domingo, 24 de maio de 2015

E só continuava a viver porque se esquecera por completo de que tinha morrido

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Por vezes, acontecia o doutor dizer-me:
-- Conhece aquele pequeno charco das águas da chuva, do lado de lá da crista, junto a um prado? Pois bem, lá perto há uma cabana primitiva de folhas de palmeira que está a cair aos bocados. Quem a terá construído? Farto-me de fazer conjecturas sobre quem poderá ter escolhido aquele sítio completamente isolado para viver... Talvez alguém a quem pese um crime na consciência, quem sabe. Uma tarde, fui até lá a cavalo. Desmontei uma dezena de metros antes e fiz o resto do caminho a pé. Espreitei pela abertura que serviria de porta e vi... vi...
Neste ponto do relato, a voz começava a esvair-se-lhe até se transformar num murmúrio confuso, quase inaudível. Segundos depois, também este murmúrio confuso se dissipava, embora eu visse distintamente que ele continuava a contar a sua estranha aventura, mas já só para si.
Sabendo que ele pensava que eu o estaria a acompanhar, abstinha-me de lhe dizer que não compreendia uma palavra do que dizia. Na verdade, uma história só tem sentido se tivermos sido nós a vivê-la.
Noutras ocasiões, sem mais nem menos, iniciava um novo relato:
-- ... E como lhe ia dizendo, houve aquele dia em que me encontrava numa parte da selva especialmente densa. Estava escuro no meio do mato cerrado, mas a luz do sol brilhava intensa por sobre as árvores. É preciso ficar-se encharcado e esperar meia hora ou mais em silêncio até conseguir ver ou ouvir alguma coisa interessante. Observei uma tarântula que avançava cautelosamente por cima de um tronco de ébano apodrecido. Era um monstrozinho castanho-escuro, muito peludo, do tamanho da minha mão. No chão, junto à àrvora, dois grandes escorpiões pretos deslocavam-se ainda com mais cautela. Nenhum deles parecia ter visto a tarântula, tal como esta também não dera pela presença deles. Estranhei que os escorpiões andassem por ali, pois é raro saírem em plena luz do dia. Os três seguiam na mesma direcção, e os três tinham o olhar fixo num... num...
Neste ponto, mais uma vez, o relato perdia-se num murmúrio incompreensível.
Por vezes, ao observar o doutor, tinha a impressão de que ele já estava morto, que morrera havia vários anos, e só continuava a viver porque se esquecera por completo de que tinha morrido, pois ninguém dera por isso nem lho dissera. Nessas ocasiões, pensava para comigo que, se mandasse imprimir um obituário num jornal e lho mostrasse, ele cairia de facto morto no mesmo instante e, passada meia hora, teria o aspecto de um homem enterrado há cinquenta anos.
Estas ideias não me ocorriam com frequência, só quando o via sentado na sua cadeira de balouço, silencioso, imóvel, fitando o oceano pardo da selva quase sem pestanejar, com um olhar vazio e mortiço.
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,página 50
"O visitante da noite & outros contos"
B. Traven
Tradução de Manuela Gomes
Edição Antígona



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