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Não devemos, no entanto, deixar de dar atenção a dois trechos significativos [na Cidade do Sol de Campanella]: um deles é sobre o reconhecimento do papel que a invenção pode desempenhar na commonwealth ideal. O povo da Cidade do Sol possui veículos movidos pela força do vento e barcos «que navegam sobre as águas sem remos e sem a força do vento, mas antes por meio de um engenho maravilhoso». Existe uma antecipação muito clara dos avanços da mecânica tão visíveis no século XVIII. Na parte final da narrativa do capitão, o Grão-Mestre exclama: «Ah, soubésseis o que os nossos astrólogos contam sobre a era que se avizinha, que terá mais história em cem anos do que o mundo inteiro viveu nos quatro mil anos já volvidos! O que nos dizem sobre a maravilhosa invenção da imprensa e sobre as armas e o uso do íman [...].» Estando as artes mecânicas muito desenvolvidas, o trabalho alcançou um estatuto de dignidade na Cidade do Sol: não há escravatura. Todos desempenham a sua quota-parte do trabalho comum, pelo que não são necessárias mais do que quatro horas de trabalho por dia. «São ricos porque não lhes falta nada, pobres porque nada possuem; e consequentemente, não são escravos das circunstâncias, as circunstâncias servem-nos a eles.»
O outro ponto sobre o qual a observação de Campanella se revela extremamente perspicaz é a sua análise da propriedade privada e do domicílio privado com a commonwealth. Ei-lo:
Dizem que toda a propriedade privada tem origem e se desenvolve porque cada um de nós possui casa, esposa e filhos. Isto leva ao amor-próprio, pois todos queremos deixar riquezas e honras aos nossos herdeiros. Então, ou somos tentados a deitar mão à propriedade pública -- quando somos poderosos e temidos; ou tornamo-nos avarentos, astuciosos e hipócritas -- quando somos débeis, de poucos recursos e origem humilde. Mas removido o amor-próprio, resta apenas amor pela comunidade.
Como evitar que a utopia comunitária seja neglicenciada devido ao investimento de cada indivíduo na sua pequena utopia privada?
Este é o problema crucial que todos os nossos utopistas têm de enfrentar, e Campanella segue os passos de Platão na solução proposta. Será talvez inevitável que a experiência de vida de cada um dos utopistas se reflicta na solução que apresenta, dando-lhe muito da sua cor. É aqui que as limitações dos nossos utopistas se tornam claras. More e Andreae, homens casados, defendem a família individual. Platão e Campanella, solteiros, propuseram que os homens vivessem a vida do monge ou do soldado. Talvez estes dois campos não estejam tão afastados como poderia parecer. Se adoptarmos a teoria de Edward Westermarrck, esse excelente antropólogo, facilmente aceitaremos que o casamento é uma instituição biológica, sendo a promiscuidade, no mínimo, uma forma pouco usual de acasalamento. Platão ter-se-á apercebido disto, deixando-nos em dúvida sobre se os seus artífices e lavradores paticavam de facto a comunidade de esposas -- porventura abrindo, assim, o caminho para uma solução segundo a qual a vida normal, para a maioria dos homens, seria o casamento, com os seus interesses e lealdades de natureza individual, enquanto os elementos mais activos da comunidade praticariam uma forma menos exclusiva de acasalamento. O pintor Van Gogh fornece uma pista ao afirmar que a vida sexual do artista terá que ser a do monge ou a do soldado, pois de outra forma perturba o trabalho criativo.
Podemos deixar esta questão em aberto, desde que compreendamos que todas as utopias dependem da nossa capacidade de chegar a uma solução.
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, página 92-93
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Se Coketown, a Casa Senhorial e a utopia nacional tivessem permanecido no papel, seriam indiscutivelmente contribuições agradáveis e edificantes para a nossa literatura. Infelizmente, estes mitos sociais são muito poderosos. Moldaram as nossas vidas e deram origem a muitos males que, como ervas daninhas e malcheirosos, ameaçam sufocar a vida boa nas nossas comunidades. Não é por serem utopias que tenho vindo a criticar tão afincadamente estes mitos, mas por continuarem a provocar tantos danos. Pareceu-me, por isso, que valia a pena realçar que eles são tão reais como a República ou Christianopolis. Poderemos talvez abordar as nossas instituições nacionais com um pouco mais de ânimo se nos apercebermos até que ponto são criação nossa; e com plena consciência de que, sem o nosso eterno «desejo de acreditar», elas desapareceriam como fumo levado pelo vento.
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, página 195
'História das utopias'
Lewis Mumford
edição Antígona
tradução de Isabel Donas Botto
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