por ti, que pesadelo!, às vezes, me parece. Às vezes, saio de cafés a cantar coisas dos Van Der Graaf como estes dias eu quase só falo com plantas e cães. Às vezes, dás-me de prenda grandes cartões que se assemelham aos que a minha mãe e irmãs me dão, grandes cartões com fotografias e desejos de felicidade, alguns ursinhos azuis e bebés à mistura. É engraçado, é talvez estúpido, eu actuar perante ti como se não percebesse o teu desejo de termos um filho. Mas eu não quero ter filhos, não queres um filho do diabo pois não? E mesmo que eu me reconvertesse nunca teria condições para cuidar e alimentar, vestir, calçar, dar instrução a um filho. Também acontece que se vêem as nossas diferenças quando, outras vezes, eu te gravo cassetes com música que adoro e que gostaria de partilhar contigo e tu desgravas mais tarde essa mesma cassete para pôr música tipo Quinta do Bill. Uma vez, ofereceste-me uma camisa com riscas verdes verticais. Outra vez, troquei contigo uma t-shirt dos U2, comprada num concerto que fui ver apenas para descobrir que não era para mim, troquei-a por uma t-shirt tua, pequena e púrpura tipo feira da ladra. Foi um acto de amor, passei a usá-la sempre, passou a ser o meu fetiche. Tenho ainda uma camisola cinzenta que igualmente mal me serve, que me foi dada pela minha mãe e que pertencera ao meu avô. É outro fetiche, uso-a como uma homenagem ao meu avô que só se casou aos quarenta com a minha avó de dezanove. É um dos meus heróis. Identifico-me com ele. Como estou na minha fase irreverente, uso o cabelo comprido não só mas também porque sei que hei-de ficar careca no futuro, está-me nos genes, fumo charros, bebo cerveja, os meus dentes estão a cair porque sou decadente, tenho-te como namorada, estudo e vou as aulas, sou uma pessoa normal e ainda assim... sinto um desejo enorme de usar aquela t-shirt desmazelada e púrpura quando estou contigo no café. Do mesmo modo quando vamos jogar bilhar, gosto de usar uma camisa preta com signos cosidos em branco em geometrias que imagino pertencerem a uma das civilizações ameríndias que a minha cultura me não permite identificar. Oh filho, se calhar é apenas uma reflexão artística do designer.
Então, qual é a razão?, perguntam vocês.
Antes das conclusões finais, devo dizer que estético foi o acto que cometi uma noite quando jogava sueca no Armenia... e pergunto-me se isso não foi um rastilho para uma elipse baseada num simulacro de uma discussão, é bom querer oscilar, ser funâmbulo. Eu, ela, ela e um colega. Tinha andado a colher rosas vermelhas com Maria. A outra ela, chamar-lhe-ei de Joana.
Ela usava um fino vestido preto até ao meio das pernas suaves disfarçadas pelas meias pretas. Tinha o cabelo preto, comprido e liso. Uma cara angular. Olhos pintados com rímel preto. Usava um casaco de lã preta e era linda. No meio de uma jogada como algo que fosse normal fazer, nós, os quatro, jogando cartas no Armenia, ofereci-lhe uma rosa enquanto olhava para a minha maria dando-lhe o sinal para a jogada seguinte.
Nunca me perguntei o porquê nem dei muita importância a este acto mas um dia após as férias, vejo-a outra vez sentada no March Push a beber com os amigos. Continua a ser a mesma linda mulher a quem oferecera uma rosa. Cumprimentamo-nos ao de longe, compro as latas de cerveja e vou ter com a minha maria para falarmos e beijarmo-nos numa inocência perdida mas só para mim. Um dia, ela tinha ido de fim-de-semana, eu regressara mais cedo. Vejo-a no Armenia. Está sozinha.
Falamos das vindimas. De súbito e, no meio da pista, ela diz que me quer. Olho para ela. Continuas linda e eu, no meio de todas as pessoas que ouvem a banda de ocasião, pergunto porquê. Ela diz que não se esquecera da rosa por mim oferecida e que se perguntara do porquê de tal ter sucedido. Ao me ter visto e por influência desse acto sentira-se atraída e desejara-me.
Lindo! É engraçado reparar que, devido as transformadas de Fourier, transladei Maria do tempo para a frequência, convertendo-se Joana em ela oficiosa. Deixei para trás o tempo em que passava tardes a estudar álgebra ao som de Sonic Death para depois ir buscar a Maria para irmos ver a peça A morte de um caixeiro viajante e os mnemónicos vinte mil dólares. Deixei para trás o tempo em que lhe oferecia desenhos lembrando a ilha dos amores. Que qualidade ou tipo de amor me poderia fazer andar com uma virgem à procura do melhor momento, será o desejo de possuir uma virgem, ter a inocência? Deveria eu quebrar a ligação oficial por justa causa de acordo com os desejos do meu coração?
Constrói-se uma felicidade ao longo de mais de um mês em espaços cuidadosamente escondidos, tempos planeados, caminhamos pelas mesmas ruas desfasados de cem metros para que ninguém descubra o estilo policial e nunca entremos ao mesmo tempo em casa.
Vamos à cidade de Staa caminhar em ruas sempre a subir, imaginando um paraíso, ouvindo Fausto, dançando abraçados no clube Iz sem complexos, sem medos de poder haver espias para contar, voltando no comboio a suspirar por entre o sono e o renascer da manhã a paisagem que se vê do comboio.
