terça-feira, 1 de agosto de 2017

O fim da cidade paraíso

R. sempre fora um nostálgico. Não tivera uma infância. Afastado da sua cidade natal sofria do mal das saudades. Fora assim durante os estudos universitários, seis anos passados a ir e vir de comboio ao fim-de-semana, da universidade para casa, nascera com dezoito anos e saíra de casa praticamente sem conhecer a cidade mas já nostálgico, a cidade era mito, sabia que voltaria um dia, passou parte desses anos imaginando subir as ruas na direcção do autocarro, que o levaria a casa de seus pais, carregando uma tela para pintura. R. estudava electrónica mas viera-lhe o desejo de pintar quadros, não se importava muito com o futuro, tinha apenas o desejo um pouco romântico de pintar, a sua relação com a arte era ambígua, sabia que era difícil vir a ter um nome estabelecido no mundo da arte, mas na sua alguma inocência pensava que seria o suficiente forte, que produziria obras que desmaiariam os críticos, sonhava com uma exposição retrospectiva em Serralves quando fosse um decano de oitenta anos, uma bomba prestes a explodir com o alguma-vez-conhecido, o alguma-vez-feito na pintura em Portugal, sonhava que iria sempre andar pela sombra, ilustre anónimo sem ninguém nele reparar até um dia... um dia esse dia chegará, dizia ele e olhava para alguns quadros na parede daquele que pôde ser considerado o seu primeiro quarto atelier, O Covil, é esse o nome que lhe deu, esses quadros deram-lhe um fundamento, um futuro que ele quereria aprofundar, disse a um pintor chamado Zé de Aveiro que o seu futuro seria trabalhar como engenheiro e viver a vida comprando telas para pintar, mais tarde quando o seu futuro imediato foi pôr parte do oceano entre si e a sua cidade natal, mais tarde quando emigrou, dando um passo de fuga em frente, disse a um colega de trabalho que não queria ser um Sunday Painter, era algo que ele não queria, isso de ser pintor nas horas vagas, esta mudança de ideias aconteceu no espaço de um ano, a sua mente mudou no espaço de um ano, a ilha para onde foi residir e trabalhar deu-lhe o conhecimento de uma nova língua, havia quadros em todos os bares e cafés que frequentou, havia bibliotecas, estúdios de arte abertos ao público, centros artísticos e universidades, tudo de fácil acesso, mas faltava a mulher, R. não tinha mulher nem deixara namorada em local nenhum, deixara apenas a lembrança, ela fora sua até ao momento em que a sua vida explodiu, depois recusara continuar com ela porque não tinha já o amor-próprio para gostar de si próprio e para poder gostar de estar com alguém, o seu futuro era fugir do mundo mas haveria sempre mundo em todo o lado e ele não contava que tivesse saudades dos portugueses, quando foi disse que não voltaria, enquanto lá esteve tentou permanecer ou mesmo mudar de país de trabalho mas... a verdade é que R. não sabia como safar-se sozinho num país estrangeiro, o dinheiro que recebia era pouco, o contrato terminara e ele perdera a bolsa que recebia de Portugal, estava já a trabalhar por menos dinheiro à espera de uma renovação com aumento de salário, tal não ocorreu e R. decidiu apanhar um avião de volta, voltou a casa pelo natal, parecia um extraterrestre, trazia na bagagem livros de arte, música nova, estudos em papel, uma ou outra tela pintada, e muita vontade de ser alguém... na arte, a electrónica era uma miragem, continuava a não pensar seriamente no ganha-pão, não aprofundava os seus conhecimentos, durante uns anos ainda teve um currículo e arranjou empregos mas o seu persistente desinteresse fez com que acabasse despedido ou se demitisse, durante estes anos que se podem chamar de adolescência residiu parcialmente em casa dos pais, o restante tempo em quartos alugados nas cidades onde de momento trabalhava, chegou até a viver no hotel, a empresa pagou, a idade adulta chegou no Verão em que fez trinta e cinco anos e foi internado pela última vez, a quarta vez, a idade adulta chegou porque R. conheceu a mulher que o fez esquecer a mulher que estivera mais de dez anos na sua memória, não conhecera até aí ninguém que o fizesse esquecer essa mulher, essa mulher nova era uma aspiração de R., algo que ele escrevera como: ter um futuro sem passado. Esta mulher nova fê-lo esquecer tudo o que dentro da cabeça de R. o preocupava e o obcecava: a sensação de culpa, a sensação de não gostar o suficiente de ninguém, a sensação de ver que não havia ninguém que pudesse voltar a interessar-se por ele, sim, porque ele degradara-se muito a nível físico, estava sem cabelo, gordo, com poucos dentes não cariados, com uma doença para toda a vida. A razão para toda esta velhice precoce estava no facto de ele ter querido viver intensamente, recuperar o tempo perdido já que ele aos dezoito anos não tinha o entendimento de um jovem de dezoito anos, por isso eu digo que ele abriu os olhos para o mundo e começou logo a andar apenas na universidade, para trás está o olvido, ainda hoje R. sabe que o mundo não o desejou. Esta mulher nova desejou R., teve uma necessidade imediata de R., R. sentiu desejo e depois amor, aprendeu o que era o amor adulto, esse misto de carinho, compromisso, obrigação e miséria, libertou-se do passado, foi até capaz de, quando mais tarde a voltou a ver, ignorar essa mulher-passado porque reparou que já não gostava dela, ela também não, R. viveu livre um novo presente, a dois, um presente proletário, ela empregada de limpeza, ele trabalhando num armazém de artes gráficas. Foram felizes durante algum tempo, alguns anos que deram uma raiz a R., consolidaram a crença que o passado foi necessário, foi necessário errar e sofrer com os erros, R. vive. 
R. é hoje adulto, vive sozinho na cidade onde nasceu, vive com a sua reforma e a ajuda da mãe e de uma amiga, já não é pintor de Domingo, não vende muitos quadros mas vai tendo dinheiro para comprar uns discos e vai pagando a renda a horas, continua a não se dar bem com os vizinhos, talvez seja a altura de se enfiar no casulo e só aparecer daqui a trinta anos, é claro que tudo isto é imaginação, eu é que escrevo sempre o mesmo «desde que não deixe de pintar tudo é suportável... haverá sempre vida nas ruínas da cidade paraíso, o problema é quando não se aguenta com a cruz, mais vale deixá-la na berma da estrada.»



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