segunda-feira, 6 de março de 2017

A cada instante pode intervir um condensador,
através do qual milhões de dejectos esparsos e inconfessados se objectivam monstruosamente em vontade

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Existem na nossa vida manhãs privilegiadas em que chega até nós a advertência, em que logo que acordamos ressoa para nós, através de uma deambulação ociosa que se prolonga, uma nota mais grave, como quem se demora, de coração confundido, a manejar um a um os objectos familiares do seu quarto no instante de uma grande partida. Qualquer coisa como um alerta longínquo se introduz em nós naquele vazio claro da manhã, mais pleno de presságios do que os sonhos; é talvez o ruído de uns passos isolados na calçada, ou o primeiro grito de um pássaro que chega debilmente através do último sono; mas esse ruído de pássaros desperta na alma uma ressonância de catedral vazia, esse grito passa como que sobre os espaços do horizonte, e o ouvido apura-se no silêncio sobre um vazio em nós que de repente não tem outro eco além do mar. A nossa alma purgou-se dos seus rumores e do vozear da multidão que a habita; uma nota fundamentl rejubila nela, despertando-lhe a exacta capacidade. Na medida íntima da vida que nos é devolvida, renascemos para a nossa força e a nossa alegria, mas às vezes essa nota é grave e surpreende-nos como o passo de um transeunte que faz ressoar uma caverna: é que uma brecha se abriu durante o nosso sono, é que uma parede nova se desmoronou sobre a pressão dos nossos sonhos, e teremos que viver agora por longos dias como num quarto familiar cuja porta desse inopinadamente para uma gruta.
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, página 111-112


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Ainda hoje, quando procuro na minha detestável história, à falta de uma justificação que tudo me recusa, pelo menos um pretexto para enobrecer uma desgraça exemplar, aflora-me por vezes a ideia de que a história de um povo é assinalada aqui e além como que por pedras negras, por algumas figuras de sombra, votadas a uma execração particular, menos por um excesso na perfídia ou na traição, do que pela faculdade que o recuo do tempo lhes parece conferir, pelo contrário, de se fundirem até se tornarem solidárias da desgraça pública ou do acto irreparável que, ao que parece, para além do que é ordinariamente dado ao homem, assumiram inteira e plenamente na imaginação de todos. Relativamente a essas figuras vestidas de sombra, cujos contornos e singularidades pessoais são poderosamente roídos pelo tempo mais depressa do que os de outras, a violência universal da renegação adverte-nos de que esta participa -- muito mais do que da reprovação cívica descolorida que os manuais de história dispensam sem calor -- do carácter lancinante do remorso, e que reaviva a chaga aberta de uma cumplicidade intimamente sentida; é que a força que repele para as margens da história, onde a luz cai mais oblíqua, essas figuras assombradas, é a de um doente assediado de maus sonhos, que sente, não como uma fria obrigação moral, mas como a mordedura de uma febre que lhe come o sangue, a necessidade de se livrar do mal. Tais homens talvez não tenham sido culpados senão de uma docilidade especial que todo um povo, pálido tarde de mais por ter abandonado neles, no terreno, a arma do crime, recusa confessar a si próprio que por instantes quis, porém através deles; o recuo espontâneo que os isola denuncia menos a sua infâmia pessoal do que a fonte multiforme de energia que os transmutou por momentos em projécteis. Mais estreitamente entretecidos da própria substância de todo um povo do que se fossem a sua sombra projectada, são verdadeiramente as suas almas penadas; o terror semi-religioso que os torna maiores do que o natural tem que ver com a revelação, de que são veículo, de que a cada instante pode intervir um condensador, através do qual milhões de dejectos esparsos e inconfessados se objectivam monstruosamente em vontade. O olhar que atravessa essas sombras perde-se numa profundidade em que se receia ler: o fascínio que exercem provém da suspeita que nos vem de que a comunicação privilegiada -- ainda que para o pior -- que lhes foi consentida os elevou, por alguns segundos em que valia a pena ser, a uma instância suprema da vida: dançamos como uma bóia num oceano de vagas loucas que a cada instante nos ultrapassam, mas um instante do mundo na plena luz da consciência conduziu a eles -- por um instante, neles, a angústia extinta do possível fez a noite --, o mundo tempestuoso de milhões de cargas esparsas descarregou-se neles num imenso relâmpago; o seu universo, refluindo de toda a parte até eles em torno de uma passagem em que imaginamos que a segurança profunda se mistura inexplicavelmente com a angústia, foi por um segundo o da bala no cano da espingarda.
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, página 202-204

'A Costa das Sirtes'
Julien Gracq
Tradução de Pedro Tamen
Ediçõa Edições António Ramos, Lisboa 1979

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