Há um dia em que a Maria não regressa de um fim-de-semana e nós, de acordo com o plano, ficamos escondidos no meu T0 fazendo amor e falando alto por causa da música que estava ainda mais alta, dançando em cima da cama até tocar a campainha e partir o estrado pensando que era ela que eu não sabia se chega hoje ou amanhã, pois não tinha dado a certeza mas dissera que assim que chegasse passaria por minha casa e agora como vai ser? Rimos e concordamos que ela se deverá esconder no guarda-fatos que é tão pequeno que tenho de lhe dar um livro para ela ler no escuro enquanto empurro com força a porta para podermos ocultar esta brincadeira de crianças apaixonadas em pleno Outono. Então, no meio da música visto-me e cheguo à porta com um certo ar louco de felicidade, um grande sorriso nos lábios, a musica é do Fausto, e quando abro a porta aparece um colega do meu colega do meu colega do apartamento que pergunta se o colega do colega do colega do colega do apartamento estava no apartamento. Quando fecho a porta, vou buscá-la ao armário e contar-lhe o sucedido e explicar-lhe num estado tresloucado que não, afinal, não era ela mas o colega do apartamento, etc, e que podemos ficar um pouco mais.
Adoro-te.
Terminado este flash a aula acaba, saio da sala e vou tomar um novo café e depois vou à aula das três. Tento estar atento e tirar notas. Venho para casa ao fim da tarde a pensar: depois chega o dia de optar pelo fim da duplicidade, tem de ser, e, para poder equilibrar a balança, eu devo julgar de um lado: alguém menina que me ensina a cozinhar, estilo: és minha namorada viste?, mostro-te as pessoas porque estou certo de gostar de ti; do outro lado alguém que me deseja num momento espontâneo, alguém experiente com a pose cool de quem não procura mas está sedenta e que mo diz e, mais do que isso, age, quer-me neste momento, e não disfarça, não há jogos nem tem medo.
Ainda me pergunto porque escolhi mal. Talvez para honrar o amor que me dera, a virgindade terminar e com ela essa pureza abalar, a serpente cumprir a sua missão, ou seja, preferir a segurança e a certeza da plena posse do amor de Maria. Porque ando eu ainda com ela?
Uma vez, não estava bem-disposto e resolvo ir ler A Peste de Camus para o terraço sentando-me no muro, olhando para a avenida três andares abaixo, perguntando-me no porquê de não me atirar abaixo. Qual o preço a pagar para não cair. Como não encontro solução possível, continuo a ler, enrolo um cigarro, telefono a dizer-lhe por outras palavras que vou ignorar uma certa data, digo-lhe que tenho de ir de fim-de-semana.
Quando o comboio parte de Derza, continuo a pensar: eu vivo numa mentira, vivo no aborrecimento de conseguir controlar os meus sentimentos num ambiente confortável e estável, tão cedo!?! e quando chego a Tirza saio com a ideia de que, se calhar, o amor é mesmo aquilo que dizem, é aquilo que nos faz descontrolar e sorrir no fim, nos leva a essa loucura alegre, essa felicidade que eu tivera nos braços e que, se calhar, confundi com paixão pois era só uma nota de música, para haver amor é preciso optar bem pela construção da escala, ou seja, é preciso Tempo, um plano quinquenal! E numa mentira o tempo é um desperdício de tempo, nunca se consegue endireitar o que já nasceu torto. É o feitio, só pode ser o feitio de alguém que acredita na pessoa de sonho e de algum diabo, se calhar a moral cristã de alguém acreditando no diabo, que lhe diz: devemos ter sempre o controlo das nossas emoções, devemos ter sempre o melhor para nós, a vida não é um mar de rosas e tal!
Mesmo pensando à distância não consigo ser frio como o queria ser, nos meus olhos existe apenas o calor confundindo-se com as lágrimas, talvez por isso tenha grandes olheiras... não será só da falta de sono e do excesso de estudo. Só pode ser a moral, a moral egoísta pode dizer-nos para escolher o peso errado, o fardo de um certo conforto familiar.
Por isso, acho que não deve passar de hoje o dia de terminar. Não deveremos passar esta data juntos. Não gosto de festejar datas de aniversário, nunca gostei, não vou passá-la contigo porque não sinto vontade de o fazer e também porque quero ver quais são os teus pontos limites, isto porque ando a ler livros onde descobri certas noções acerca da continuidade da decadência após o cometimento de um primeiro acto decadente. Considero o acto de trair como um primeiro acto decadente, e considero se deverei continuar vivendo contigo talvez por conforto?, e ainda sentir desejo com tudo isto, não!, não pode ser mais.
São estas as noções que me traem. Excesso de informação agora entupida nos túneis de memórias vividas, imaginadas, lidas. Então, dizemos a separação chorando nos braços um do outro, ela perguntando porquê, porquê se gostas de mim e eu de ti?, e eu sentindo todo o mal que me cria remorso, um abcesso nervoso, não lhe posso dizer, talvez não me aceite mais, não o posso dizer a ninguém, vai morrer espetado no coração e então...?! mas não é disso que falamos, de quebrar agora? Estou somente a tentar dissimular um facto ou a simular um facto?
