quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Lust in the eye Love in the heart


'Lust in the eye Love in the heart'
óleo sobre tela
40cm por 30cm
2000 2017
ZMB


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Assim conheci Maria por intermédio de um dos meus eus, uma das minhas consciências num baile do enterro com os Mão Morta tocando Aum e nós nos beijando. Movido de uma espiritualidade correcta, saí de casa bem vestido e de barba feita. Joana dissera-me que teria de mudar e entrar num novo rumo. No entanto, meti uma vez mais o pé na poça e sujei os meus novos sapatos de camurça tendo chegado ao café exausto após procurar os meios para os limpar.

O Blitz é um longo rectângulo espelhado. Ao fundo, pequenas mesas decoradas a veludo vermelho; de um lado, um balcão de cabedal preto com lindos cinzeiros de mármore; um café escuro com muito fumo, muita cerveja e onde só falta o piano enferrujado.

A minha consciência senta-se, pede um café e um copo de água, olha em frente e vê, por entre as garrafas, os isqueiros nas prateleiras e a máquina de café, a sua imagem recortada e pulsante de dor. Existem superfícies longitudinais que escondem por meio da multiplicação os seus olhos e/ou deformam certas formas que logo se transformam em outras imagens tão naturais como respirar. Não fosse o problema dos sapatos e tudo estaria bem. A minha consciência sente-se exausta porque hoje é domingo à noite e saiu há dois dias de um centro de reeducação alimentar ou prisão perto de nós, tendo estado algum tempo com a família somente por 'amigos' ser algo do qual foi perdendo o conhecimento, até que veio aqui ao Blitz ter com Maria, talvez por razões de re-inserção social. Para mim tudo bem mas devagar. Para Joana, apenas uma vontade imensa de fazer bem.
São dez horas. É altura de ver uma série americana na tv, de se ler o jornal e procurar emprego, de procurar lugares bons e baratos para viver, de procurar as últimas novidades de toda uma diversidade de mundos normais.

Mas o que é um mundo normal?, pergunta a minha consciência na altura em sente uma violenta pancada nas costas e repara que eu, a pessoa mais normal do mundo, a engasgou.

Então meu já a curtir?
Resposta simples e humilde: Estava a ler o jornal.
We fall onto oblivion...
We fall onto oblivion...
Desculpa lá o atraso. Estás cá há muito tempo?
Há cerca de vinte minutos. Ela ainda não chegou.
Peço uma cerveja e pergunto quem é ela. Ela quem?
Pois, ainda não a conheceste pessoalmente. Repito: é filha do professor O.
Não te lembras? Quando lá foste naquela quinta-feira...
Certo. Quando houve aquela espécie de recolher obrigatório...
Hum... então se ela é filha do professor e eu sou pai de mim próprio...
Hum... que interessante, que perversão mais... que história invisível...
Exactamente.
Pergunto-me o que esta palavra dita em quatro tons de secura, rispidez, segurança e concordância quererá dizer. Penso: É disso que preciso - uma vida de pintor alimentada a ganza e um emprego como engenheiro de software.
A cor do cabelo interessa?
Claro que não.
A minha consciência pensa: vou precisar de comprar uma televisão, com o dinheiro que amealhei o ano passado não deverei ter problemas.
São por vezes engraçadas as coincidências astrológicas, pensa o misógino
R. que entra despercebido pois ninguém o vê, e ainda bem, indo sentar-se debaixo da prateleira da televisão. Após ser iniciado, digo que tive duas elas com o nome da minha avó, eram ambas do signo virgem tendo nascido no mesmo dia de Setembro. Conheci a segunda numa noite de maio que anos mais tarde se veio a revelar a data de anos de uma terceira ela. Talvez os astros estejam ligados. Eu misógino e/ou misantropo digo que não amei mais depois de maio. Pensem talvez moon uterus day 1.
Eis que ela entra. Traz longos cabelos castanhos encaracolados, calças de ganza agul clara e em maio traz uma camisola preta. Nos espelhos ela parece simplesmente fenomenal. Stunning. Pede com modos delicados desculpa pelo atraso e sorrindo fala de problemas domésticos com o seu gato.
Não sabia que tinhas um gato...
A minha consciência pergunta-lhe o que quer beber, aproveita para me apresentar e eu ofuscado por tanta luz retribuo o cumprimento.
Olá tudo bem.
Ela pede um fino.
O Blitz é um cenário apenas. Um foco de luz amarela ilumina o balcão, o chão é de taco encerado e os espelhos abismais.
Eu Claudio sou, vendedor de produtos domésticos, há quem diga que sou um drifter.
Eu sou Carlos, um ressacado da vida.
Eu sou Joana, professora primária.
We are all out, therefore we all are.
Todos se riem da verdade e quem são eles? Todos os nossos ídolos e admiradores.
O misantropo eu levanta-se e vai ao balcão pedir um café. Quando retorna lembra-se que o tempo é algo difícil de explicar, vai-se vivendo e às vezes damos conta de que o tempo passa, às vezes ele voa e ficamos sem saber onde estamos e quem sabe se fomos felizes e de que modo?
Sendo o Blitz um cenário destinado a dar vida social ao eu ressacado para que ele se possa sentir mais seguro na afirmação das suas posições e, por outro lado, permitir que o eu normal conheça a mulher de todos os meus sonhos uma primeira vez, é difícil pensar no que dirão durante toda esta situação. Talvez observando o mecanismo visceral da máquina de ar condicionado, do tabaco, do café, das pastilhas elásticas, do calor humano, das frases que são adivinhadas, tudo... até as que são mal compreendidas.

