sábado, 15 de novembro de 2025

Haitian Fight Song

 


Azul de terra (versão)

 

-- Olá, estás aí? Não te vi entrar...

-- Sou invisível!

-- És nada! O que vais tomar?

-- Um café.

As imagens que são pessoas vivas passam da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, em frente à porta do bar das oito pontas azuis. Eu observo e bebo o meu café. Um amigo entra e senta-se no balcão a meu lado. O seu discurso é um pouco mais incoerente que o meu. Tem problemas derivados do consumo de pastilhas e esteve em Lá. É meu amigo.

-- Nós lá... desenhávamos o tempo.

-- E caminhávamos como se fôssemos santos e víssemos a quimera.

-- Dá-me um cigarro. Para este peixinho.

-- Para seguir no comboio e ir ver as pirâmides?

-- E ver também os elefantes e as mulheres abelha e os cães danados de três cabeças e os pintaínhos azuis...

O dono do bar para quem nós não somos invisíveis, ri-se. O meu amigo sorri. Eu também.

Fumámos o peixinho a dois. Repetímos o pecado segunda vez. Somos sonhadores.

 

Agora, levanto-me e venho até à porta, sento-me na soleira. Começo a sentir arrepios de frio. Volto para dentro e sento-me novamente ao lado do amigo.

Agora, sinto-me uma imagem com o frio a subir-lhe à cabeça. Começo a sentir-me perto dum apagão. Se fechar os olhos apago-me. Ainda não paguei, tenho de pagar antes que me apague, antes que me transforme em estátua.

Olho em frente para o espelho e vejo-me a abrir a carteira e a tirar vinte euros para pagar. Pouso a nota no balcão, por baixo da carteira e com a mão por cima. Olho o dono.

Sinto o sangue a ferver e o frio a subir à cabeça e a dar voltas no estômago. Tento controlar e vejo no espelho a imagem a controlar. Baixo a mão à cintura e sinto tonturas e dificuldades em me conservar sentado neste banco de pé alto. Olho para o espelho e estou a controlar.

Os meus ouvidos num túnel, os meus olhos a apagarem-se. A casa a explodir.

 

(E nesta interrupção, as imagens surgem de dentro como um desejo de síntese.)

-- Olha, deixaste cair ao chão a...

Acordo do apagão e olho para terra. Azul. Vejo a nota no chão. Azul de terra. Apanho-a e agradeço. Volto a sentar-me. Era a última nota do mês. Faço sinal e pago.

Afinal, correu tudo bem e os amigos ajudaram. Levanto-me e venho sentar-me na esplanada.

Sou agora uma imagem fora de tela, sou ahah um unicórnio de um milhão que ia ficar a dever. Sou uma estátua com a cabeça encostada à parede e que olha para cima, para o céu e não pode fechar os olhos. Porque as imagens não deixam, elas querem ajudar.

Preciso agora de respirar pausadamente e bloquear a agonia do estômago. O pior já passou. A estátua respira e beija com carinho a imagem que ajudou a estátua.

O filme está a terminar e já só falta um pu. Mais um arroto. Já está.

A boa acção terminou. Cumprimentei um amigo de Lá e com ele fumei um intensificador de sonhos. E vi imagens que são pessoas vivas e estátuas que são pessoas mortas e agora vou desenhá-las.

Levanto-me agora da esplanada e vou para casa renovado. Vou pelo caminho dos pescadores. Um deles recolhe agora mesmo um robalo. Sorri de contente.

Eu sorrio com ele e digo: -- Olha, um dia vendi um quadro e nunca mais lá voltei. Disseram que era ciência rara. Que haja peixe, irmão, que haja peixe!

Ele ri-se achando tudo absurdo. Mas não faz mal. Ele não sabe que acabei de parafrasear Manuel da Fonseca. Estou em paz. Não preciso de mais nada hoje. Uma sopinha e dormir feliz ao ouvir a «haitian fight song» do Charles Mingus.

 



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