Não nos vemos durante quatro dias.
Na Segunda-feira vou à biblioteca, ando interessado em descobrir Jean Cocteau e um livro chamado A voz humana. Começo a ler o monólogo de uma mulher falando ao telefone, tentando fazer com que o amante volte para ela. A certa altura, Maria aparece de olhos vermelhos tentando falar comigo. Senta-se a meu lado e começamos a falar. Olho para ela. Vejo o amor que me tem e pergunto-me outra vez no porquê de ela gostar de mim, eu pergunto-me se ela alguma vez terá desconfiado da minha traição e pergunto-me se tenho culpa? Vamos tomar café. Eu com culpa nos olhos, só não choro por convenção, no entanto tenho os olhos vermelhos e ela interpreta essa vermelhidão, sei lá!?, como um sinal de arrependimento talvez ou se calhar o amor é cego e ela quer-me como uma cega.
Peço-te desculpa. Beijo-te com verdade hoje. Voltamos para casa juntos, contentes, felizes, é sempre assim, tem acontecido frequentemente, rompemos e voltamos. Quando rompemos existe um horrível choro e desespero. Quando voltamos existe um lindo choro e uma felicidade extrema. No intervalo, tenho tempo de reciclar as recordações gravando cassetes de jazz a essa Joana que tive, faz anos em Junho, e a quem escrevo um poema dizendo por entre relógios, tempos e datas: já não é possível oferecer-te outra rosa.
Houve uma vez que, ao nos aprontarmos para sair, a Joana decidiu começar a fazer a cama. Os lençóis eram azuis e eu sabia que lá estava uma mancha vermelha. Sim!, Maria perdeu a virgindade antes do dia marcado e Joana reparou nessa mancha vermelha mas não fez caso aparente. Tomou sim uma pose mais digna como se fosse uma criada, ou mesmo uma mãe,
executando com humildade e orgulho o direito de fazer a cama que ela transformava em
dever e um sorriso quase nos lábios.
Porque fiquei eu a admirar este quadro vivo, quando talvez não o merecesse?
Porque não cheguei eu à beira dela e não a abracei com força?
Porque não lhe disse: Oh mulher! Beija-me. Eu adoro-te e eu sei que tu me adoras...
Porque lhe devolvi os brincos? Eram tão bonitos, pareciam de prata.
Talvez fosse mesmo a moral que me fez perder a dama de negro, e ela afinal até lutara por mim, quando no Armenia me fez o convite e eu acedi, éramos para ir para o meu alojamento, mas ela queria ir para o seu na Vitória. Começara a chover e abrigámo-nos a meio caminho por detrás de umas árvores nas traseiras de uma casa. Falámos, beijamo-nos, eu desci as minhas mãos e quis, ela não se opôs, mas eu não consegui. Seguimos para sua casa. Fiquei atordoado e já grogue pensei: então uma mulher bonita não me dá tesão? A dama de negro ei... será da cerveja, será por gostar da Maria? E então, Joana diz: olha, a minha casa é ali, eu vou à frente, e deixo a porta encostada. Daqui a cinco minutos, entra e fecha a porta contigo. Ok, ela deseja-me, o meu falhanço há pouco não a perturbou porque talvez prefira o conforto de sua casa... e eu acabo por falhar ainda durante umas horas, ela prepara-me um banho para eu relaxar, deita-se lá dentro do comigo, comemos, fumamos e voltamos para ouvir Chet Baker, ela tem um cedê. E finalmente consigo... la bela dona, la dama de negro, la Joana dá-me carinho e confiança e eu apercebo-me que as mulheres não são todas iguais e que algumas sabem atrair o homem que desejam e quando desejam, sabem falar-lhe com palavras ternas quando ele mais precisa de confiança, a Joana não precisou de se borrar sexualmente para que eu finalmente me conseguisse pôr de pé e também não desistiu de mim insultando-me e tal, ela simplesmente falou de si, falou de Ricardo Reis e de outros poetas, não perguntou nada, foi falando e tocando, e deixou que eu ouvisse a sua voz e lhe tocasse e a ouvisse e eu esquecesse a maria tão longe que, mesmo sendo minha, ainda tinha medo, e depois navegámos pelo rio acima ao som do Fausto. Fim.
E o que aconteceu à rosa que nunca lhe enviei? Após lhe dizer que rescindia com ela, vi Joana poucas vezes mais durante o ano seguinte até que ela se mudou de cidade. Hoje sinto pena de não a voltar a conhecer e de não lhe oferecer um novo buquê de rosas. Hoje sinto pena. Hoje que me respeitam mas não me querem. Mas também há que pensar em Maria. Não a podia desonrar.
Então qual é a razão da zanga com Maria ontem?, qual o porquê da discussão? Porquê? Porque se lhe dissesse que há outras mulheres mais bonitas que ela... e, como é óbvio, não lho disse porque Joana também não me quer mais, no entanto deveria ter perguntado... e hoje, neste momento, pergunto porque sinto paz quando a beijo neste ecrã, continuará o conforto a ser causa do meu amor, será o medo de procurar um novo amor, descobri-lo outra vez após já o ter perdido, eventualmente nunca o encontrar e ficar sozinho?
Fica a questão para o leitor indrominar.
'