Que importa o amor numa vida?, pergunto-me eu misantropo. Aos quarenta a ternura dos quarenta e as obsessões religiosas, aos cinquenta a andropausa e a menopausa, aos sessenta a segunda infância, que importa toda uma vida? O humanismo é poesia, as crianças continuarão a chorar por falta de brinquedos e as bombas continuarão a cair. Qual será a nossa função?, seguir o destino?, e qual é o destino?, para que servirá criar se depois tudo cristaliza na nossa falta de vontade, na falta de compreensão das pessoas com as quais é necessário falar, em todo um mundo dito de normal para depois eventualmente ser tudo gravado e esquecido numa placa na via pública.

Do you like the Swans?
Do you like blue swans or Michael Gira's swans?
Como tudo é relativo.
Tenho de me ir embora. Volto dentro de dias. Estou a pensar arranjar quarto aqui. Se souberem de alguma coisa digam. Tchau.
Um beijo. Um beijo para todos os solitários.
Vou apanhar o foguetão.
O que tu não sabes meu querido Carlos é que, no momento seguinte à tua partida, o Armenia será destruído por um meteoro. Mesmo assim, ainda poderás acrescentar algo à história que o professor O. te entregou para publicação.
Claudio e Joana olham um para outro. Um momento depois beijam-se.
Justificação: Atracção fatal! Salvar-me-ás? Claro.
Porquê? Por sentirem o momento. Para quê? Talvez o conhecimento, o que nos distingue de uma máquina é termos um coração ou tomates ou uma cona.
Qual é o valor de um quadro oferecido...
Qual é exactamente a nossa relação com a pessoa a quem se oferece um quadro...
Será que essa relação é especial ao ponto de merecer um quadro especialmente concebido...
Porquê conceber um quadro a alguém especial...
Terá um quadro o valor especial adequado...
… Eu cá só ofereço quadros a elas. Diz Claudio.
… Eu cá não ofereço quadros a ninguém. Diz Carlos. Não sei fazê-los.
… Eu cá não me importo. Diz Joana.
A minha consciência decide ir finalmente para casa sozinha para ouvir rádio.
Nós somos...

e estamos ali na sombra projectada pelos estores como um quadro .

Pedimos dois shots e amamo-nos ao som de Mão Morta em Maio.


Assinado: Claudio Mur, suicida.

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Retirado do livro Kcoillapso, capítulo Z





(fotografia de época)


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