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Ao fundo ouve-se um leve murmúrio. Vindo por uma porta interior da memória e aproximando-se cada vez mais, assemelha-se à buzina de um comboio antigo. R. dorme, tem a sensação que alguém, uma entidade dentro do seu sonho dentro da sua memória, lhe quer chegar perto. R. caminha com um
machado nas mãos. Trata-se de uma situação instável. Está preso por correntes invisíveis ao tronco de uma árvore ao fundo de um rio de carris incandescentes. Essa entidade swingante subindo pela espinha até ao cérebro aponta-lhe o dedo e sussurra-lhe, é tudo fictício, encenaste tudo, é tudo mentira, encenaste tudo. Quando parece ir tocar o seu corpo e cortar o que resta da raiz, tudo fica claro e R. acorda com a voz swingante de Ka-Spel dentro da sua cabeça dizendo: I'll keep you alive.
Nove horas da manhã. O despertador dispara / martela insistentemente junto dos seus ouvidos.
Apetece-me atirar este objecto obsceno contra as paredes mas não posso fazer isso porque depois precisava de ir às compras.
Então acalma-se e vira-se para o outro lado aconchegando os lençóis.
Nunca durmo o suficiente, sempre menos que seis horas. Todos os dias ligo o rádio, ouço o mundo, é fundamental saber que os chineses estão em paz com toda a gente excepto com o Tibete, que o aborto foi finalmente legalizado, é bom saber que a dona Maria compra as hortaliças no hipermercado só porque lá as coisas são mais baratas que na loja do sr. J.
A manhã é fundamental. Tem cinquenta e um anos e hoje quebra a rotina, decide ignorar os conselhos do médico tais como se você não consegue passar sem o vício de fumar ao menos que fume lights. Hoje com alegria, estende a mão até à mesinha de cabeceira, retira de lá um amarrotado tabaco português, o velho Águia tabaco dos velhos e enrola um cigarro enquanto observa o trabalho de ontem.
Preciso de trabalhar melhor aquela luz, aquele vermelho não é irreal. Nada pode ser real.
Se esta manhã fosse igual a tantas outras ter-se-ia levantado e dirigido à palete de modo a encontrar a cor mas não. Hoje sente-se feliz de modo diferente. Hoje não se levanta. Aliás, se tivesse menos trinta anos talvez tivesse com o cérebro colado pelo segundo moks sem água ao abrir os olhos. Os seus olhos. Os olhos de R..
Hoje sou livre de ouvir o silêncio apenas interrompido pelos pássaros, sou livre de ver o tecto absolutamente branco, branco de estrelas e sorrir e sonhar, sonhar nele uma quantidade enorme de vidas dispersas.
São aproximadamente três horas da manhã. Deixei o Arménia em plena paz. A chuva continua a cair miudinha e os poucos candeeiros intactos reflectem-se nas poças de água existentes no passeio. Sei que estou sem rumo definido mas estou cansado, vou-me sentar num banco do jardim. Vou enrolar um cigarro. Tenho no entanto a sensação de que alguém me espia, alguém que poderão ser muitos, três mil pessoas a apontar o dedo. É melhor ter cuidado.
