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Ontem. Antes de ontem. Anteontem sei lá.
Chegámos ao Anexus 51. Tem um colchão, mantas, aquecedor, uma televisão, a minha colecção de vinis, ainda o programa «Raízes» na rádio para ouvir à meia-noite. Fizemos amor, apesar do termómetro que tem no braço para controlo de natalidade. Não é agradável para a nossa relação, ela tem períodos menstruais de quinze em quinze dias, a sua barriga está a inchar, ela era tão magra. Eu preferiria os preservativos como método de contracepção, pelo menos ela não engordaria, mas não foi uma decisão minha.
O que quero mesmo é falar da minha celebração d«o natal com ela». Porque todos os meus natais são tristes, na minha mente está gravado o natal de um junkie narrado pelo Burroughs, mas não, não somos heroínamos e, portanto, tenho às vezes de criar as nossas próprias versões do tema universal. Os acessórios nesta nossa versão são: torrada e galão para dois no café, um pack de sessenta comprimidos paxoletan, outro de risperidona, uma lavagem e corte de cabelo para ela, uma carpete recusada por ela, um jantar agradável e uma vistoria aos blogues através dum posto de internet num café.
Aqui surgiu uma dúvida, melhor, surgiu-lhe o ciúme, como explicar… Ela pensa que os blogues que leio são mensagens de email e portanto, como leio bloggers femininas, ela pensa que elas falam para mim, só para mim, pensa que eu tenho muitas amigas com quem a traio. Esta dúvida é devida ao seu desconhecimento da tecnologia, afinal tem o antigo ciclo de estudos incompleto, eu desculpo este ciúme, ela é uma espécie de «boa selvagem» em estado puro, sei que tenho de a ensinar mas não sei lidar com esta espécie de amor, vem acompanhado do seu olhar furibundo, não gosto do seu olhar e também não o sei escrever, faltam-me as palavras correctas de um escritor, sou apenas um esquizofrénico, com alguma consciência e memória, a tentar pôr por escrito a recordação triste do que me fez perdê-la a longo prazo.
Na noite de consoada em casa de amigos, trocaram-se presentes às onze da noite e ficámos em casa deles a dormir. O dia de natal começa às nove quando acordámos para tomar a medicação, mas eu volto ao sono. Ela acorda-me finalmente ao meio-dia e mostra-me a mesa de natal para oito pessoas, avós e tudo. Como esta não é a minha família, não me sinto à-vontade e saio de casa para tomar café. Leio o jornal e volto para o almoço. Come-se o tradicional farrapo velho e algum frango, poucos bolos. Depois saímos para a sobremesa no café, nós, os homens e a pequena neta Taís. Quando voltámos, ela está pronta a sair. Três autocarros depois, chegámos à minha zona, vamos tomar um carioca e aqui volta o olhar possessivo dela, errado engano-me, volta o olhar possesso.
Cinco horas da tarde e voltámos ao anexo. Eu vejo o «Piratas das Caraíbas» na televisão e fumo uma ganza, ela dorme duas horas até ao jantar, os comprimidos dão-lhe muito sono, eu estou aborrecido e vou ver os emails, estou aborrecido porque não gosto do seu olhar, o que se passa depois é uma catarse de nós dois. Ela está irritada, não gostou que eu, no café, «olhasse» para os meus amigos, suas mulheres e filhos pequenos, não gostou e fala-me aos berros, eu vejo naquilo um problema: «ora veja-se lá! Agora já não se pode olhar», um problema que não sei como resolver, outro problema surge porque a minha ganza acabou. Digo-lhe que vou deixá-la sozinha por quinze minutos para ir comprar mais, mas ela passa-se, diz que eu tenho outra, eu respondo à letra em vez de a conseguir acalmar, ela começa a ameaçar-me agarrando-me com força no casaco e eu «como gostaria de o fazer a um poderoso e não a ela» ao rodar, dou-lhe uma bofetada. Ela começa a chorar, a acusar, a misturar baba com ranho ao longo da hora seguinte, até que me chama João.
João. Aí compreendo a sua neurose. Ela na sua catarse após a bofetada pensa, nem que seja por momentos, que eu sou o João, o homem de quem se tenta divorciar, o homem que a abandonou com uma filha, para ir viver com a amante, o homem que lhe tirou a custódia da filha, houve até um psiquiatra que disse que se lhe tirassem a filha, ela ficaria maluca, o homem que a levou a ser internada no manicómio, onde nos conhecemos.
