quinta-feira, 2 de março de 2023

Vou falar com umas pessoas

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Começara por ser simples empregada de andares, ou seja, naquele trabalho para o qual fora recomendada começara por fazer camas e limpar os quartos que a patroa da mansão alugava a turistas endinheirados vindos de todo o lado, Era humilde, trabalhava bem e concordava sempre com a patroa. Cedo subiu na sua consideração até se tornar quase amiga íntima. Quero dizer: a patroa apaixonou-se por ela e sequestrou-lhe os documentos, ela fugiu com a roupa do corpo para nunca mais voltar. Diz-me ela que a patroa telefonou para casa da mãe dela pedindo: -- Volta Shivana, volta. Mas ela não voltou e diz-me que a patroa morreu com o coração partido, literalmente falando, não terá morrido de velhice. E porque morreu, Shivana ficou com remorsos para sempre e assumiu o nome que a patroa lhe deu: Shivana do pau oco. 

Shivana não voltou à patroa porque não tinha paixão carnal por mulheres, e porque quando fugiu da mansão, encontrou na paragem da camioneta, segundo reza a lenda, um daqueles portugueses com mesmo muito e muito dinheiro que vão ao Brasil divertir-se. Como Ballard nos diz no relato das suas passagens por terras de vera cruz, as mulheres brasileiras estão disponíveis a amancebar-se com qualquer tipo que não cheire mal, com dinheiro que as mantenha e lhes dê um vida boa e as trate com respeito. Shivana designou-o de imperador e o imperador casou com Shivana e trouxe-a para Portugal, e a vida dela mudou para sempre.

Ao princípio, ainda trabalhou na área da restauração mas os patrões portugueses queriam molhar o pincel e quando Shivana foi fazer queixa à mulher do patrão, esta chamou-a de puta. O imperador ainda fez uma espera ao patrão mas não deu em nada. Shivana deixou de trabalhar, também não precisava, vivia num palácio, tinha cartão de crédito, viajavam frequentemente, o imperador tratava de tudo, Shivana não precisava de se esforçar mais, tinha uma vida de sonho e o marido pagava as contas, Shivana era fiel.

A vida de Shivana começou a mudar quando descobriu que o imperador dava para os dois lados, ou seja, andava enrabichado com um jovem estilista brasileiro, o imperador passava agora quase todo o ano do lado de lá do Atlântico longe dela, mas continuava a pagar as contas. No final de contas, Shivana embora deprimida por ser trocada por um homem, queria lá saber, interpretava aquilo tudo como mais uma mania de português. E continuou vivendo e desfrutando da vida boa e apanhando cada vez maiores carraspanas para esquecer que tinha sido trocada, e que não passava de um pedaço de carne que já passara da validade. Mas continuou vivendo até ao dia em que soube que o imperador tinha tentado coisas com a sua filha adoptiva, Shivana cortou relações com a filha adoptiva que mantinha no Brasil e jurou vingança: havia de encornar aquele português filho-de-uma-puta na sua própria cama.

Conheci Shivana por estas alturas no bar que ambos frequentávamos na zona nobre da cidade, eu morava num quarto e ela no palácio, morávamos relativamente perto um do outro e era habitual ela vir até minha casa beber, fumar, ouvir música e admito que também transámos ocasionalmente. Eu comecei a gostar dela e ela distraíu-se assim do imperador. Eu, pela minha parte, sonhei melhorar a minha vida e dar-lhe uma alternativa, queria até que ela se divorciasse para não vivermos escondidos. Mudei de casa porque fui obrigado, o senhorio vendera o prédio à câmara, quem no prédio estava a viver com contrato de arrendamento passou a ser inquilino da câmara, os ilegais como eu fomos quase despejados. Mudei. Mudei para melhor mas longe do centro, tinha agora melhores condições para a receber mas o problema eram os transportes, o metro só funciona até à uma da manhã, ela começou a encontrar outros pontos de interesse e a voltar para mim menos vezes, eu acho que ela me conheceu pobre e nunca pensou que eu seria capaz de lhe dar uma vida boa.

