segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Uma bela mancha

 Um círculo vicioso. Se Picasso, numa das suas crises contra a pintura, se atirasse de uma janela, M. X... o coleccionador genial, diria: "Fez uma bela mancha", compraria o passeio e fá-lo-ia encaixilhar com uma falsa janela, por Z., o encaixilhador genial.


Jean Cocteau em «O cordão umbilical / Ópio», página 144

Tradução de António Gregório/Joana Jacinto/Ricardo Ribeiro

Edição de Sr.Teste Edições


quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Os residentes do anexo ideal


 

«Os residentes do anexo ideal»

desenho a lápis de grafite

50cm por 70cm

2024 ZMB

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Presépio Live

 três magnatas da arábia saudita, vestidos de cabedal negro, seguem uma sonda russa, verde e luminosa, até à faixa de gaza. estrelas a fazer de semáforos para deixar passar as três oferendas: gaspar leva acções dos balcãs, baltazar uns tijolos do muro de berlim e belchior a cura do vírus de jacob. um gigantesco abrigo nuclear construído para o evento, capacidade para um milhão de espécies minimais. uma vaca sagrada indiana e uma outra holandesa de reserva. o burrico do sancho pança em ouro maciço. vai nascer o salvador, um corado e anafado bebé-proveta, motor turbo, sistema laser vidente, programado para saber de memória com a mesma facilidade a divina comédia ou o texto da perestroika. hollywood assiste ao parto em circuito interno, implacável e brutal, com visível frieza, como se apenas de mais um filho seu se tratasse. para o baptismo está previsto que salomé peça a herodes a cabeça de um skinhead. estudantes de biodegradação genética empunham painéis luminosos com frases: abaixo a caridade e o amor, cordeiro de deus devolve-nos os pecados já. o mundo ou é mau ou está mal, diria a nossa avó.


página 382

Joaquim Castro Caldas

em «Intérprete da vontade do pássaro»

edição Exclamação


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

ZMB -- IRABCDJOL XIV, parte1 (film track)


Film track for the first part of musical album IRABCDJOL XIV by ZMB Sound and image by ZMB Samples featured and thanks to Shivana Ribeiro and Júlio Allen Vidal Two poems by Manuel de Castro are read here in this album. Track 01: O açúcar é um doce veneno Track 02: As borboletas são Track 03: Regresso a 31:10 Track 04: Manuel de Castro na estação Track 05: Ameixa virgem do avesso Track 06: Sonho de flauta distante Track 07: Fica com a tua riqueza Track 08: Aleluia Track 09: Mãe Linda remix Track 10: O meu Paris Texas Track 11: A reconhecer pelos notários Track 12: Mãe Linda Soon this album will be listenable and available for download under a Creative Commons License on archive dot org

domingo, 15 de dezembro de 2024

Primária

Primária

aos domingos de madrugada nas cidades quase desertas, encanta-me escrever à mão, nos bancos de jardim, cartas a pessoas muito chegadas que estejam longe ou eu não veja há imenso tempo, em sebentas rotas, sobre o joelho, com as folhas a enervar-se com o vento, mas tem de ser no princípio do outono, em clima ameno, a lápis que o merceeiro usava na orelha, afiado com a faca de trazer no bolso ou o velho apara à manivela, o cheiro das aparas a confundir-se com a terra seca regada pela primeira chuva de setembro, cães meigos à solta, uma ave ou outra, uma carta sem ter nada de antigo ou vanguarda, urgente ou lento para dizer, só a memória de uma imagem mágica de estimação, de uma cor ou de um sonho, de uma pequena história, que sem ter história, anda à pendura no comboio de corda, entra e sai em andamento de um coração, nostalgia sem a qual nenhum futuro terá passado, melancolia sem a qual nenhum presente será moderno. 