Claudio Mur

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Ária cigana de Pablo Sarasate

dedicado a quem tem medo de mim
ou aos paladinos de blog que vivem pensando em Rasputines de tinta a óleo,
deixem mazé de ser duros de ouvido.



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

How do you deal?

they say it's Karma
but you're one of us
so
roll on brother play on drummer sing all you lovely sister
against those white coloured conservatives and rich women



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Curto largo o Simplício e o modo bondoso como tratou a Simplícia...

https://imprensafalsa.com/individuo-leva-sempre-uma-questao-a-mais-para-quando-o-operador-pergunta-se-ha-mais-alguma-questao-em-que-ele-possa-ajudar/

Simplício ainda não ligou para a sua companhia de seguros pois não arranjou ainda uma questão suplementar, para quando o operador, no fim da chamada, perguntar se há mais alguma questão em que ele possa ajudar.

Recorde-se que os operadores dos ‘call centers’ perguntam sempre, no fim, se há mais alguma questão em que possam ser útil. “E eu dava-me pena dizer que não, maneiras que comecei a levar sempre uma questão extra”, explica Simplício, que começou a guardar questões num saco para estas ocasiões.
“Acontece que se me acabaram as questões, tenho de arranjar mais”, lamenta.
O Imprensa Falsa teve oportunidade de assistir, há dias, a um desses momentos. Simplício estabeleceu contacto com o ACP, por uma questão relacionada com um problema. “Existe mais alguma questão em que eu possa ajudar?”, perguntou a operadora, no fim do telefonema.
“Existe, sim senhora. Muito obrigado por perguntar. Ora bem, quantas horas são agora em Brasília?”, perguntou então Simplício. “Cinco menos um quarto”, respondeu a operadora, visivelmente emocionada.
“Já estamos à espera do não. Passamos o dia a ouvir que ‘não’, ‘está tudo’, ‘era só isto’, por isso fiquei muito comovida quando o senhor me pediu para lhe dizer as horas em Brasília”, confessa Simplícia.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Duo Maravilha


'Duo Maravilha'
óleo sobre tela
40cm por 40cm
2019
ZMB a partir de Jean-Michel Bertoyas

