terça-feira, 8 de setembro de 2015

... e o senhor desvairou-se da cabeça porque,
pelos vistos, já tinha predisposição para isso.

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O episódio do gato que pretendeu pagar o bilhete à cobradora do eléctrico divertiu sobremaneira o visitante, que, sufocado de riso silencioso, olhava para Ivan quando, entusiasmado com o êxito da sua narração, este saltitava de cócoras a imitar o gato com a moeda de dez copeques junto ao bigode.
-- E depois -- concluiu Ivan com tristeza e melancolia após ter contado o incidente na Griboiédov -- vim para aqui.
O visitante pousou uma mão compassiva no ombro do pobre poeta e falou assim:
-- Desgraçado poeta! Mas a culpa é toda sua, meu amigo. Não devia ter-se comportado com ele dessa maneira, com tanta sem-cerimónia e mesmo atrevimento. Pagou o preço. E ainda devia estar grato por ser um preço relativamente baixo.
-- Mas quem é esse «ele», afinal? -- perguntou Ivan, brandindo os punhos com excitação.
O visitante perscrutou Ivan com os olhos e respondeu com uma pergunta:
-- Mas não se vai perturbar, angustiar? É que aqui somos todos gente insegura... Não vai meter médico, injecções, essa confusão toda?
-- Não, não! -- exclamou Ivan. -- Diga-me quem é ele.
-- Está bem -- respondeu o visitante e pronunciou com gravidade e clareza: -- Ontem, no Patriárchie Prodi, o senhor encontrou-se com Satanás.
Ivan, tal como prometera, não entrou num estado de perturbação, mas que ficou muito aturdido, isso ficou.
-- Não é possível! Ele não existe!
-- Por amor de Deus! Se fosse outro qualquer a afirmá-lo... Mas não o senhor. Pelos vistos, foi uma das suas primeiras vítimas. Está enfiado aqui, como vê, numa clínica psiquiátrica, mas continua a insistir que ele não existe. Francamente!
Ivan, confuso, calou-se.
-- Logo no início da sua descrição -- continuou o visitante --, comecei a pressentir com quem teve o prazer de conversar ontem. E, com franqueza, admira-me a atitude de Berlioz! O senhor, evidentemente, é um indivíduo virginal -- e o visitante voltou a pedir desculpa --, mas esse Berlioz, pelo que ouvi dizer dele, pelo menos leu alguma coisa! Logo no início do discurso desse professor, todas as minhas dúvidas se dissiparam. É impossível não o reconhecer, meu amigo! De resto, o senhor... sem ofensa, é um ignorante, ou estou enganado?
-- Inegavelmente -- concordou o irreconhecível Ivan.
-- Pois é... porque até a fisionomia, que acabou de descrever... os olhos desiguais, o sobrolho! Desculpe, mas calculo que o senhor talvez nem tenha ouvido a ópera Fausto, pois não?
Ivan, por qualquer razão, ficou terrivelmente embaraçado e começou, com a cara a arder, a murmurar qualquer coisa sobre uma viagem ao sanatório em Ialta...
-- Pois é, pois é... não admira! Mas esse Berlioz, repito, surpreende-me... Era um homem não só de muitas leituras, mas também muito astuto. embora deva dizer em defesa dele que Woland pode, sem dúvida alguma, atirar poeira para os olhos de qualquer um.
-- Como?! -- gritou desta vez Ivan.
-- Mais baixo!
Ivan deu uma grande palmada na testa e disse, roufenho:
-- Sim, agora compreendo. Tinha a letra W no cartão-de-visita. Ai, ai, ai, que coisa esta! -- Durante algum tempo, atarantado, viu-se incapaz de falar, limitando-se a olhar para a Lua que navegava por trás da grade. Depois falou: -- Significa então que ele podia estar, de verdade, com Pôncio Pilatos? Pois podia, porque já tinha nascido! E ainda me chamam maluco! -- acrescentou Ivan, apontando com indignação para a porta.
Uma ruga amarga delineou-se na comissura dos lábios do visitante.
-- Vamos encarar a realidade de frente... -- E o visitante virou a cara na direcção do astro nocturno que corria através de uma nuvem. -- Tanto o senhor como eu somos ambos loucos, não adianta nada negá-lo! Veja bem: ele perturbou-o, e o senhor desvairou-se da cabeça porque, pelos vistos, já tinha predisposição para isso. Contudo, o que acabou de me contar aconteceu de facto, isso é incontestável. Mas é tudo tão extraordinário que o próprio Stravinski, um psiquiatra genial, não acreditou em si. Ele não o examinou? -- Ivan acenou que sim.
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,página 157
"O Mestre e Margarita"
Mikhaíl Bulgákov
Tradução por Nina Guerra e Filipe Guerra
Edição Editorial Presença



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