E eu talvez não fosse capaz disso mas estava a tentar. De qualquer modo, Shivana acabou por conhecer outro português que lhe fez igualmente muitas promessas como o imperador e ela acreditou nele, mudou-se para casa dele, ele passava a ser o novo pagador de contas, divorciou-se do imperador, assumiu-se com o governador, como chamava a este novo dono, até que as coisas começaram a correr mal. O governador tinha mentido e não era rico, era um pé-descalço com casa para morar e, ao contrário do imperador, é ciumento. Ameaçou pô-la fora de casa e pôs, eu recolhi-a por afinidade, eu precisava dela, ela mesmo não me dando carne, tinha restaurado a minha confiança e auto-estima, tinha apaziguado os fantasmas do meu passado e tudo apenas com o carinho, o sorriso e as palavras amáveis de Shivana. Shivana é poderosa.

A nossa convivência não deu certo, ela fez a paz com o governador e vive com ele desde então, arrependida de se ter divorciado sem um bilhete de regresso ao Brasil pago pelo imperador e tendo de viver na miséria dos favores do governador que, segundo ela: acorda para beber e bebe para dormir, e que quando está bêbado a insulta constantemente e quando está sóbrio diz que a ama.

Acresce que Shivana está gravemente doente e o que ela mais quer no mundo é voltar para casa da mãe, do filho e das netas, e eu acho que vou arranjar maneira de a ajudar a voltar, vou falar com umas pessoas. Eu não sei comprar um bilhete de avião mas vou arranjar maneira, sei de quem já fez vaquinhas no passado para bilhetes de avião. Eu vou arranjar maneira porque Shivana aqui não é feliz e não quero que morra sozinha neste país e longe da família. Os seus problemas de saúde foram descobertos quando numa saída copofónica com o governador ela teve um ataque cardíaco, foi de urgência para o hospital, trataram-na, mas os problemas voltaram: contínuas e fortes dores de cabeça, sangramento do nariz, e síncopes, desmaios na rua ao caminhar, esquecimentos frequentes de tarefas a realizar, fizeram-lhe uma ressonância e outros exames, começou a ser seguida em neurologia e psiquiatria, começou a ser fortemente medicada, diz-me ela na sua linguagem que a sua cabeça ganha muita água e que isso lhe dá as dores de cabeça, eu só comecei a perceber quando numa manhã ela me mostrou uma mensagem do hospital a lembrá-la da consulta nesse dia e que vinha etiquetada como consulta de neurologia -- paramiloidose. Consultei o doutor google e ele informou-me que esta doença não tem cura e é degenerativa. Geralmente, o teste do pezinho à nascensa detecta e permite tratar a tempo muitas destas doenças, mas há cinquenta anos no Brasil a mãe que a deu à luz não quis saber do teste e até a abandonou no balcão de um bar por ser uma bebé feia. Shivana foi recolhida pela senhora que hoje ainda chama de mãe e que dela cuidou e lhe deu um lar e uma família.

Shivana está lascada e até o médico neurologista desistiu dela, disse que não a operava porque ela poderia morrer na operação ou ficar paralítica mas a minha opinião é que Shivana fosse a um hospital privado e pagasse a operação o médico operaria e ganharia o seu dinheiro, assim não, desistiu dela, disse-lhe que ela poderá no futuro ficar cega, que os esquecimentos e as dores de cabeça vão aumentar e que vai ser cada dia pior e que no futuro não lhe dá mais consultas porque ela é um caso perdido para a medicina, diz também que a médica de família passará de futuro a medicação. Shivana disse que teve quase a insultar o médico por este ter dela desistido mas ela próprio desistiu, o médico revelou-se um insensível que não quis naquele momento saber da saúde mental dela, quase que lhe disse textualmente: você tem os dias contados. 

Shivana saiu do médico e entrou pela segunda vez numa igreja aqui em Portugal. Deus salvara-a de dois cancros retirando-lhe o útero, Deus haverá de me salvar, disse-me ela ao telefone. E eu aceito esta sua crença, nós humanos tratámo-la mal, que Deus se existir a salve.

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anonim@s do séc. xxiii


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