segunda-feira, 7 de agosto de 2017

É a primeira pergunta do assistente social.

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.. Decerto -- torna Boris --, se o tivesse conhecido em Manila poderia ter feito alguma coisa por ele. Podia ter-lhe dado trabalho então...
Manila! Jesus, isto parece-me grotesco! Que tem Manila a ver com o que se passa agora? É como dizer a um homem que se afoga: «Que pena, que pena! Se ao menos o tivesse ensinado a nadar!»
Toda a gente deseja endireitar o mundo: ninguém deseja ajudar o vizinho. Querem fazer de nós um homem sem ter o corpo em conta. Está tudo vesgo. E Boris estava também vesgo quando lhe perguntou: Tem parentes na América? Eu conheço isto. É a primeira pergunta do assistente social. A sua idade, nome, morada, ocupação, religião, e depois, com muita inocência -- o mais próximo parente vivo, faz favor! Como se uma pessoa não tivesse passado por isso tudo. como se não disséssemos a nós mesmos, mil vezes -- «Morrerei primeiro! Morrerei de preferência a...» E eles, sentados muito placidamente, na nossa frente, perguntam o nome, o lugar nunca revelado da vergonha, e vão lá imediatamente, tocam a campainha e deitam tudo cá para fora -- enquanto uma pessoa está sentada a tremer e a suar de humilhação.
Max responde à pergunta. Sim, tinha uma irmã em Nova Iorque. Já não sabe onde ela se encontra. Mudou-se para Coney Island, eis tudo. Decerto, não tinha motivo para abandonar a América. Ganhava lá bom dinheiro. Passava a ferro e pertencia ao sindicato. Mas, quando os negócios começaram a dar para o torto, ele, Max, sentado num banco do parque de Union Square, compreendeu que não valia nada. Montados nos seus garbosos cavalos, os polícias investiam sobre o passeio e afastavam de lá os desempregados. Porquê? Por se estar desempregado? A culpa era sua... ele, Max, fizera alguma coisa contra o governo? Aquilo enfureceu-o, amargurou-o e começou a sentir aversão por si mesmo. que direito tinham de lhe pôr as mãos em cima? Que direito tinham de o tratar como um verme, de levá-lo a pensar que não passava de um verme?
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, página 35
"O olho cosmológico"
Henry Miller
Edição Editorial Estampa, 2ºedição Julho 1997

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Aconteceu-me algo parecido quando precisei de ajuda oficial, perguntaram pelo telefone da minha mãe. Ainda hoje vejo pessoas na rua que me agridem só por eu existir, um dia destes uma cabeleireira vinha a descer a rua com a companheira e um pequeno cão, o cão ladrou-me, ela afastou-o e disse: -- Ainda se fosses comer Alguém. Eu nada disse, o que ela queria era que eu respondesse para que dali surgisse a algazarra dos ditos e contos, se eu lhe respondesse qualquer coisa como «És linda como a noite, tens penteado muitos camones?, eles não te dão que chegue?, precisas de me incomodar?» Viriam certamente acusações em altos berros para todo o bairro ouvir dizendo isto e aquilo como aconteceu a semana passada quando, por causa de um cano da água, tive o vizinho a chamar-me de porco e de pintor da droga e o filhinho, aprendiz de gorila de claque, a querer bater-me. Pouco faltou para que eu entrasse em casa e pegasse no martelo e fosse lhes responder à letra dizendo «andem cá agora, quem são vocês para me insultarem!», mas foi melhor não ter feito nada porque o senhorio, ainda assim, veio e disse-me que «a corda parte sempre pelo lado mais fraco», pelo que eu engoli a mensagem. Não deixa de ser irónico porque o cano pertencia ao senhorio e eu estava a defender o seu património, é!, as pessoas odeiam o meu modo de vida, pisam no mais fraco e lambém o cu ao mais forte.
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Claudio Mur

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