Este trabalho é uma versão de uma ilustração de Jean-Michel Bertoyas
que está incluída no livro Vampyr publicado pela Timeless em França



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O nosso corpo amassado com terra é a luz dos céus.
Os anjos têm ciúmes da nossa penetração.
Tão depressa a nossa pureza torna ciumentos os espíritos celestes,
Como os demónios fogem, longe da nossa impureza.
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Jalal -Al -Din Rumi

em 'Rubaiyat, Odes à Embriaguez Divina'
versões e prefácio de Zetho Cunha Gonçalves
edição Maldoror

domingo, 2 de fevereiro de 2020

A propósito de qualquer coisa…

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A propósito de qualquer coisa…
Qualquer coisa como a dama de negro que acabo de ver entrar no Café PassaTempo, hoje reabilitado, remodelado e tornado num café fino de arquitectura barroca e café a duzentos escudos. Longe vão os dias da má clientela e das rusgas policiais. Antes de toda a gente ser intimada e ir arrotar os costados para a pildra, antes do imóvel ficar devoluto, o café era conhecido na gíria dos índios por passa em pó. O T do letreiro tinha sido apagado com o tempo mas era um sítio excelente para concertos de música subterrânea. Nos seus primeiros dias de universidade, C lembra-se de passar pelas paredes em ruína do PassaTempo e ainda ver os cartazes anunciando o herético triple joint: um concerto de Lucrécia Divina seguido de Pop dell’arte e, para terminar, os Mão Morta, na cave. Isto no tempo em que estes se cortavam com lâminas em palco e os Pop beijavam dragquínes. Eram estas as notícias musicais que começavam a chegar pelos jornais à consciência de C e a ele parecia que tinha nascido dez anos atrasado. Agora, o Café PassaTempo era um estabelecimento para executivos no rés-do-chão onde os caloiros podiam ir cheirar a arte do negócio e sentir que o futuro, esse seria deles. A cave era um dancíngue privado onde antes havia pipas de vinho e almas em formol e, no primeiro andar, ficavam os alojamentos da dama de negro, os primeiros que ela habitou. C conhecê-la-ia no futuro como a Joana que moraria na Vitória mas, agora e por enquanto, ela era a dama de negro que entrava no café. A dama de negro era o mistério que todos gabavam e que ninguém tinha.
C está ao balcão e repara, olha para ela e ela olha para ele e vai-se sentar nas mesas ao fundo. C volta a prestar a sua atenção a Maria e começa a dizer: falávamos de fiéis, Maria? Digo-te isto, sinto a necessidade não totalmente abstracta de desequilibrar a balança da minha vida socioemocional. Percebes? Uma balança. Este conceito de balança não balança permanece ainda estático para mim, eu não balanço, a minha mente não oscila entre dois pólos, eu sou polar quando queria ser circular, oscilar, pendular, bipolar... e não, eu só tenho um pólo, um eu e só tenho o eu do espelho com quem dialogar. E o eu do espelho não serve de segundo pólo nem de segundo prato na balança, não gosto de me sentir um urso e pentear apaixonado a barba ao espelho, preciso de outras fontes de inspiração, outros estímulos, outros eus que não eu, outras consciências, personagens com quem dialogar, com quem discutir ideias. 
Conta-me uma história, diz-me ela sonhando e desviando o assunto. Quando nos conhecemos, tu prometeste contar uma história diferente todos os dias... C?, ouve... conta-me uma história... 
C ignora Maria e continua: sabes qual é a verdade? Sinto-me uma criança por detrás desta aparência. Isto por nunca tive pontos de referência, na juventude não havia pessoas, só havia imagens válidas e sustentáveis na televisão, algumas na rádio, na vida real só havia imagens perdurando com um significado obscuro, esotérico à laia de Bruno... e depois hoje há este B estúpido que nos persegue... é, aquele gajo tira-me do sério, aparece na foto da audiência de todos concertos... foda-se!, eu explico melhor, por exemplo, quando entras no teu talho preferencial, olhas para a arca congeladora, perguntas a como está a carne hoje e pedes uma meia dúzia de bifes de porco, diz lá se não gostavas que ele te cobrasse menos?, e isso é tão fácil de conseguir, nem tem nada a ver com ética ou a falta dela, tem tudo a ver com querer perder ou gastar menos.
Não percebi patavina do que contaste. É essa a tua história?
Err... conheço um gajo que quando lhe chamam de egocentrista, ele considera o dito como um elogio e não um insulto, mas isso é porque o J é alienado ou tornou-se um alienado, ele nem sabe o verdadeiro significado de egocentrista, ele diz que é egocentrista mas não egoísta, mas é ele que não pesca nada, ele de tanto se humilhar perante os outros na sua tentativa de arranjar cada vez mais trocos para comprar cavalo, ele que nunca roubou, ele que nunca foi paneleiro como ele diz, ele que nunca foi prostituto para obter dinheiro para a janada dose de j, ele que vai comer a sopa dos pobres e no caminho pede a todos os que passam com olhos vermelhos e lágrimas e obrigados e deus-o-abençoe, ele J já perdeu o eu, está sem consciência, ele não vê ninguém ao espelho nem vê já o próprio espelho, e por isso se não tem eu e é alienado não pode entender o eu de outras pessoas, entra em choque com elas, quer que o seu sem-eu se torne eu pelo simples facto de ele o dizer e de o dizer maior que o eu dos outros. o seu egocentrismo é uma tentativa de existir, porque ele de facto não existe, ele é um nabo, e depois é talhante, é um carniceiro. 
