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O dia amanheceu frio. O vidro da janela está embaciado por dentro. Verifico que o scanner está inutilizado porque o seu vidro, onde assenta a folha a digitalizar, está igualmente embaciado por dentro. Terei de procurar uma chave-estrela, abrir a caixa e tentar limpar o gelo. Com um pouco de sorte, conseguirei não ser obrigado a comprar um scanner novo. A verdade é que o dinheiro não abunda. O quarto é húmido, virado a norte, o seu imi extra será talvez nulo, a luz é diminuta, mas permite pintar até às cinco da tarde, abro a janela quando acordo, faço a higiene, tomo o pequeno-almoço, leio informação e emails no computador e começo a pintar logo a partir das onze e meia, páro para fumar, o senhorio preocupa-se com a minha saúde, diz para eu colocar um calço no alçapão que dá para o telhado, assim estabelece-se uma pequena circulação de ar «e vc não morre intoxicado», reparo que as mortalhas se colam umas às outras devido à humidade, as capas dos meus discos de vinil também sofrem mesmo que protegidas por uma capa de plástico, estão a ficar onduladas com o frio e a humidade que entra pela janela, bateram à porta ontem quando estava no banho, era o correio com uma encomenda, deixou o aviso, tenho por isso de ir levantar os discos ao posto de correios, é o que me disponho a fazer agora, acabei de aquecer no microondas as batatas cozidas com pescada e ovo que sobrou da janta de ontem, estava excelente, é um sinónimo de liberdade poder dispensar que me cozinhem o almoço, poder fazê-lo eu mesmo sem recorrer à caridade social, pois não tenho mais de me pôr na fila dos desvalidos para almoçar de graça, permite trabalhar de manhã como fiz hoje, faço-o há três semanas, o quadro está quase terminado, falta secar, o quarto é frio, não apanha sol directo, vai demorar mais de um mês a secar, depois poderei entregá-lo ao Marco, agora saio de casa, caminho e chego ao posto de correios, sou atendido e dizem-me que tenho de esperar, o aviso diz que a encomenda estará disponível para ser levantada às duas horas, são agora uma e meia da tarde, não vale a pena voltar a casa, entro no café ao virar da rua, sento-me, depositam-me o café na mesa e cumprimentam-me, sou já quase «cliente habitual», nas minhas costas um casal na casa dos trinta fala com calor, em alta-voz, acho que nem dão pelo exagero do volume, não está ninguém por perto a não ser eu, mesmo que o quisesse não poderia deixar de ouvir, ela fala do marido que está turistando e passa seis meses de férias no ultramar apaixonado por um miúdo que podia ser seu filho, o amigo ouve com mágoa, custa-lhe ouvir o caso e não poder fazer nada, o marido deixa a mulher sozinha em casa enquanto viaja pelo ultramar, ela sem dinheiro porque perdeu o cartão multibanco da conta dele, onde lhe caem as rendas de duas casas herdadas do pai e também o rsi que recebem em conjunto, ela diz ao amigo que faz serviço em casa da sogra e ela pouco lhe dá além da refeição take-away para o jantar e ainda lhe manda umas bocas de estúpida, ela diz ao amigo que quer morrer e o amigo que gosta dela sente-se impotente perante o caso, apetece-lhe denunciar o caso, a ss tem de saber que este cidadão português, com um nome suficiente longo e cheio de sobrenomes e apelidos para ser descendente dalgum imperador, com duas casas já herdadas, e com mais duas a caminho quando a velha fechar os olhos e deixar de pagar o condomínio de luxo onde o imperador vive de aparência com a mulher mais nova que ele, a ss tem de saber que este cidadão português não está em portugal «de facto» a viver estando a receber rsi sem sequer procurar emprego, portanto, o amigo diz-lhe que ela tem de denunciar a miséria que está a passar, ele, o imperador gay não pode andar a colocar no face os dentes de cavalo do «maisquetudo» e passar impune, enquanto «te impede de teres os teus amigos e saires e te divertires e o mais engraçado é que ele age como se tivesse razão, como se fosse normal trocar a mulher por um menino e ainda impôr condições à mulher traída, só porque é herdeiro de pastel e tu uma pobre que caiu na sua teia!» Eu , perturbado, ouço tudo isto e olho para o relógio na parede, são agora duas da tarde e penso no que ouço enquanto me levanto para pagar e voltar aos correios, não evito olhar para o casal de amigos e reparar nela e dizer «Que mulher linda! Quem é o homem que a troca por uns dentes de cavalo, eu hei-de ajudar-vos, não só pelo que ouvi mas também pelos ciganos, pensar que acusam os ciganos de roubar o estado à custa do rendimento mínimo, pensar que um emigrante ou um sem-abrigo não tem direito ao rsi porque não tem morada registada há mais de um ano em portugal e depois um palhaço imperador engana assim o estado e a mulher... eu hei-de ajudar-vos a ficarem juntos os dois, pelo que vos ouvi dizer vocês merecem ajudar-se um ao outro, eu hei-de fazer um graffiti dizendo em letras garrafais «O imperador é rabo!» e quero ver qual é o amigo ou amiga dele que ao investigar o porquê de todo o escândalo não ficará do vosso lado, nada temais, eu hei-de ajudar-vos, agora vou receber Ahmed Abdul-Malik aos correios e voltar para casa para me deliciar com o oud e escrever esta história. A Ilga não pode dar razão ao imperador, o politicamente correcto não se pode aplicar aqui.
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Claudio Mur
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