sábado, 11 de fevereiro de 2017

Supus poder responder erguendo o boné

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No fim da refeição, Floritchica dise:
-- Trasnila, queriamos ouvir uma história cigana. Sabes alguma?
Trasnila, jovial, e perfeitamente à vontade, respondeu:
-- Uma história «cigana»? Sei uma, a minha, mas suponho que ela é acima de tudo humana.
-- Pois bem, conta-no-la.
-- Aí vai, honrados boiardos. Não posso esperar que isto vos divirta. Os ciganos são em geral bons para isso. Não é o meu caso. Nem sou eu o culpado.
O princípio da minha história faz-me lembrar um famoso provérbio romeno: Quando um cigano se torna imperador, começa por mandar prender o pai.
Pobre imperador! Devia ter um pai como o meu. Se não enforquei o meu, vontade não me faltou.
O meu pai é um boiardo romeno dos lados de Calafate. Ainda vive, gordo e com saúde. Não sou eu o único filho. Éramos um montão de ciganos, rapazes e raparigas, que lhe devíamos a vida, sem para isso termos que lhe guardar um eterno conhecimento, visto que, a exemplo de todos os senhores, não fez outra coisa que emprenhar as mais belas moças das tribus de que era o déspota, o que os cães fazem com muito mais equidade.
Sabia-lhe a crónica (que minha mãe me contara numa noite de chuva). Tinha herdado toda a fortuna do pai, ainda muito novo, quando iniciava os estudos; nunca se tinha querido casar, porque «as mulheres podem enganar os maridos»; tinha regressado de junto das Frautzouchras farto das mulheres perfumadas e gostava imenso, das raparigas ciganas.
'Quando os meus olhos se abriram para a ignomínia da nossa condição de escravo, estava ele na plena força da vida. Um pouco mais tarde -- tinha então dezasseis anos -- vi indicarem uma jovem cigana e gritarem-nos:
-- Aquele que tocar em Profiritza será morto! Ela nunca mais trabalhará, de hoje nem diante!
Já se sabia o que aquilo significava. Supus poder responder erguendo o boné:
-- Senhor! Que os dias felizes da tua vida sejam sem fim como o número de mulheres belas que poderás ter, mas deixa-me Profiritza! Ela é minha e eu quero-lhe muito!
Disse aquilo dum jacto e imediatamente toda a tribu se pôs a gritar, como é seu hábito nos enterros. As mulheres arrancaram os cabelos. Os homens cuspiam com indignação:
-- Ptrou! Cigano burro! Vai ser morto!
Meu pai, o senhor, desceu as escadas e perguntou-me:
-- Já tocaste em Profiritza?
-- Não!
-- Felizmente para ti!!
Depois dirigiu-se ao intendente:
-- Apliquem-lhe cinquenta chicotadas!
Profiritza lançou-se-lhe aos pés e implorou, com toda a ternura dos seus quinze anos, para me perdoar, mas o coração daquele pai não se enternecia e recebi a minha conta. Não senti nada, porque os meus olhos puderam ao menos fixar durante todo o tempo, os de Profiritza, que flamejavam.
Não devia tornar a vê-la tão cedo: ela foi entregue aos cuidados duma cigana velha que preparava o corpo daquelas que haviam de cair na cama do senhor, e eu, com outros escravos, homens e mulheres, parti no dia seguinte de manhã escoltados por um esbirro armado de chicote. Eramos oferecidos ao superior dum mosteiro muto afastado de Calafate, onde chegamos após uma semana de marcha. Tinha separado o marido da mulher, a mãe do filho, o noivo da noiva, e ficado frio ante os nossos gritos e as nossa lágrimas como se fica perante os balidos das crias separadas dos pais.
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Panaït Istrati
em "O cigano Trasnila"
páginas 101-103
no Volume 'Antologia do conto moderno'
edição Atlântida Editora, Coimbra 1964

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