Mas todos somos assim ou não?, essa é muito curta para mim, explica-te.
Imagino-o a caminhar com uma faca na mão e na outra os teus bifes tenros. Ele tenta avaliar, comparar o bife e o seu preço de modo a vender-to no acto e tu ficares satisfeita ao ponto de voltares lá outra vez. Ele corta do lombo de porco, pousa a facão e coloca os bifes no prato esquerdo da balança, ele é uma balança, ou melhor, é o fiel de uma balança, no prato direito coloca um peso enferrujado. Repara que não é uma balança electrónica, ainda não é dessas que vimos anunciadas na tevê como as novas maravilhas da técnica de pesagem, o J é antigo, não está a par das notícias e muito menos tem dinheiro para reinvestir o talho com equipamentos topo de gama. Por isso, o J é o fiel de uma balança antiga do tempo dos sixtís na aldeia, uma balança com pratos enferrujados e pesos enferrujados. Por isso, suponhamos que a balança se desequilibra para o lado dos pesos, não gostarias nada pois não?, que farias?, eheh e então, ele retiraria esse peso e a balança tenderia para o teu lado e tu?, ficarias um tanto mais contente?, não, talvez soasse forjado, então ele colocaria um peso maior mas igualmente enferrujado e andaria nisto em movimento harmónico igualmente enferrujado até toda a ferrugem ser retirada e o preço ser justo... mas quanto é, qual o preço justo?, quais as verdades fundamentais e quais os equilíbrios, quais os valores que estão neste jogo do balança não balança?
Sim... e dai? Élou... tásme a dar seca!
C continua, eu continuo o meu discurso, tento perceber-me ouvindo a minha voz e tentando explicá-la o melhor possível à minha namorada Maria. Continuo o raciocínio: penso que para encontrar as verdades fundamentais, devo procurar mudanças radicais mas... o que eu não sei é onde as encontrar, aqui no PassaTempo vem muita gente mas é tudo pessoal com o qual nada se aprende, sinto-me aprisionado neste sistema... 
Tu devias era mudar de vida, largar essa literatura mal cheirosa que andas a ler e dedicar-te às aulas e aos laboratórios, em vez de estares aqui a parlar de bifes de porco cortados por um desgraçado que não tem onde cair morto.
Minha querida!, vamos lá ver se me faço entender: não existe verdade no equilíbrio quando se sabe que se atinge sempre o objectivo sem pagar nada. A verdade para mim está no oscilar entre os dois pólos do circuito electrónico, andar de um lado para o outro com descargas de frequência nos condensadores. Para te dizer isto é porque hoje fui de manhã às aulas, revemos a lei da impedância, falámos em bobines e naquilo que, nas traduções brasileiras que me chegaram às mãos, se chama de capacitores. A balança é magnética e, de um lado, estão os teus bifes de porco a minha felicidade e, do outro lado o preço correcto, o meu preço.
Mas que dizes?! Tentas assim comprar a felicidade?!, pergunta ela oscilando entre desilusão e raiva. As tuas palavras, C, são ambíguas, não as percebo, têm algo de gongórico. Ouve-me, a felicidade não se compra, ela existe por aí à espera que a agarrem, chama-se a isso oportunidade, não custa nada, é só esperar e ir fazendo pela vida. Acima de tudo, não desesperar.
E então, Maria vê C a trilhar os mesmos caminhos de seu pai, lembra-se que o pai tentou comprar aquilo que podia ser para ele a felicidade, ou como ele próprio admitiu um dia, a ilusão de felicidade, porque não? Maria recorda as consequências, as conclusões foram o que foram, o seu preço justo foi o seu internamento compulsivo no Centro de ReEducacao Alimentar de Derza. Maria ficou sem pai em casa. 
Maria transtorna-se com este reviver do passado e grita de súbito: fica-te pelo que tens e não entres em promessas!
Está bem, digo eu, a felicidade não se compra, atinge-se, mas a felicidade tem de existir como um processo, durante esse processo é necessário oscilar deveras entre quase tudo, como chegar ao cimo da escada, ao último degrau. O problema é que não sou budista e estou farto de esperar!
Ela, triste, pede que ele lhe conte outra história, em parte por querer mudar de assunto, pois, ultimamente, tem ouvido tantas histórias meditativas e depressivas que tou que nem posso...
E eu sabes?, nem sequer oscilo ainda. Como posso atingir o equilíbrio?
Contas-me uma história?
Não, hoje não.
Porquê?
Lembro-me do artista de circo que está em cima da corda sempre a analisar porque não cai, sempre a tentar chegar ao fim da corda, ao preço justo. Então, digo a Maria: hoje, não tenho uma história. Estou aborrecido e, às vezes, a história é o meio de explicar um acto. O problema é que talvez se ligue mais à história que ao acto, não sei bem o que achar desse tipo de reacção, não será certamente positiva. Porquê contar a história então?
Estás aborrecido comigo, é isso?
Não, contigo não, com nada, é isso, estou aborrecido com nada.