Ah, não fui o primeiro a bater-te, ele bateu-te, tirou-te tudo, a tua filha viu o pai bater na mãe, a tua filha viu o tio bater na irmã, a cunhada viu tudo e ninguém mexeu uma palha, nem a polícia… Acuso o toque de me chamares o nome dele, arrependo-me de te ter batido, não vi solução para te acalmar, digo-te que compreendo, que tento compreender e não quero que tomes antidepressivos em excesso, sei que às vezes te apetece desaparecer, dormir para sempre, não te quero perder.
Sim, descobri a raiz do teu problema e descobri mais, descobri aquilo que não escreverei, mas como lidar contigo, connosco? Ninguém me ensinou, por isso não, não sou o cirurgião com mais realizações como diz a canção, aliás, a única coisa que sei é sangrar ou fazer sangrar à moda da Idade Média, não sei curar, as minhas referências, os meus dicionários não correspondem à minha realidade. As soluções, em que vivo, continuam desfasadas da realidade e nem o roubar a poesia dos outros me salva. A verdade é: a literatura e a música dão-me frases em função das quais vivo. As opções, que as minhas referências literárias ou musicais fizeram na sua vida, influenciaram-me a tal ponto que foi como se não tivesse alma e tentasse viver uma vida que não fosse minha. Talvez o erro não seja das referências ou dos versos, eu é que vejo neles a realidade quando, normalmente, eles serão uma fuga à realidade, um desejo de fugir à norma, de mudar a rotina diária, melhorar o mundo. Tu foste a minha tentativa para viver no mundo real e em conjunto.
Foste a tentativa de olhar o busto que, sem consentimento ou interesse, antes colocara no pedestal, olhá-lo uma última vez apercebendo-me do quão inútil tinha sido a minha realização e colocá-lo agora no lixo e fazer de ti uma mulher mais bonita. Eu transferi o meu amor mas aconteceu o mesmo que ao bonsai, secou. O desejo foi concretizado, mas não se renovou, não o alimentámos, o balão de ar quente esvaziou-se lentamente. Deixaste de ter ciúme, deixaste de te importar comigo e desejaste mesmo que eu morresse. Foi aqui que me perdeste, eu já te tinha perdido nesse natal.
O mundo é um compêndio de doenças mentais mas é essencialmente neurótico. Exerce pressão sobre o psicótico, ninguém fala com ele em pé de igualdade. Este, ao revoltar-se, ou faz o que o mundo tem medo que aconteça ou faz o que ninguém espera: desiste da vida em comum com o mundo, faz planos de seguir sozinho e se diluir no mundo deixando a sua peugada, a felicidade será talvez para os que nos sobrevivem, nunca será nossa.
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Claudio Mur
Não te fazia mal nenhum ler a trilogia do Stieg. Parecendo que não (que estupidez, penso eu, mas é verdade), tem muito de cada um de nós, leitores. Para lá da construção, à qual se convencionou chamar Literatura, existem anos de invetigação, o tipo viveu ameaçado durante anos por mexer em assuntos que são proibidos (já terás visto isto na net).
ResponderEliminarMas pronto, eu sou uma leitora compulsiva destes temas (comecei aos 12, 13 anos, com os policiais) e, se há coisa que me agrada neles, é a verosimilhança. Obviamente, detesto fantasias de trazer pela FNAC.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarSim e desde a tua dica de ontem que tenho pesquisado na net e cada vez acho mais interessante poder no futuro ler.
ResponderEliminarO que me afastou dele foi o título e a promoção, dezenas de cópias nas prateleiras da fnac e bertrand, também o filme, um blockbuster, o que tu chamas de fantasia, tudo isso me afastou, não sou muito de modas
mas estes livros qualquer dia aparecem baratos num alfarrabista e aí talvez compre.
só para terminar:
ResponderEliminar"talvez compre"?
eu utilizo bibliotecas e peço emprestado e devolvo, há anos. Para ler não é necessário dinheiro.
"Para ler não é necessário dinheiro."
ResponderEliminarClaro que não, neste caso talvez até o meu cunhado os possa ter, agora que puxo pela memória.