Joaquim Castro Caldas
Pagina 187 de Intérprete da vontade do pássaro 
Edição Exclamação

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

E a verdade é que a aventura não tem preço

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Ah! Ainda as estou a ver, essas queridas e boas senhoras, exactamente como há doze anos, quando me sentei à mesa delas, a discursar sobre os caminhos que os meus pés percorriam, pondo de lado os seus conselhos amáveis, como bom malandro, e encantando-as não apenas com as minhas aventuras pessoais, mas com as aventuras de todos os tipos com quem me cruzara ou trocara confidências. Apropriei-me de todas essas aventuras; e se as solteironas fossem menos confiantes e inocentes, ter-lhes-ia sido fácil pôr em xeque a minha cronologia. Sim, e depois? Foi uma maneira de retribuir as muitas chávenas de café, ovos e dentadas de torrada. Ficou tudo pago pelo justo valor. Diverti-as pela medida grande. Só o ter-me sentado à mesa delas já lhes soube a aventura, e a verdade é que a aventura não tem preço.

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Jack London

em «Vagabundos cruzando a noite», página 62

tradução de Ana Barradas

Edição Maldoror


domingo, 8 de dezembro de 2024

Regar a planta ou ser um planticida? Eis a questão

 Hoje, ao chegar a casa com o pão fresco, encontrei o meu pai na cozinha.

Pai, o patrão é um cómico. Ontem, eram sete menos cinco, ia na rua a chegar ao Tijuana. Vi as persianas corridas, vi a dona Alexandra junto à porta da rua a deixar lá um balde e a entrar, vi as luzes do letreiro já acesas. Cheguei à porta de vidro na rua com a intenção de ligar o interruptor que controla a abertura desta porta. Cheguei e vi o patrão que mal me viu disse: sr. Rogério!, só agora é que chega? Pois chega a tempo de se explicar. Eu fico logo transtornado e tiro no mesmo instante o espertafone do bolso e digo: são sete horas, sr. A. Ele, em tom acusador, diz: vai ter de se explicar de um crime. Mais transtornado fiquei, fiquei a pensar «o que é que se terá passado este tempo em que estive ausente...»

E, pai, o que era? Era a planta, que está ao cimo dos três degraus de mármore junto à porta com a fechadura electrónica. A planta secou! O patrão mostrou-me o balde cheio de terra e cascalho e disse: eu e a dona Alexandra tirámos a planta do vaso, a água já estava choca. Você afogou a planta. Olhei para o vaso e, interiormente, suspirei de alívio, afinal... não morrera ninguém na minha ausência. Disse ao sr. A.: vou levar o balde ao contentor. Ele disse: eu vou consigo e levo estas garrafas. Eu virei-me para ele e disse: sr. A, agora o senhor assustou-me, pensei que tinha acontecido uma desgraça. Disse-o quase a sorrir, pai, disse-o aliviado. Foi assim:

Eu, agora que tenho de fazer apenas metade do serviço que me foi destinado fazer quando fui contratado, fui mandatado em Abril para regar a planta, nem sei o nome dela e eu não sou jardineiro. A planta é um tronco claro de trinta, quarenta centímetros donde no cimo saem umas folhas finas e longas que caem ao longo do tronco e estava dentro de um pequeno vaso com terra dentro de um grande jarrão cheio de cascalho. Mas não se via o vaso com a terra, só se via o cascalho e o tronco. E eu fui regando a planta, a cada três dias ia deitando meia garrafa de água no jarro junto ao tronco. O sr. A. ao longo dos meses ia ajuizando e ia dizendo: está bonita a planta, está viçosa. Mas no último mês, a dona Alexandra reparou que o jarrão estava cheio de água e começou a ver-se que as folhas estavam a secar, disseram-me para deixar de a regar. 

Ontem, durante a tarde e como é habitual, o patrão folga do supermercado e passa o tempo no hotel até eu chegar e ocupa-se de alguns pormenores. Pai, ele é um ano mais novo que tu e é ele que abre as tampas das fossas e se mete lá dentro com uma vara de arame e eu ou a dona Alexandra a deitar água com a mangueira lá para dentro para ele desentupir os esgotos. Pai, o patrão trabalha. Além disso, sempre foi correcto para mim. Por isso, alarmou-me. Foi teatral. Hoje, ao contar-te isto, dá-me vontade de rir. 