É apenas natural que esteja aborrecido com nada. É quase fundamental que se esteja aborrecido, mas sempre com o espírito aberto para fazer coisas e merda, muita merda, a maior parte do tempo faz-se merda e, uma vez, somos apanhados pela bófia a tentar desaparafusar uma sinalética nas traseiras de um banco. De registar o espectáculo: dois mânfios imberbes e anarquistas na rua junto ao rio de Derza, noite cerrada, faróis que se acendem e motor que acelera, em cinco segundos temos a bófia em cima de nós configurando um assalto a um banco, e nós com um canivete suíço apenas, tudo por causa de uma pequena e branca placa de plástico dizendo qualquer coisa como Fechado. 
Deixam-nos ir embora sem precisarmos de ir à esquadra, tão infantil tentar roubar uma placa, sem dúvida, apenas para rivalizar com o sinal de trânsito retirado dos acessos à auto-estrada, que dão um bom instrumento de percussão, e com os crucifixos roubados do cemitério, que estão na minha parede pregados e invertidos, acto que excruciará um militante da jota cds que mais tarde me negará um emprego na sua empresa dizendo: tu és sobrequalificado, só te posso pagar cento e vinte. Quando eu digo por mim tudo bem, ele diz vou pensar, vou dormir sobre o assunto.
Sim, é natural estar aborrecido com nada como os melancólicos e a eslava compaixão mas sempre com a caneta e o guardanapo de papel, ainda o pastel de carne e o café, a pastelaria e os fetiches alheios pelas belas e jovens empregadas, eu começo a desenvolver os meus próprios fetiches por damas que trabalham em tabacarias oferecendo ao público um verdadeiro serviço nacional de fumo... mas sim, sempre a angústia de que estamos contra o mundo e o mundo todo contra nós, um dia... quem sabe, faremos algo grande, seremos vistos em toda a cúpula do alfa beto, em toda a cidade do senhor do colarinho branco, as noites do fecho dos alfabetos por todo país do colarinho branco por causa das propinas serão pequenas quando comparadas com o que nos está destinado, sim!... nos viremos nas revistas de arte e literatura, ser-nos-ão feitas entrevistas e nos responderemos coçando a mosca um pouco, plagiando a pose cool do Eduardo Prado Coelho. 
Nessa altura, eu apresentarei a súmula dos loucos anos vinte, é mais ou menos assim: a atitude individual é como o Kill Yr. Idols dos Sonic Youth, não quero saber dos grandes, não quero saber se o Saramago e o Eugénio de Andrade vem conferenciar no auditório da universidade, a gente ignora, eu nunca sequer li Saramago e, outros também não mas talvez por razões ideológicas, não quero saber a polémica das cartas de amor do Manuel Alegre, quero lá saber dos amores de um político, pff!, alguns colegas dizem: não!, estás errado, é historicamente importante.
Sei quem o público considera grande mas não quero saber deles, não são sequer ídolos, são apenas estátuas e já não pessoas, nem sequer se põe a hipótese de se pensar se se gostará de com eles trocar palavras, isso não é comigo digo-te, uma vez o Michael Gira veio dar uma sessão de prosa ao Carlos Alberto, eu fui ver, gostei, havia uma banca com livros e cedês dele, e eu comprei um livro de prosa dele, disseram-me que se quisesse esperar pelo autógrafo ele estava quase a chegar. Mas eu não esperei eu quase fugi, não quis saber. Esta é a minha atitude. 
Ou era naquele tempo. O Saramago não me interessava, até que um dia li O homem duplicado e As intermitências da morte. E fiquei pasmado, surpreso, como foi possível eu ter ignorado o Saramago?!
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Claudio Mur