R. deita-se ao comprido enrolando-se na sua longa camisola cinzenta. Quando em estado de sonolência o sino começa a tocar a Sexta sinfonia Segundo movimento de Glenn Branca. Quando adormece entra num cenário artificial. Está num leito de madeira usando uma camisa fina, branca com folhas, e umas calças pretas de flanela. Está descalço. Numa fracção de segundo, uma pequena luz branca toca-lhe nas virilhas mas logo se esvai para longe. Então R. acorda sobressaltado olhando para todos os lados, para as seis barreiras que o separam do espaço real. Nem uma só janela. Ao longe nos cantos dessas barreiras minúsculas fosforenciais, formas que sugerem pirilampos começam a luzir. Ao principio inofensivas, depois começam a agitar-se. Alongam as suas espadas de laser em várias direcções mas sempre aproximando-se, os tentáculos chegando perto. Não sabe o que fazer. Nem uma só janela. Uma luz verde atinge-o no ombro, é sua cor favorita, a marca fica registada, torna-se o símbolo de uma primeira acção. Um olho verde. Um risco verde confunde-se com a cor branca da camisola que transparece a cor vermelha do seu corpo. Uma voz de igreja diz-lhe: eu perdoo-te R., eu perdoo-te, eis a minha bênção. Não sabe o que fazer. Sente calores frios pelas costas abaixo. Nem uma só janela. Agora é a sério. As luzes lançam-se de frente para ele e sem lhe tocar vão-lhe tirando as medidas exactas, esquadrinhando ângulos, amplitudes. Já não está deitado, sentou-se na borda do leito de madeira. Puxa de um cigarro mas uma luz vermelha tira-lho da boca. Compreende então que está perdido. Nem uma só janela. Repara que do seu lado direito, um fusil de Napoleão espera que ele lhe toque com carinho. Os calores frios então invertem o sentido da sua marcha, encontrando-se agora ao nível do pescoço. Dentro de breves momentos estarão já a subir pelas faces albinas em direcção às poucas madeixas que ainda possui. Surgem então os tambores. Vem do lado daqueles poderosos lasers. Começa a limpar o fusil. Repara que só tem um cartuxo, tem ainda para o caso de precisar a baioneta Just-in-case. A luzes continuam a fazer-se notar em movimentos tipo hit and run. Faz tenção de colocar o velho fusil no ombro direito e olhar pela mira telescópica uma rua calcetada ao fim da tarde e/ou a fachada de uma casa de pedra. Desce a rua sempre com os olhos na mira, apontando às luzes que continuam a surgir. Pára numa fonte. Do outro lado a casa acabou e tu e/ou ele pode ver uma cerejeira com pequenos gémeos idênticos, idênticos e violeta e púrpura, um menino e uma menina. Então uma luz surge uma vez mais, uma luz púrpura e ele não resiste mais. Foca o alvo e bang... um pequeno melro cai em espiral a seus pés junto aos cantos da fonte. Continua a olhar pela mira e vê esse melro transformar-se num gato bebé com um pequeno ponto cruz no seu peito, o ponto de mira eu verifico. Quando a ferida sara, levanta-se e então ronronando vai deitar-se a seus pés pedindo alimento enquanto R. olha de pé o fusil, que sendo comprido é o seu terceiro membro. Após uma breve interrupção as luzes voltam, surgem agora aos milhares. Começa agora a suar de verdade. O fusil roda no ar e na última extensão do seu corpo, a luzes atingem-no em todas direcções, electrochoques cegam-no parcialmente. No entanto, não desiste e continua a apontar o mais que pode, consegue até que elas se extingam num momento sendo substituídas por tambores em compasso de espera. Agora também ele espera, ouve. Tem o fusil em pé, é o seu terceiro membro, ele espera. Os tambores deixam de tocar e ela surge, a luz negra, o eclipse total. Então R. levanta o fusil virando-o de encontro a si próprio com a baioneta mesmo à frente do rosto. Ela, esta luz é agora parte constituinte do fusil e pretende engoli-lo. Um ultimo compasso, um ultimo tambor. R. puxa para dentro de si a baioneta e a luz apaga-se e tudo termina.
