quinta-feira, 14 de março de 2019

O eternamente inatíngivel

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Em tempos pensei que ser humano era o objectivo mais elevado que um homem podia ter, mas agora compreendo que isso se destinava a destruir-me. Hoje orgulho-me de dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que não tenho nada a ver com credos e princípios. Não tenho nada a ver com a máquina rangedora da humanidade: pertenço à terra! Digo-o deitado na minha almofada e sinto os cornos irromperem-me das têmperas. Vejo à minha volta todos os meus antepassados chalados, dançando à roda da cama, consolando-me, incitando-me, azorragando-me com as suas línguas de serpente, sorrindo e troçando de mim com as suas esquivas caveiras. Sou inumano! Digo-o com um sorriso louco, alucinado, e continuarei a dizê-lo nem que chova crocodilos. Atrás das minhas palavras encontram-se todas as esquivas caveiras sorridentes e trocistas, algumas mortas e sorrindo há muito tempo, outras sorrindo como atacadas de trismo, outras ainda sorrindo com a careta de um sorriso, o antegozo e o pós-gozo do que está sempre a acontecer. Mais nitidamente do que tudo o mais vejo a minha própria caveira risonha, vejo o esqueleto a dançar ao vento, serpentes saindo da língua putrefacta e as empoladas páginas de êxtase viscosas de excrementos. E junto-me ao meu lodo, ao meu excremento, à minha loucura, ao meu êxtase, ao grande circuito que flui através das cavernas subterrâneas da carne. Todo este vómito não solicitado, não desejado, bêbedo, fluirá interminavelmente através da morte dos que chegarem ao vaso inexaurível que contém a história da espécie. Lado a lado com a espécie humana existe outra espécie de seres: os inumanos, a raça dos artistas que, atraídos por impulsos conhecidos, pegam na massa sem vida da humanidade e, graças à febre e ao fermento com que a impregnam, transformam essa pasta mole em pão, e o pão em vinho, e o vinho em canção. Do adubo morto e da escória inerte geram uma canção contagiante. Vejo essa outra raça de indivíduos saqueando o Universo, virando tudo de pernas para o ar, sempre com os pés atolados em sangue e lágrimas e sempre com as mãos vazias, estendidas, a querer agarrar o que fica para além, o deus fora de alcance: chacinando tudo aquilo a que poodem chegar, a fim de acalmarem o monstro que lhes dilacera as entranhas. Quando arrancam o cabelo no esforço para compreender, para alcançar o eternamente inatíngivel; quando berram como feras enlouquecidas e dilaceram e escorneiam, quando fazem isso vejo que está certo, que não há outro caminho a seguir. Um homem que pertence a esta raça deve erguer-se no lugar mais alto com linguagem inarticulada na boca e rasgar as próprias entranhas. É certo e justo, porque tem de o fazer! E tudo quanto ficar aquém deste espectáculo assustador, tudo quanto for menos arrepiante, menos aterrador, menos louco, menos ébrio e menos contagiante não será arte. O resto é contrafacção. O resto é humano. O resto pertence à vida e à ausência de vida.
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, páginas 248-249

''O Trópico de Câncer''
Henry Miller
Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues
Edição Livros do Brasil





2 comentários:

  1. Já tinha ouvido porque deixaste o link em outro blogue. Desconhecia mas vidrei!

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    1. Se vidrar significa virem as lágrimas as olhos, não havia necessidade :)

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