'
H Capítulo VII
John Zorn: Blue
Einstuerzende Neubauten: Zeichnungen des patienten O.T.
Sensivelmente pela meia hora da tarde, uma sineta ressoa no CReEA, ou como se diz, na prisão. Esta sineta indica a hora de almoço. Ão ão dêem-nos pão,
tamos cão fome. Então, como num bom filme cómico construído com a sobriedade que se exige, as portas das selas individuais batem e, por elas, saem os presos que se agrupam em fila. Um policia sinaleiro
dá o sinal de partida assobiando e a longa marcha começa ao som de Vangelis, parece aliás a longa marcha dos espermatozóides em direcção ao útero.
Inaugurada há pouco mais de duas décadas, esta prisão é uma monstruosidade em permanente renovação. A delinquência da nossa sociedade
coexiste, como se sabe, com o estabelecimento da sociedade das letras, o vulgar alfabeto. Todos os dias, novos membros aderem a esta fraternidade do Alfa Beto dirigida pelo homem do colarinho branco, sempre em reunião
no café Gungunhana com os melhores engenheiros e arquitectos da praça, sempre em linha com a voxpop e sempre com o intuito de proporcionar as melhores condições aos iniciados e, também, poder
projectar novos pavilhões. O homem ouviu dizer em opiniões lidas nos jornais que a nova moda serão os barcos-prisões. No entanto, estas metafóricas ideias são habilmente corrigidas
e adaptadas às regras do governo em vigor, sim senhor ministro, e do caos nasce sempre a luz. Deste ponto de vista, a prisão não passará aos olhos dos críticos de um complexo desordenado mas os
apaixonados falam de uma desordem seguindo uma certa beleza, uma certa grandiosidade espacial. Belo modo este, o de exprimir a ironia de um sistema, chamam-lhe agora de sistema hipermodernista.
Vejamos, então, um instantâneo captado às doze horas e quarenta e um minutos da tarde mostrando uma vista aérea das imediações do refeitório:
um longo átrio improvisado onde bizarras construções piramidais se confundem com gigantescos agás e se misturam com gigantescos círculos encerrando gigantescos agás, certamente helicopteros,
um átrio em hexágono. Num vértice, uma boca do inferno escavada em plena rocha granítica constitui a entrada que se pretende atingir. Trata-se já de uma figura em movimento, os outros vértices
do hexágono tingem-se de cor preenchendo-se sucessivamente de formigas, de carreiros com fome que pretendem almoçar.
Vou num destes carreiros e não gosto da comida da prisão. Quase sempre moelas com massa. Preferiria cozinhá-las eu próprio mas... não se pode assinar o nome
no livro amarelo porque... senão... cala-te bem caladinho e assobia para dentro como se estivesses a aquecer a mãos. Todos temos saudades de casa e da comida da mãezinha e eu, às vezes, recuso-me
a almoçar aqui, poder-se-ia talvez falar de revolta, de cuspir no prato que me oferecem grátis, de fúria de viver mas, no entanto, ainda me considero um homem viril e caprichoso, sou casmurro.
Subo os degraus de acesso ao refeitório acompanhado de centenas de reclusos mas vou sozinho, olho em frente, olho para os lados, reflicto movimentos sem caracter adaptativo,
movimentos desprovidos de significado. Todos conversam uns com os outros, todos falam de futebol e da excelente vitória do Porto, do postal que a filha lhes enviou por alturas do último natal, destas e doutras coisas
tão importantes no fundo mas às quais não consigo achar interesse algum, por exemplo, eis o que agora ouço:
Ora viva! Não tens cinco centavos? Não, mano. Acaba de dizer mano número dois. Fuma, sobe as escadas e entra, recolhe o seu tabuleiro e senta-se no seu lugar.
Mano número três entra e fica de pé à espera que chegue a sua vez de ir levantar o prato e a sopa. Entretanto chega mano número quatro: Atão
mai frango!
Hoje é feijão fradinho, não tens por acaso trinta escudos?, pergunta mano número três ao mano número quatro.
Tenho.
Tenho.
Diz este e vai ao bolso e dá uma moeda de cinquenta a mano número três. Este recebe a moeda e pergunta:
Queres os vinte de volta?
Quero.
Mano número um pergunta a mano número dois se ele quer trabalho, mano número dois devolve a pergunta e diz:
Tu tens trabalho?
Não, porque não quero!
