sexta-feira, 29 de maio de 2015

O palhaço é amor


'O palhaço é amor'
óleo sobre tela
64cm por 46cm
2015
ZMB

Se a prostituição é a mais velha profissão do mundo
o ser palhaço é a actividade mais desconsiderada.
É um pouco como ser louco.
Tanto damos alegrias: «eheh já não me ria há um colhão de dias, toma lá a moeda!»
Como somos arma de arremesso: «eheh olhó palhaço onde pensas que vais? Vai trabalhar!»
Quem nunca chamou ninguém palhaço 
ou se sentiu ele-próprio um palhaço no meio da depressão,
que atire a primeira pedra.

Este quadro inaugura uma série de alguns quadros
que pretendo fazer tendo como motivo os artistas
que ganham a vida nas ruas do Porto.


domingo, 24 de maio de 2015

E só continuava a viver porque se esquecera por completo de que tinha morrido

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Por vezes, acontecia o doutor dizer-me:
-- Conhece aquele pequeno charco das águas da chuva, do lado de lá da crista, junto a um prado? Pois bem, lá perto há uma cabana primitiva de folhas de palmeira que está a cair aos bocados. Quem a terá construído? Farto-me de fazer conjecturas sobre quem poderá ter escolhido aquele sítio completamente isolado para viver... Talvez alguém a quem pese um crime na consciência, quem sabe. Uma tarde, fui até lá a cavalo. Desmontei uma dezena de metros antes e fiz o resto do caminho a pé. Espreitei pela abertura que serviria de porta e vi... vi...
Neste ponto do relato, a voz começava a esvair-se-lhe até se transformar num murmúrio confuso, quase inaudível. Segundos depois, também este murmúrio confuso se dissipava, embora eu visse distintamente que ele continuava a contar a sua estranha aventura, mas já só para si.
Sabendo que ele pensava que eu o estaria a acompanhar, abstinha-me de lhe dizer que não compreendia uma palavra do que dizia. Na verdade, uma história só tem sentido se tivermos sido nós a vivê-la.
Noutras ocasiões, sem mais nem menos, iniciava um novo relato:
-- ... E como lhe ia dizendo, houve aquele dia em que me encontrava numa parte da selva especialmente densa. Estava escuro no meio do mato cerrado, mas a luz do sol brilhava intensa por sobre as árvores. É preciso ficar-se encharcado e esperar meia hora ou mais em silêncio até conseguir ver ou ouvir alguma coisa interessante. Observei uma tarântula que avançava cautelosamente por cima de um tronco de ébano apodrecido. Era um monstrozinho castanho-escuro, muito peludo, do tamanho da minha mão. No chão, junto à àrvora, dois grandes escorpiões pretos deslocavam-se ainda com mais cautela. Nenhum deles parecia ter visto a tarântula, tal como esta também não dera pela presença deles. Estranhei que os escorpiões andassem por ali, pois é raro saírem em plena luz do dia. Os três seguiam na mesma direcção, e os três tinham o olhar fixo num... num...
Neste ponto, mais uma vez, o relato perdia-se num murmúrio incompreensível.
Por vezes, ao observar o doutor, tinha a impressão de que ele já estava morto, que morrera havia vários anos, e só continuava a viver porque se esquecera por completo de que tinha morrido, pois ninguém dera por isso nem lho dissera. Nessas ocasiões, pensava para comigo que, se mandasse imprimir um obituário num jornal e lho mostrasse, ele cairia de facto morto no mesmo instante e, passada meia hora, teria o aspecto de um homem enterrado há cinquenta anos.
Estas ideias não me ocorriam com frequência, só quando o via sentado na sua cadeira de balouço, silencioso, imóvel, fitando o oceano pardo da selva quase sem pestanejar, com um olhar vazio e mortiço.
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,página 50
"O visitante da noite & outros contos"
B. Traven
Tradução de Manuela Gomes
Edição Antígona



quarta-feira, 20 de maio de 2015

[It's a ] Sad world



Virgin Prunes ‎– A New Form Of Beauty 2
Rough Trade ‎– RT - 090 (1981)
Andrei Tarkovsky - Stalker (1979)

Lyrics:

When you’re down and out, nobody wants to know you
A boy and a girl running away
They won’t get far
Somebody gets shot
And somebody else laughs
They think it’s so funny
It’s a sad world
The river will swallow you up
Please take me away
With all the madmen I’d be better off in this ? ?
Take me away
It’s a game
Ah it’s a game and it’s an evil game
Everybody is out for themselves
The wind blew and the man went up to heaven for one day
The old man in the grey coat
Always so sad in the sad world
The devil is laughing
At all the sad people in the sad world
Take another toke to get your head together
Always drinking all night long if you could
?Jody’s? gone to sleep now, we can speak about sadness in the world
Joe is crossing the road
Car comes, knocks him down
Somebody’s screamed ? ? into a dream
The wind hollered
I could see the fire in hell in a dream
The men and the women are always so frightened
Always so scared
The little child is always crying
As the shadows fall on me
Somebody I think coming to kill me
So they ? a knife and then they killed me
Somebody knew which way the boys are fighting in the corner
Always fighting, crying
The world will end someday
Won’t be too soon

terça-feira, 19 de maio de 2015

Tantos ossos há




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Tantos ossos há: desde o mineiro que, pedindo trocos, telefona para casa e nós ouvimos pelo seu desespero verbal as respostas negativas que recebe; desde o grande cesariny senhor danz que um dia assina o termo e volta no dia seguinte na hora de pequeno almoço quase de livre vontade apenas por não aturar a irmã; desde aquele mano de casaco de cabedal com pins que empresta o walkman com cassetes de metal construtivo, diz ele eu digo iiiieeeé; desde a vera malandreca que não me dá o número de telefone porque o marido não deixa e que está aqui devido aos berilaites; desde a rosa que anda sempre a pensar em comprar uma pistola e me diz para pôr o senhor ventura de lado e vir jogar umas copas; desde o bigode do antónio de quem dizem que pegou fogo à casa e que, um lustro mais tarde a minha falta de memória nas faces que passaram um dia pela minha vida, tenho a ilusão de imaginar vir a ser o meu mestre encadernador. Fizeram a folha ao bruno, pareceu-me vê-lo hoje na hora do almoço, perguntou-me se percebia de internet no telefone. Respondi com uma qualquer banalidade e ele concordou, só o reconheci debaixo do boné quando cheguei a casa e pesquisei …the feeling of being dead… devolveram-me cotard, a prosopagnosia, e em inglês …when you will have made him a body without organs… não consta que os caranguejos tenham amígdalas ou sentimentos.
Tantos tantos tantos cantar-vos a todos, justificar-vos, devolver-vos a g lória e no final…
Tantos tanto tantos e no final… há vários finais de admissão e eu, talvez apenas, precise de experimentar a matéria para melhor me escrever, há quem diga que chego algumas vezes ao pódio, vinte porcento do público dar-me-á [tantos?, talvez, ah! gloria] uma menção honrosa, o resultado: a sala iq do wc dos condes e voltar seis semanas depois à gravidez, err… quero dizer, à gravidade do ponto de partida, mais uma volta ao estádio, eu zmb sempre a renascer, eis o eterno retorno do erro. Apetece até citar cioran e o nosso inconveniente sempre que caio ao poço como o lobo enganado pela raposa, usando a lua como artifício, pensando que o seu brilho é um queijo lá bem no fundo para onde, agora e sempre, olho verde: a realidade da hiper ilusão e eu sou igualmente a raposa. Eu uma vez disse ao telefone para espantar alguém: eu sou todas as personagens.
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,página 108
"Contos de fadas de Manuelle Biezon"
Claudio Mur

domingo, 17 de maio de 2015

Lulabye



Uma faixa audio de um álbum não editado
'IRABCDJOL 4'
por ZMB

As vozes são de antigos amigos,
de um cão e
de um minidisk sendo operado ao vivo no momento
e sem total conhecimento dos participantes.
Gravado nos Herculano Studios
em 2002

Na verdade apenas tolero os cães
embora compreenda que conhecer a filosofia dos lobos seja
uma maneira de não ser engolido pelo mundo ou comido vivo.
Na verdade prefiro os gatos.
São mais honestos.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Sou contra o acordo ortográfico...

