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As histórias de duplos terminam geralmente mal. Expressão exacerbada de um narcisismo mal integrado, o duplo surge quando a relação com o outro falha ou é falseada: encerrado num solipsismo patológico, o sujeito procura fabricar o fantasma do outro que lhe falta, e o reflexo acaba por desempenhar este papel imaginário. Opera como um mecanismo de defesa através do qual o sujeito expulsa uma parte interior que censura, delegando nela a responsabilidade de realizar os seus desejos inconfessáveis. O duplo, liberto de qualquer inibição e forjado para escapar às mais variadas frustrações, dispõe então de uma tal energia, que eclipsa o modelo e absorve a sua vitalidade. Daí esses dois traços inseparáveis que os escritores descreveram: o reflexo é que é nítido, preciso, cruel, enquanto o modelo perde a sua substância e se torna desfocado. Por outro lado, o duplo impõe uma personagem desagradável e ameaçadora que persegue o seu modelo até que a morte acabe por restaurar a unidade.
Num célebre livro publicado em 1914 [*], Otto Rank analisou os fundamentos arcaicos da crença no duplo e notou que a sombra e o reflexo na água, através dos quais pela primeira vez o homem viu o seu corpo, se tornaram igualmente «a primeira objectivação da alma humana». Resultante da divisão do eu, o duplo teve por missão proteger o homem contra a morte, porque essa réplica exacta de si próprio era dotada de uma vida real e imortal que lhe assegurava a sua sobrevivência no futuro, depois do desaparecimento do corpo. Mas, ao mesmo tempo que o duplo serve de garantia de imortalidade, ele está constantemente a lembrar-lhe e a remetê-lo para o seu fim, qual espectro da morte que nunca o abandona. Promessa de morte e força de vida: este traço ambivalente marca a maior parte das manifestações do duplo; ele alivia provisoriamente a angústia do sujeito, ao mesmo tempo que o persegue.
Em muitas tradições folclóricas, o duplo, sob a forma de sombra ou de reflexo, simboliza a vitalidade, a energia, a renovação ou ainda a fecundidade, e a perda da sombra - tema muito explorado pela literatura fantástica do século XIX - amputa o sujeito das suas forças vitais, provoca a angústia e atrai a desgraça. Assim se explicam todos os azares associados ao espelho que se parte.
(...) No conto de Hoffmann «As Aventuras da Noite de São Silvestre», a sombra é substituída pelo reflexo. Sombra e reflexo concretizam as aspirações e os vícios do seu proprietário, revelando a cisão do eu. Assim, o duplo liberta e chama a si pulsões interditas, aliviando o sujeito, que desobriga da sua responsabilidade. Mas, ao mesmo tempo, de exutório prestável, transforma-se num eu recusado e hostil, que se vinga.
Por vezes o reflexo ausenta-se completamente do espelho para afirmar a sua total emancipação. A vista, sem o desejo, deixa o espelho vazio. O sujeito cindido olha-se mas não se vê, ou não se reconhece; abandona o seu corpo e manda o reflexo embora para escapar a um duplo perseguidor.
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, páginas 346 - 348
'História do Espelho'
Sabine Melchior-Bonnet
tradução de José Alfaro
edição Orfeu Negro
[*] O livro de Otto Rank chama-se na tradução francesa 'Don Juan et le Double', Denoël, 1932
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