E de que trabalho falas?
Vender isqueiros.
Não, arranja tabalho para ti que eu arranjo para mim!, diz mano número dois.
Queres ir para o parque da igreja arrumar uns carros? Dá uns trocos...
Estou já perto do princípio da fila. Eles falam e eu ouço. Seria uma ironia escrevê-lo mas... nenhum destes manos brinca aos pobrezinhos nem se chama espírito
santo. Hoje em dia já não ligo aos meus velhos heróis. Ainda ontem, no Armenia com aquele pessoal, afinal há aqui muita gente conhecida, conheço-os a todos de gingeira. Fomos ao jardim fumar
uma bolota, quero eu dizer, uma unha de bolota... e aquilo era bom e toda a gente o dizia, todos se hilariavam e gargalhavam e eu... com a moca dos comprimidos a sobrepôr-se, eu estava como que colado, da minha boca
talvez caísse baba mas nenhum som de palavra, nenhum pensamento nem um só pensamento se formando, a minha cabeça como um bloco de cimento, nihil.
Digo a mim próprio baixinho que tenho de comer: é disso que preciso porque senão acabo por sentir a falta de substrato e eventualmente desfalecer, bem... a primeira
coisa a fazer é escolher um tabuleiro que esteja limpo, hum... com este vírus, bem... já está, bem agora os talheres, hum... paciência vão mesmos estes, hum... que bom, é mesmo isto, um prato de feijão frade
com atum e ovo, a minha comida preferida... trato agora de arranjar um lugar conveniente, sinto calores frios, algumas tonturas, nada de muito importante.
Estou já sentado. À minha frente, duas filas horizontais de mesas e a vidraça por onde entra o sol, os manos que almoçam parecem negros recortados em contraluz
e... ahahah os carecas parecem que têm uma aura de santo no cimo da mona.
Ao fundo, o sol chama-me. À minha frente, um homem, que poderá ser a minha consciência aparentando a meia idade, pousa o seu tabuleiro na mesa. Mal lhe consigo ver
a cara por causa do sol, ele estende a mão com um sorriso nos lábios e diz: Para os meus amigos, o meu nome é O. Senta-se à minha frente.
Quando ouço o seu nome penso: é um jarreta de prof, tem mesmo o aspecto terminal, fala mais do que faz, já se sabe. De qualquer modo, espanto-me e quase me esqueço
com tamanha frugalidade: onde é que já ouvi este nome? Olho para ele, aprecio o fato impecável, o cabelo limpo, as unhas limpas... mas de onde veio este tipo? Quando observo o modo como soletra Ooo...
pergunto-me se não será O...nanista? Respondo, tentando um sorriso amplo de respeito que, noutros tempos, seria irónico. Os tempos, hoje, são diferentes, é mais disciplina e menos bolos:
Muito prazer.
O sol, no entanto, continua a chamar-me, convida-me aliás a fixar o pensamento para lá desta estufa: A dama que eu deixei, o gajo que ela deixou, quero que fique calmo,
quero que fique como amigo, quero recordar os momentos calmos, lágrimas nunca mais, guarda tudo de modo amistoso, guarda-o bonito, guarda-o apenas por favor!
Quando acordo, largos momentos depois, é hora de olhar para o tabuleiro mas reparo que O não come e tem, aliás, as mãos em cruz apoiando o queixo, olha persistentemente
para mim. Pergunta-me:
Há quanto tempo estás aqui, I, eu sei o teu nome? Eu cheguei há um mês e tenho reparado em ti, tenho aliás tentado falar-te, vejo-te sempre isolado,
sempre calmo ou aparentando calma, diz-me que idade tens?, topei-te logo ao primeiro olhar, digo-te que não é bom para um rapaz se pôr com esse tipo de ideias, não, andas a ler demasiado os malditos.
Acredita em mim, repito-te, não é bom para um rapaz se pôr com esse tipo de ideias, não. Acredita em mim, fala-te um homem com grande experiência, além disso se fosse para alguma coisa
necessário... poder-te-ia dizer que sou doutorado em filosofia.
Engulo duas garfadas de feijão e pergunto num tom calmo, que é o reflexo exterior da minha identidade actual, quais são as ideias a que se refere mas, deixando
transparecer bastante aborrecimento, natural... um estranho aborda-nos e diz-nos de rajada uma coisa destas...