... e em princípio escrevo de acordo com a ortografia que aprendi na escola
antes de 1990,
agora gosto de adicionar palavras ao meu léxico
sejam palavras caídas em desuso, sejam outras formas de português,
às vezes tento inventar ou adaptar grafias de vocábulos de língua estrangeira,
geralmente para dar um aspecto coloquial ou informal,
por exemplo: dizer «familí» em vez de «família».
Dito tudo isto,
só o esquecimento ou a desatenção ou um certo gozo me poderá fazer escrever
«a cona conitiva!»
Tenho alguma dificuldade, é certo, com os acentos que se colocam nos verbos escritos no pretérito
mas em regra geral estes esquecimentos ou desatenções
antes passavam sempre no filtro do corrector do meu processador de texto
e eu emendava sempre que assim achasse erro,
mas agora as actualizações de software livre do openOffice já vêm escritas em abortês.

Passei assim a usar esta ferramenta que espero não seja descontinuada.

http://www.flip.pt/flip-on-line/corrector-ortografico-e-sintactico.aspx

Não conheço outra, agradeço se alguém indicar alternativas.


domingo, 10 de maio de 2015

The singer by Nick Cave



"The Singer"

As I walk these narrow streets
Where a million passin feet have trod before me
With my guitar in my hand
Suddenly I realize nobody knows me

Where yesterday the multitude
Screamed and cried my name out for a song
Today the streets are empty
And the crowds have all gone home

I pass a million houses
But there is no place that I belong
All I knew to give you
Was song after song after song

All the truths I tried to tell you
Were as distant to you as the moon
Born 200 years too late
And 200 years too soon

I'm a child of this age
Locked into the pages of your book
And when I am but dust and clay
And all the children stop to take a look

Will they marvel at the miracles I did perform
And the heights I did aspire
Or will they tear out the pages of the book
To light a fire

With the rain on my face
There is no place that I belong
Did you forget this fucking singer so soon?
And did you forget my song?

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Irmão, se achas que vale a pena luta, senão
fuma um bob, ouve um marley e não penses mais nisso

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A «jóia» ia repetir o que já tinha dito, porquanto as «jóias» caem frequentemente em repetições, mas Mangogul cortou-lhe a palavra: o seu silêncio não foi de longa duração. Quando o príncipe julgou ter embaraçado esta «jóia» palradora, restituiu-lhe a liberdade de falar; e a tagarela, desatando a rir, prosseguiu como se se lembrasse de repente:
«Mas, a propósito, esquecia-me de contar o que se passou na primeira noite das núpcias de Haria. Vi muitas coisas ridículas na minha vida; mas nunca nenhuma que o fosse tanto. Depois de uma grande ceia, os esposos são conduzidos aos seus aposentos; toda a gente se retira, excepto as criadas da senhora, que a despem. Ei-la despida; metem-na na cama e Sindor fica sozinho com ela. Notando que, mais alerta do que ele, os fraldiqueiros, os cachorros, as galgas, se apoderavam da sua esposa, disse-lhe:
» -- Permita, senhora, que eu afaste um pouco estes rivais.
» -- Meu caro, faça o que puder -- disse Haria. -- Por mim, não tenho coragem para os expulsar. Estes animaizinhos são-me afeiçoados; e há muito tempo que não tenho outra companhia...
» -- Talvez tenham -- observou Sindor -- a delicadeza de me cederem hoje um lugar que devo ocupar.
» -- Actue, senhor -- respondeu-lhe Haria.
» Sindor começou por utilizar a brandura e pediu a Zinzolina que se chegasse para um canto; mas o animal indócil pôs-se a rosnar. O alarme estende-se ao resto do bando; e o cachorro e os fraldiqueiros ladraram como se tivessem degolado a sua dona. Impacientado com este barulho, Sindor repele o cachorro, afasta um dos fraldiqueiros e agarra Medor pela pata. Medor, o fiel Medor, abandonado dos seus aliados, tentara reparar essa perda pelas vantagens do posto. Colado às coxas da dona, de olhos inflamados, o pêlo eriçado e as goelas abertas, franzia a ponta do focinho e apresentava ao inimigo duas fileiras de dentes agudos. Sindor tentou mais de um assalto; mais de uma vez Medor o repeliu, deixando-o de dedos contraídos e os punhos das mangas rasgados. A acção durara mais de um quarto de hora, com uma obstinação que apenas divertia Haria, quando Sindor recorreu ao estratagema contra um inimigo que desesperava de vencer pela força. Provocou Medor com a mão direita. Medor, atento a este movimento, não reparou no da esquerda e foi apanhado pelo pescoço. Fez esforços inauditos para se libertar, mas inúteis; teve de abandonar o campo de batalha e ceder Haria. Sindor apoderou-se dela, mas não sem efusão de sangue; dir-se-ia que Haria havia decidido que a primeira noite de núpcias fosse sangrenta. Os animais defenderam-se excelentemente e não desiludiram a sua expectativa.»
-- Aqui está uma «jóia» -- disse Mangogul -- capaz de escrever a gazeta melhor do que o meu secretário.
'

