segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

O padrinho

Não há aqui ressabiamento e muito menos misoginia, há o aceitar da realidade. Eu e a amiga que tenho na vida real somos agora irmãos. Fomos homem e mulher, agora somos só irmãos. queremos o bem, o melhor para o outro. Ela gostaria de vir a ser a madrinha de um filho meu e eu aceito que o Cá seja um bom sucedâneo meu. Tenho de admitir que é um senhor que a ama, talvez mais do que eu alguma vez a amei. E ele tem também a disponibilidade e a estabilidade necessária para que a minha amiga viva bem. É claro que este viver bem é aquele que a sociedade qualifica como casamento feliz, o presente deles é bom, melhor do que algum que eu lhe dei, e o futuro deles contém projectos mais adequados à sua escala, ao que ela qualifica de bom viver. 
Cá é uma exelente pessoa, mais velho que nós, podia ser aliás meu pai, vive num bom apartamento, tem uma reforma fruto do trabalho de uma vida inteira e não é um reformado inválido como eu, é um senhor respeitado pela vizinhança que dele só diz bem. É também o cozinheiro que eu não consegui ser para ela: no meu tempo, ela pesava trinta e poucos quilos, hoje pesa cinquenta. Isso diz-me que não era só por ela achar insosso o meu arroz que não jantava o meu menu quando me vinha visitar. E com efeito, ontem, ele cozinhou javali no forno com batatas e arroz à parte. 
Eles convidaram-me e eu aceitei ir jantar à sua casa. Estive lá quatro horas e vim-me embora por volta das onze da noite. Conversámos os três de modo franco, sobre a relação deles e o que às vezes corre mal e eu apercebi-me que talvez ele não se tenha apercebido do papel que eu tive na vida dela há bem pouco tempo, e eu deixei que ela se tenha resguardado por detrás da frase «ele é o meu irmão aqui em Derza», ela é diplomática e o segredo foi por mim igualmente guardado, e foi por isso que eu-próprio fui capaz de o ouvir afirmar sem a minha face trair o coração, que não acreditava que ela tivesse sido tão feliz sem ser na companhia dele, deixei-o continuar a ser feliz mas fui-lhe dando indicações de que pelo menos a nível psicológico eu fui importante na vida dela. 
Falei-lhe que quando a conheci ela me falava fixamente da ponte Luis I e ela não negou eu dizer que ela só não se atirou rio adentro porque eu lhe disse que o deus dela pune os suicidas com o inferno, falei-lhe que me neguei a aceitar que ela quisesse comprar uma caçadeira e que ela andava à procura de um suícidio assistido através de um homicídio provocado, falei-lhe que o estado em que o marido a havia deixado a tinham deixado permeável a qualquer oferta de emprego em troca de corrupção emocional. «Acá, ela bebe para esquecer, ela não é má pessoa, só não consegue controlar o número de garrafas, não sabe dizer não ao álcool, não sabe dizer esta foi a última.»
Ao dizer isto, ele concordava e dava exemplos do que corre mal entre eles, parece que ela teve um clique e partiu pratos, houve discussão e os vizinhos chamaram a polícia, eu disse então para ela que no meu tempo nunca nos zangámos a sério e perguntei-lhe porque faz ela isso. E percebi que ela tem de facto muitos quartos no seu coração, tem uma casa no seu coração e um dos quartos é habitado por mim. Foi com esta aceitação e convergência de ideais que nos conhecemos há quase três anos. Será sempre assim. Ela não expulsa do seu coração os homens que lhe quiseram bem, estes homens tornam-se irmãos. Eu sou irmão dela. E disse-lhe que não devia ignorar que se o seu passado foi acidentado e se o seu presente é bom, não deve estragar o futuro que vai construindo a cada dia com Cá. «Todos nós estamos a correr para velhos e tu também minha irmã, quantos homens bons irás tu ainda encontrar na tua vida. Olha que o Cá é um homem bom e faz tudo por ti.»
Faz mais do que eu alguma vez poderia fazer e contento-me hoje com o papel de padrinho. O meu caminho segue paralelo. Sinto-me bem por ter conseguido terminar uma relação sem que houvesse dor e sinto-me satisfeito por ter passado o testemunho a uma pessoa boa. Ela viverá melhor com ele.

Dela guardarei, além do seu carinho, a voz maravilhosa que me deu a conhecer da Clara Nunes. um exemplo em baixo:



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