R. acorda do banco de jardim todo encharcado. A seu lado vê no chão estilhaços, um candeeiro preto. Passa o coveiro com a sua lamparina antiga a óleo. R. olha para o relógio. Cinco horas da manhã. Decide seguir o coveiro que vai completamente nas nuvens. Repara que recuperou os velhos sapatos e a camisola cinzenta. Agora faz planos para enrolar um cigarro enquanto sobe a rua. Uma medalha de cem metros olímpicos de Bolt à sua frente, o coveiro entra já numa álea em terra batida rodeada por árvores enormes, das quais não recordo o nome, que dão acesso ao cemitério. Quando finalmente R. o apanha, ele. o coveiro, começa a falar:
Ontem, o meu filho contou-me que lera em qualquer sítio a história do regresso malogrado de um homem após uma longa estadia no éter. Aterrara no mesmo lugar de onde tinha partido trinta anos antes, mas agora nada de pompa ou circunstância. Tudo vazio. À saída apenas viu uma pessoa velha de bengala. Pensou em chamar um táxi mas desistiu. Seguiu a pé decidido a encontrar alguém que lhe explicasse o suicídio. Nem sem sequer um ramo de flores. Finalmente entrou na cidade às dez da manhã, a coelhinha da páscoa aproximava-se, ouviam-se os pássaros que saem dos ninhos de uma palmeira. Caminhou pela rua apoiado por uma bengala e tropeçou numa velha vigorosa que se dirigia para a igreja, de olhos cegos falando-lhe em modos incompreensíveis, dizem que era a sua única mãe, diz o coveiro fazendo uma pausa. Então continuou a andar estupefacto, viu três sombras verdes que resolveu ignorar saindo das lojas. À sua frente viu três velhos vestidos de fato e gravata mostrando cartões a meninos e dirigindo-se igualmente para a igreja. Parou nos semáforos que dão prioridade verde aos táxis amarelos e laranjas surgindo desgovernados. Quando finalmente a sua prioridade verde surgiu e atravessou aquela rua, parou numa montra para ver uma série de quadros com o nome de Cenas de um covil. A principio não quis querer mas os seus olhos não o podiam enganar com tanta certeza.
O homem, continua o coveiro, ainda não pronunciara uma única palavra. Foi esse o erro. Quando gritou de espanto não reconheceu a sua própria voz, aquela voz doce que a sua mulher de cabelos ligeiramente pretos lhe dissera que ele possuía. Então acreditou que aquilo que via no espelho quebrado em ângulo recto na montra era mesmo ele. Uma cópia, uma imagem, um ser disforme e retorcido, sem dentes, sem cabelo e verde, muito verde.
Destroçado, continua o coveiro, decidiu largar a bengala, ultrapassou a ponte e chegou à estátua de Cristo, subiu a custo lá cima, observou com calma, com toda a calma possível do momento o espaço, tão diferente de tudo aquilo que deixara para trás em prole da descoberta científica, e atirou-se.
R. interrompeu perguntando: essa história foi inventada ou está escrita?, que idade tem o seu filho, é albino?
O coveiro respondeu que todos o somos um pouco, mas que isso não passa de um pormenor que em nada pode alterar os propósitos pelos quais você me seguiu. Dito isto parou num túmulo e disse: aqui pode ver com os seus próprios olhos a campa desse homem que nunca foi reconhecido, pode ver também que por ele velam dia e noite, consegue ver não consegue?, um anjo com sombra e um pote de flores albinas.
Sim, vejo um anjo azul, lindo como nunca tinha visto antes. Obrigado.
Ik ben a zombie.
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Claudio Mur em 'Kcoillapso'
eu sou demasiado sintética para comentar este texto, sei que gostei e quero dizê-lo e porquê, por isso vou procurar encontrar as palavras, porque parece uma cena de twilight ou de um livro de ficção científica (eu adorava ler livros de FC) por causa das cores, porque me parece que procuro e encontro um sentido como se estivesse a ler um livro, que é meu, mesmo não sendo o de quem o escreveu. gostei
ResponderEliminarEste é um texto de futurologia e logo pode ser visto como FC, daqui por alguns anos se verá se acertou, pelo menos o aborto já é legal e este futuro já se cumpriu, o despertador já se tornou obsoleto: agora usa-se o telemóvel; os chineses poderiam ser os norte-coreanos ou o amarelo do cabelo do Trumpas e as hortaliças continuam caras mas ao menos na loja do sr. J são frescas e não preciso de gastar solas de sapatos para encontrar um Contenente (sic :), o tabaco Águia desapareceu de circulação e já não vou poder fumá-lo quando fizer 51 anos.
EliminarA maior parte do texto foi escrito até 1997 e na altura chamava-se 'As desilusões da cor'.
Quanto à propriedade do texto, ele é de quem o quiser :)