E agora, em vez da planta está lá uma artificial.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

domingo, 1 de dezembro de 2024

Nessa comunidade em que ninguém pensava em se promover, em que havia falta de tudo, mas sem privilégio nem lamber de botas

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O ponto essencial é que, durante todo aquele tempo, estive isolado -- porque na frente estávamos quase completamente isolados do mundo exterior; até mesmo do que estava a acontecer em Barcelona não tínhamos mais do que uma pálida ideia -- no meio de pessoas que, a traço grosso, mas não demasiado longe da verdade, poderiam ser definidas como revolucionárias. Tal era o resultado do sistema de milícias, que na frente de Aragão não sofreu alterações radicais até cerca de Junh de 1937. As milícias de trabalhadores, baseadas nos sindicatos e cada uma delas integrada por gente que tinha aproximadamente as mesmas opiniões políticas, tinham por efeito canalizar para um mesmo lugar todo o sentmento mais revolucionário do país. Eu fora parar, mais ou menos por acaso, à única comunidade de certa dimensão da Europa Ocidental em que a consciência política e a recusa de acreditar no capitalismo eram mais normais do que o contrário. Ali, em Aragão, eu estava entre dezenas de milhar de pessoas, princpalmente, se bem que não na totalidade, cuja origem era a classe trabalhadora, que viviam ao mesmo nível e conviviam em pé de igualdade. A igualdade era completa em teoria e até na prática não estava muito longe de o ser. Em certo sentido, pode dizer-se ser verdade que ali se experimentava um antegosto do socialismo, pelo que pretendo dizer que a atmosfera mental que prevalecia era o socialismo. Muitas das motivações normais da vida civilizada -- snobismo, ganhar dinheiro, medo do patrão, etc. -- tinham pura e simplesmente deixado de existir. A habitual divisão da sociedade em classes desaparecera numa medida que é quase impensável no ar contaminado pelo dinheiro que se respira em Inglaterra; ali, éramos só os camponeses e nós, e ninguém era senhor que quem quer que fosse. Semelhante estado de coisas não podia, evidentemente, durar. Foi simplesmente uma fase temporárria e local num enorme jogo que se joga em toda a superfície da terra. Mas durou o suficiente para fazer sentir os seus efeitos sobre quem o tenha experimentado. Por muito que amaldiçoássemos nesse tempo, dar-nos-íamos depois conta de termos estado em contacto com qualquer coisa de estranho e precioso. Estivéramos numa comunidade em que a esperança era mais normal do que a apatia ou o cinismo, em que a palavra "camarada" significava camaradagem e não, como na maior parte dos países, uma impostura. Respirávamos o ar da igualdade. Estou perfeitamente consciente de que está hoje na moda negar que o socialismo tenha seja o que for que ver com a igualdade. Em todos os países do mundo, uma enorme tribo de escribas partidários e pequenos professores untuosos afadiga-se a "provar" que o socialismo não é mais do que um capitalismo de Estado planificado que deixa intacta a motivação do lucro. Mas, felizmente, existe uma visão do socialismo muito diferente. O que atrai os homens comuns para o socialismo e os faz quererem arriscar a pele por ele, a "mística" do socialismo, é a ideia de igualdade; para a grande maioria das pessoas, o socialismo ou quer dizer uma sociedade sem classes, ou não quer dizer coisa nenhuma. E foi por isso que os poucos meses que passei na milícia contaram tanto para mim. Porque as milícias espanholas, enquanto duraram, foram uma espécie de microcosmos de uma sociedade sem classes. Nessa comunidade em que ninguém pensava em se promover, em que havia falta de tudo, mas sem privilégio nem lamber de botas, talvez tivéssemos uma antecipação crua do que poderá ser a fase inicial do socialismo. E isso, bem vistas as coisa, em vez de me desiludir, atraiu-me profundamente. Teve por efeito tornar o meu desejo de ver instaurar-se o socialismo muito mais real do que antes. Em parte, talvez isso se devesse à boa sorte de me encontrar entre espanhóis, que, com a sua decência inata e o seu pendor anarquista sempre presente, que, em tendo ocasião para tanto, tornariam toleráveis até mesmo o período inicial do socialismo.

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George Orwell

em «Homenagem à Catalunha» páginas 83 - 85

tradução de Miguel Serras Pereira

edição Relógio d'Água