quarta-feira, 19 de junho de 2019

Ana, o nosso «anjo negro»

A Ana de Viana era uma amiga de alguns meus amigos que lhe chamavam o anjo negro. A música que nós ouvíamos era negra, caótica conflituosa depressiva, sagrada e hereje. Foi com esse sentido que associei a alcunha de anjo negro. Ela era da nossa idade, gostava de poesia, já não sei o que estava a estudar mas penso que era de letras, ela gostava de nós, dos amigos que se tresmalhavam dos cursos que estavam a tirar para começar a escrever palavras ou rabiscar desenhos ou tocar um instrumento, de todos os que mesmo fumassem um charro mas tivessem actividades criativas fora da academia, ela era amiga. 
Nestes tempos, eu já a conhecia de vista, já com ela teria trocado palavras mas só em 96 a conheci, na véspera de Vilar de Mouros meti-me num comboio à noite para Viana do Castelo, o destino seria apanhar uma camioneta de Caminha para o recinto dos concertos. Não me recordo já como mas encontrei quando, passando da meia-noite, o comboio parou em Viana, estação terminal, e só havia ligação para Caminha na manhã seguinte, encontrei amigos e encontrei a Ana, estivemos nas esplanadas da cidade e acabamos, alguns de nós, a dormir em sua casa nessa noite. Estavam amigos dela em casa e falou-se de poetas e da revolução. Recordo-me de num quarto ter visto um lp de Leonard Cohen, o «Songs from a room», é o que me lembro, lembro-me que foi essa memória que me fez comprar o cd desse album e que entretanto se extraviou, tendo já sido substituido por uma nova cópia. Na manhã seguinte, apanhámos o comboio para Caminha e depois Vilar de Mouros. Foi o meu primeiro contacto com ela.
Passou-se um ano e eu estava em Julho ou Agosto a prescindir das férias grandes para terminar o meu curso em Setembro. Vivia numa casa velha num quarto onde pagava oito contos (40 euros) e fizera do quarto as minhas primeiras paredes para pintar. O meu colega Sizenando, um guineense, trouxe a Ana lá a casa, ela ficou admirada, não fazia talvez ideia que eu pintasse, talvez não gostasse eventualmente do que via mas não me imaginaria talvez capaz de ser um futuro engenheiro e ao mesmo tempo pintar. Ela era muito terna, as suas palavras tinham um tom carinhoso, era bonita embora tivesse uma doença que a obrigava a tomar cortisona, o que lhe inchava o corpo, era bonita, eu achava-a bela no seu interior, esse anjo mas que não era negro, era sim cheio de luz, resplandecia amor. Foi assim que lhe mostrei uns capítulos impressos de um livro que andava a escrever, disse-lhe a história, abri-lhe o meu coração, ela gostou do meu amor, mas depois eu disse-lhe que ia mudar tudo, confundir toda a história e ela aí já não gostou, não sei se lhe dei essas folhas A4, não me recordo já. No dia seguinte o Size perguntou-me se eu a tinha tratado bem, se a tinha levado a casa. Eu disse que sim mas menti, não lhe quis dizer que ela não quis companhia no caminho para casa.
Um ano mais tarde, recebi uma carta sua na Irlanda onde eu estava a estagiar, hoje tenho pena de lhe não ter respondido, mas estava numa situação em que não sabia por mais quanto tempo lá ficaria e acabei por não lhe responder, depois perdi a sua carta e a sua morada. Tenho pena.
Gostaria de voltar a falar com ela. Dela guardo carinho na minha memória.

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