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-- Homem ao mar!
Era isso que tentara dizer.
Houve uma corrida atabalhoada até ao convés superior, e toda a gente atirou alguma coisa sobre o parapeito do navio -- um flutuador salva-vidas, um galinheiro, uma corda enrolada, uma verga de mastro, uma vela velha, um lenço de bolso, um pé-de-cabra de ferro -- qualquer artigo movível que se pensou poder ser útil para um homem que se estava a afogar e que seguira o veleiro durante a hora que passara desde o alarme inicial no cesto da gávea. O navio foi, em poucos momentos, praticamente desguarnecido de tudo a que se pudesse facilmente renunciar e, tendo alguns passageiros excitáveis soltado os botes, não havia nada mais que pudéssemos fazer, embora o capelão tenha explicado que, se o infeliz cavalheiro na água não aparecesse passado um bocado, era sua intenção permanecer na popa e ler o ofício de defuntos da Igreja de Inglaterra.
Pouco depois, uma pessoa hábil lembrou-se de perguntar quem caíra borda fora e, para nosso grande desgosto, tendo sido todas as partes reunidas e a chamada feita, verificámos que todos os homens responderam ao seu nome, passageiros incluídos! O Comandante Troutbeck, contudo, defendeu que, num assunto de tão grande importância, uma simples chamada era insuficiente e, com uma encorajadora afirmação de autoridade, insistiu que todas as pessoas a bordo deveriam declarar-se presentes separadamente. O resultado foi o mesmo: não faltava ninguém e o comandante, pedindo desculpa por ter duvidado da nossa veracidade, retirou-se para a sua cabina, de forma a evitar mais responsabilidades, mas expressou a esperança de que, com o propósito de ter tudo devidamente registado no diário de bordo, o informaríamos de qualquer outra acção que pensássemos conveniente tomar. Sorri ao lembrar-me que, no interesse do cavalheiro desconhecido cujo risco de vida sobreestimáramos, eu atirara o diário de borda à água.
Pouco depois disto, senti-me repentinamente inspirado com uma daquelas grandes ideias que surgem à maioria dos homens apenas uma ou duas vezes na vida, e nunca ao vulgar contador de histórias. Depressa reuni novamente a equipagem do navio, subi ao cabrestante e falei-lhes da seguinte forma:
-- Companheiros de navio, houve um engano. No ardor de uma compaixão irreflectida, demo-nos a bastante liberdade com certos bens movíveis de uma eminente firma de armadors de Malvern Heights. Por causa disto, seremos, sem dúvida, chamados a prestar contas, se alguma vez tivermos a sorte de largar âncora em Tottenham Court Road, onde tenho uma tia. Acrescentaria força à nossa defesa se pudéssemos mostrar à consideração de um júri dos nossos pares que, ao escutar as sagradas sugestões de humanidade, agimos com uma pequena dose de senso comum. Se, por exemplo, conseguíssemos fazer com que parecesse que havia, realmente, um homem borda fora, que poderia ter sido confortado e amparado pela consolação material que tão prodigamente dispensámos na forma de artigos flutuantes que pertenciam a terceiros, o coração britânico encontraria nesse facto uma circunstância mitigadora, que eloquentemente intercederia a nosso favor. Cavalheiros e oficiais do navio, arrisco-me a propor que atiremos agora um homem pela borda fora.
O efeito foi arrebatador: a moção foi aprovada por aclamação e houve uma investida unânime para o então desgraçado marinheiro cujo falso alarme no cesto da gávea era a causa do nosso transtorno, mas decidiu-se, após reconsideração, substituir o Comandante Troutbeck, por ser menos útil no geral e mais passível de se enganar. O marinheiro cometera um erro de magnitude considerável, mas a inteira existência do comandante era, no total, um erro. Foi arrastado da sua cabina e atirado borda fora.
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[ retirado do conto 'O homem borda fora' ]
Ambrose Bierce
Tradução de João Reis
Edição Eucleia Editora, 2010
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