Acredita-me meu rapaz, diz ele, agora, naquele tom meloso que quase nos põe lágrimas autênticas nos olhos, acredita no que te digo, não me tomes por um maluquinho
qualquer, não... não faças essa cara, eu sou a voz da experiência e, em mim, podes ver os teus defeitos e o teu futuro, olha... vou contar-te um segredo sem importância e que quero que fique,
por favor, entre nós, ok?
Desta vez, o gajo passou-se das marcas!, confidências a esta hora, se calhar vai confessar matrículas, alguém sabota a melancolia dos meus meios dias, da minha meia dose de feijão e atum, alguém
pretende torná-los um deslocado encontro social, não pode ser não, nem pensar!, então penso:
Eu sou o padre negro que vai ver o mar, armado de duas magnum 44 e uma Leica, acompanhado de dois sacristãos a quem pago a tosta mista e o café, a quem me escapo do passeio
no pontão, sendo neste preciso momento apelidado de refugiado, talvez pelo blusão de cabedal e por ir fumar a minha ganza para as dunas enquanto preparo mais um poema para ela... e então disparo um raio
de energia para O de modo a ionizar os seus electrões e para ele ir pregar para a freguesia do lado: Mas quem é você para se pôr com esse tipo de coisas?, pensa porventura que estou interessado em
ouvir os seus disparates?, deixe-me almoçar se não se importa...
Ouçam... este gajo é demais, para contrastar com a minha atitude, larga o garfo com muito cuidado e com muito soupless agarra-me o braço com a manápula cheia
de ossos, impede-me de comer, e como que dizendo: acalma-te meu filho tem maneiras; diz-me então: Homicídio em primeiro grau, sabes o que significa?
Olho aquelas mãos, enormes, cheias de ossos, engulo um pedaço de ovo mal cozido, olho para o sol e, por uma grande coincidência, uma nuvem atravessa, digo agora
com mais calma e melhores maneiras: Pode tentar explicar, se fizer o favor?
Pois muito bem, nada de muito grave... um pequeno fogo numa igreja, umas dezenas de fiéis, padres e sacristãos incluídos, nada de muito mais... portanto...
Sim, nada que não se tenha visto por ai os pontapés, digo-lhe ironizando entre dentes mas começando a interessar-me. E porque fez tudo isso que diz que fez?
Sorri e responde: a idade meu filho, a minha idade... a idade não perdoa, continua num tom sonhador e algo despropositado, existem alturas na vida de um homem em que se tem de
tomar decisões importantes, eu talvez não saiba perder!, e O bate com força na mesa: ou se morre esquecido ou se vive na memória de toda a gente... mas também escrevi livros.
Paro por uns instantes de mastigar, olho para o prato, olho para o lado, à minha frente e numa pequena caixa rectangular continua o sol, pego no copo, bebo um pouco de água,
engulo em seco, continuo a mastigar e no fim pergunto: Não se importa de explicar melhor?
Desiludes-me meu rapaz desiludes-me.
I tem um flash, acaba por lembrar-se de onde conhece O, afinal ele é mais que mitico, ele é mitológico, ele é mitómano até mas dirige o departamento,
está a caminho do Parkinson infelizmente ou da direcção da secretaria do alfabeto felizmente mas as melhores revistas estrangeiras falaram dele, recordo-me de ler a prosa, transcrevo-a:
O espelho, the Unix Review says: a sua mente observava a expressão de um rosto que dizia: sempre pensei como seria
óptimo se pudesse ser invisível, um alecrim em frente de um narciso, e olhar o diabo nos olhos, o diabo que me acoita o sonho.
O quadro, the Data networks says: a fotografia de O: certo ar tocável e bizantino, óculos de aros grossos,
bárbara rude e grisalha olhando para fora, ali à sua frente dizendo que as palavras já não valem nada, já nem sequer salvam, podemos dizer não, não tem nada a ver, eu é
que ainda não consegui explicar as alucinações, que se podem ter ao olhar para certos livros de electromagnetismo, nem consegui entrever um reco que fosse das complicadas relações eliptico-estruturantes
entre as várias personagens, as palavras deixaram de ter valor, já nem sequer se fala delas, já tudo não passa de velha retórica nazi que devia estar gasta mas vive na sombra e no desejo
de voltar à vida, que mudou o significado das palavras e as anulou, as palavras não valem nada, só os actos poderão ter algum valor, é preciso fazer, ouviste?, mas saber o que fazer, como
fazer.