Rosebud

Não conheço pessoalmente a alexandra g. Apenas troquei em tempos comentários e posts no seu blog e alguns emails pessoais. Tal como não conheço a flor que escreveu o blog O mundo da G.
Mas G é a letra do primeiro nome de uma mulher que foi minha namorada há quase 25 anos. Esse namoro durou apenas três meses mas, após a ruptura, ela ficou durante muitos anos na minha memória. Foi o meu maior amor. Foi um amor tão grande que me achei culpado do resultado final. E me achei culpado de querer escrever um livro que lhe pudesse explicar o que, para mim correu mal entre nós. Quis que ela percebesse o quanto ela foi fundamental para mim, para que eu deixasse de ser um ser fálico-agressivo e tentasse vir a ser uma pessoa boa no futuro, uma pessoa que ajudasse o seu semelhante. Esse livro começou a ser escrito em 1997 antes de terminar o meu curso superior, o ficheiro foi deixado num computador sem password a que mais gente tinha acesso, e quando voltei da minha primeira experiência profissional na Irlanda, comecei a intuir frases na boca de conhecidos que me diziam ter lido este ficheiro. Esta semi-real violação de palavras que não estavam fnalizadas, originou sentimentos de paranóia e revolta, é como se nos tivessem lido o diário íntimo. De modo que em 1999, já noutra experiência de trabalho voltei ao texto e escrevi e revisionei a base já escrita, dei-lhe mais umas quantas voltas, começando a ficcionar, a distorcer a cronologia, os factos, a tornar tudo mentira. De modo que perdi a noção da realidade e a minha mente estilhaçou-se e fui internado em 2000.
Acontece que a minha ex-namorada G nunca aceitou o meu livro, nunca o quis receber ou sequer ler, lembro-me que o último email que me enviou dizia para eu a considerar apenas uma personagem. Eu senti que todo o esforço era em vão e que ela me condenava ao silêncio, eu nunca mais ouviria a sua voz. De modo que decidi doar o livro à internet, arranjei uma lista de emails e durante dois meses fui enviando emails com os capítulos em português e em inglês em 2000, e mais tarde em 2002 imprimi 30 cópias do ficheiro em papel a4 e ofereci-as às pessoas do bar que frequentava na altura.
Com tudo isto passaram-se anos e três internamentos mas o ficheiro não me satisfazia, ia revendo, acrescentando palavras e frases, corrigindo pontuações e ortografia, ainda hoje o ficheiro está cheio de erros. Arranjei um site online e coloquei o ficheiro em pdf em 2008, os capítulos foram sendo lidos ou descarregados. Em 2013, coloquei-os no archive dot org.
Verdadeiramente G só deixou de me ocupar a cabeça quando conheci a São em 2008 num hospital psiquiátrico. Finalmente tinha encontrado uma mulher maluca para eu, um homem maluco. E com ela, tornei-me homem, deixei de ser a criança criogenada apenas por volta dos meus 35 anos de idade.

Foi quando descobri que a letra G é uma referência para muita gente. Jonh Berger tem um romance de nome G (embora este G seja um homem), os Ornatos Violeta têm um vídeo onde uma frase de amor aparece grafitada e dedicada a G, é como se a letra G seja ela própria uma personagem, uma poligénese literária segundo a definição de Eco no livro A passo de caranguejo, uma sincronicidade de Jung, uma paranóia, uma semelhança propagada acausalmente.

Por isso, repito, a G dos meus livros, que não estão publicados oficialmente em papel, não é nem nunca foi a alexandra g nem a flor nem mesmo a redonda (cujo nome também começa por G) que tem o blog A Outra.
A minha G é um segredo, um mistério do qual sentir inveja. É tudo.