, página 115
"As jóias indiscretas"
Diderot
Edição Livros de bolso Europa-América

( Um livro que custou 2€50 num alfarrabista )

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Ah, ser jovem como Rober Walser e dizer sem medo:
«Não quero ter um futuro, quero ter um presente.»

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«Quer que lhe escreva uma carta de recomendação, ainda que na verdade o senhor não a mereça?»
«Uma carta de recomendação? Não, não me escreva nenhuma carta de recomendação. Se só mereço uma carta de recomendação pouco abonatória, então prefiro não ter nenhuma. Eu próprio me recomendarei a partir de agora. A partir de agora contarei apenas comigo mesmo, quando alguém perguntar pelas minhas credenciais, e isso só poderá suscitar a melhor impressão junto de um empregador sensato e lúcido. Fico contente por me despedir de si sem uma carta de recomendação, pois uma carta de recomendação sua apenas me lembraria do meu medo e da minha cobardia, de um estado de inércia e desfalecimento, de dias vividos sem proveito, de tardes cheias de tentativas furiosas de libertação, de noites de uma nostalgia bonita mas inconsequente. Agradeço a sua intenção de me despedir de maneira amigável, isso mostra que estou diante de um homem que talvez tenha compreendido qualquer coisa daquilo que eu dsse.»
«Meu rapaz, você é demasiado violento», disse o director. «Está a enterrar o seu futuro!»
«Não quero ter um futuro, quero ter um presente. Isso parece-me ter mais valor. Só se tem um futuro quando não se tem um presente, e quem tem um presente não se lembra sequer de pensar num futuro.»
«Despeço-me de si. Receio que a sua vida venha a ser difícil. Você interessou-me, e foi por isso que ouvi o que tinha a dizer. Caso contrário, não teria perdido tanto tempo consigo. Talvez se tenha enganado no ofício que escolheu, talvez ainda venha a ser alguém. Em todo o caso, espero que as coisas lhe corram bem.»
Com um pequeno aceno de cabeça, Simon foi dispensado e depressa se encontrou lá fora, na rua.
'

, página 31
"Os irmãos Tanner"
Robert Walser
Tradução de Isabel Castro Silva
Edição Relógio d'Água

sábado, 2 de maio de 2015

O perguntador


'O perguntador'
óleo sobre pano crú
49 cm por 62cm
2015
ZMB

No início de Fevereiro de 2012 terminou a minha última ligação contactual a uma empresa.
Alistei-me no centro de desemprego.
Tive que deixar o palácio onde estivera a residir nos últimos seis meses
e procurar algo mais barato.
Voltou também a vontade de pintar, estivera ocupado nos últimos dois anos
a trabalhar e pouco tempo tinha livre para me dedicar à bela arte.
Ingressei assim em Labutes radio tower como residente.
Este trabalho: O Perguntador: foi começado nesta altura e ainda de modo nenhum terminado
utilizei-o para criar juntamente com outros elementos
 um ecran para o agora defunto site das Edições Cassiber.

Em 2014, pus-lhe uma grade e comecei a pensar em terminá-lo.
Algo que fiz este ano em Abril, após descobrir a fotografia de MCS
que pode ser visualisada aqui :

Utilizei desta fotografia alguns elementos visuais e a perspectiva
para transformar o que no meu pano crú era um céu informe e mal pintado de violeta
numa bela paisagem que dá profundidade de campo ao perguntador.
Dou os parabéns ao MCS pela sua fotografia e agradeço porque 
sem ela este meu trabalho não teria tanto interesse.