O levanta-se e, antes de virar costas com o tabuleiro nas mãos, diz: Não te preocupes meu filho, tenho confiança e grandes planos para ti. Entretanto, olha, escrevi
uma carta e, antes de ta ler, de ta recitar como se ao mesmo tempo a escrevesse no portátil ph7, vou-ta explicar, dar-te um prólogo, ela representa uma encenação de um acto de amor e um manifesto
político acompanhado de uma fotografia do Luis Bunuel e da Catherine Deneuve. Se perceberes o seu conteúdo, deverás encarar a carta como o poema que, às vezes, te apetece escrever dedicado à
secretária da Sociedade Alfa Beto Secção ph7 do CReEA, um poema de amor tão violento que acciona o fogo amigo de a fazer desmaiar e então... seria melhor não a dizer porque as pessoas
vão pensar merdas erradas mas que se lixe!, eu tenho o direito de falar e de peidar setas envenenadas, vou dizer:
Só para que se note, J eu próprio, eu sou o autor deste relato, eu o condenado ao desterro nesta prisão de alta segurança e onde como sempre existe um letreiro
a dizer: projecto financiado pela sociedade das cebolas com lâmpadas e mais uma de merda de porras que os porros estão ao preço da platina... mas que nunca diz quando vai acabar e quem vai ficar com o portátil envenenado e quanto isso vai custar ao meu
pobre bolso e ao de todos os outros pobres e às duas ou três mil pessoas que trabalham na sociedade do alfa beto que vão acabar em leiófe e a todos os que trabalham no duro de sol a sol para levar a comida para os filhos ou para os velhotes, para que o país
progrida e para que outros mais manhosos possam ter câmeras pos-security instaladas a vigiar os migrantes precários a distribuir gel desinfectante aos camones e verem que eles trabalham mesmo assim para que os manhosos não sejam atingidos pelas pedradas de quem sabe o que, verdadeiramente caros espectadores, se não deve saber mas adiante... e encerre dentro de quatro paredes espelhadas e limpas todos
os dias por belas empregadas, daquelas que vós nós, os presos do antigamente se roíam ao vê-las em programas da eurovisâo, e deles e também de maluquinhos como eu que chamam touras às gajas e resolvem
então estripar o cerne do mal da sociedade que, para o caso e para disfarçar, era apenas uma noblíssima mestra da comunhão da minha paróquia. Essa dama recusou os meus salamaleques e despachou-me
com os seguintes cuidados, disse-me: sr. J, tenho-o na maior das considerações, você sabe... mas a sua idade não perdoa e, além disso, o meu marido dá-me sustento e alegria e tem um corno de rinoceronte. Ao ouvir
isto, mandei as favas às convenções e, herdeiro de Panurgo, esqueci-me do local sagrado onde estava e não perdi tempo, a santa custódia, que deus a tenha, claro credo abrenúncia, caiu-lhe
pelas bentas abaixo, vi assim o génesis nascer, não tenho remorsos de nada. Penso até que muitos hão-de concordar comigo, nao é coisa que se faça a um homem com letra grande, e depois
se a Sza Sza Gabor tinha oitenta e tal anos e arranjava muitos namorados jovens e belos, onde está a suposta igualdade de direitos?, ah!, sacana, recordas-me, o dinheiro, o infame dinheiro!, pois eu dinheiro tenho muito,
ouviste?, ou não fosse eu doutorado em teologia com um tese sobre os gnósticos de Giordanno Bruno e os Cátaros! Odeio todo o mundo!, isto é natural e não passa. A história do vinho
do Porto é a maior treta que alguém inventou e, depois, não tenho culpa de andar a ouvir Chet Baker nessa altura.
Desculpe lá, não percebi nada mas, em especial, a história do vinho do porto... é só para ocasiões especiais?
Não, o que não resultou foi mesmo o vinho do porto que era falsificado. De qualquer modo, o teu tempo terminou. Vejo-te ao jantar.
Olho e fico confuso, doutor em filosofia, homicídio em primeiro grau, padres e sacristãos, ah... é mais um exibicionista no meio de tantos outros, vou ter de levar
com ele, eu devo ser o espectador preferido, ainda me vai querer espetar e eu, para suportar autoridade de meia idade, basta-me o meu falecido pai, bah... não consigo comer esta merda.
'
Claudio Mur
Sem comentários:
Enviar um comentário