domingo, 1 de setembro de 2019

Epílogo

'
O primeiro sinal foi quando o galerista veio buscar o quadro que tinha encomendado e eu falei dos quadros que já pintei este ano e lhe disse que Raíssa, motivo dos últimos quadros, deixara de o ser. Há quase três meses que não nos falamos, disse-lhe. Ele opina e diz que, se calhar, a relação era uma coisa sem fundo, sem futuro. Eu defendo e digo que não foi bem assim mas tudo aconteceu porque eu não quis ser deixado para trás. Ela estava lá com ele e quando se zangava vinha para aqui beber cerveja e eu cansei-me, eu gostava dela mas ela sempre gostou de homens mais velhos, e ele até era bom para mim, chegaram a convidar-me para almoçar e ele cozinhou, cheguei a comer javali. Claro, disse o galerista, não quiseste ser trocado. Sim, não quis ser menino de mão. Quis tê-la, quis oferecer-lhe tudo o que Acá lhe dá mas ela sempre olhou para os meus esforços com displicência, sempre me viu como o seu padrinho de casamento, o seu amigo em Derza, no fundo desisti. Achei que não valia a pena continuar a amizade e, para que ela não insistisse, fui bruto e mal-educado nas palavras.
O segundo sinal veio na manhã seguinte a esta troca de palavras com o galerista e por volta das oito da manhã quando recebo uma chamada que me faz despertar do sono já em fase terminal e ao olhar o número no visor não o conhecer mas mesmo assim atender a chamada e desligarem. Ao pensar quem poderia ser que me ligasse àquela hora, fiquei mal disposto toda a semana, sim, suspeitei que fosse ela, ela chegou a ligar-me de um número novo das últimas vezes, um número que não guardei... fiquei tão mal disposto que me pus a lembrar ela ter dito que eu apunhalei o Acá, que traí a sua confiança. Defendi-me nestes dias dizendo a mim próprio, convencendo-me que se eu o traí foi quando a levei comigo à exposição na galeria, ele deixou afinal naquela tarde, eu estava lá a almoçar, eles zangados um com o outro, ela a dizer ironicamente «sim patrão», e eu salvei-os da discussão deles se agravar, dei-lhes um tempo, roubei-lha por três horas com o seu consentimento, ela esteve feliz comigo e até me disse elogiosamente «ah bandjido como foi capaz», mas, à noite disse-me ela noutro dia, quando voltou a casa dele, ele fez uma cena de ciúmes e pôs-se a tentar adivinhar o que diriam os amigos se vissem a mulher dele, como ele disse, a passear com outro. Já o verdadeiro marido, esse está longe e parece não notar os chifres, esse mudou de orientação sexual ou revelou-se finalmente, nem sei como ela nunca desconfiou. Mas ela gosta mais deste Acá, que podia ser meu pai, do que de mim, é ele que lhe dá garantias, ela mudou a verdade dos factos porque gosta dele... ah pobre de mim, que tenho pulgas e não marisco para cozinhar! Que me sirva de exemplo... vou pôr tudo para lavar, vou comprar ácido muriático para limpar a sanita, vou ganhar o brio da limpeza e da higiene.
Hoje, depois do almoço com os meus pais, depois de chegar a casa e estar a fumar um charro, depois do Giuliani vir oferecer um charro e falar sobre revisões ao texto final dos Contos de Deus e da Cidade, Volume 1, novo livro em edição de autor, depois de eu oferecer um café ao Vermelho e ao Giu, depois destes momentos ricos de convívio social, o telefone toca, Raíssa liga e eu deixo tocar. Não atendo porque estou com o Giu e o Vermelho a tomar café e a fumar. O Vermelho vai ficar hoje na ilha a dormir, porque à hora a que os jogos de Domingo terminam, ele já não tem transporte para casa, faz tenção de ir ao supermercado buscar uns rissóis para o jantar, o Giu também sai, vai reler a cópia impressa do seu novo livro à cata de erros e alterações, dia oito quando cair o dinheiro da reforma na conta bancária já terá um novo livro para «atingir o Nobel». Ó Giu, tinhas que estar traduzido em sueco, digo eu tentando desiludi-lo, mas ele responde dizendo que tem uma amiga sueca, o seu marido chegou-lhe a emprestar dinheiro, está bem Giu.
Fico sozinho, e ponho-me a pensar: olha, ligou, deve estar desgraçada... ela volta a ligar e, desta vez, eu atendo.
-- Oi.
-- Olá.
-- Eu sei que te devo dinheiro, quero combinar encontrar-me contigo para te entregar. O quadro... eu agora não tenho possibilidade mas quero que você guarde para mim.
-- Não, eu não quero o quadro de volta, senão pego nele e deixo-o numa paragem de autocarro para quem o quiser.
-- Atão fico com ele.
-- Ok.
-- Outra coisa, eu acho que te devo oito euros mas posso te dar dez pelo teu trabalho...
-- Sim as tuas contas estão certas mas aceito o teu dinheiro.
-- Amanhã podes vir ter à estação ao meio-dia? Agora estou a trabalhar...
-- Ah que bom! E a fazer o quê?
-- A cuidar de idosos, era o que eu queria fazer, queria trabalhar num hospital mas aqui até é melhor, não temos de dar injecções, por um lado estou muito feliz.
-- E pelo outro lado?
-- Também, estou muito bem, minha mãe me liga, o meu filho também...
-- Ainda estás na Vendana a viver?
-- Sim, ando entre a Vendana e a Lâmpada, vou passando o tempo lá e perto da estação onde é o lar.
-- E o teu marido já voltou?
-- Já voltou, já foi e vai voltar outra vez, mas eu não tenho de lhe dar explicações, ele continua a pagar as contas do palácio da Lâmpada onde às vezes estou... quanto ao divórcio, ele continua a dizer que não. Mas ainda este mês vou meter os papéis. Olha, estou noiva!
-- Para quando a boda?
-- Trinta de Fevereiro!
-- Ah isso não é novidade, já tinhas dito antes, é como tu ires ao Brasil, só acredito quando vir o bilhete comprado na tua mão.
-- E vc está bem?
-- Vai-se andando. Olha, fico contente por ti, por teres arranjado trabalho. É contrato ou recibo verde?
-- Contrato de seis meses.
-- Sim e renovável, passas a ter direito a subsídio de desemprego, é melhor que o rsi.
-- Claro. Eu gosto tanto, eu dou tanto carinho às senhoras, elas gostam de mim, estou feliz.
-- Olha, o livro está quase pronto...
-- Pois, depois eu quero uma cópia.
-- Claro e de graça, o livro é de nós dois.
-- Sim, depois eu vou levar para mostrar a minha mãe.
-- Eu menti nos nomes mas falo lá de todos e de nós, do teu marido, e... achas que ela vai gostar?
-- Eu digo a verdade a minha mãe, eu não escondo nada dela.
-- Só espero que ela não te rejeite.
-- Ela me ama, está descansado.
-- Olha, vou desligar que vou ver o Porto jogar.
-- Sim, eu também, depois eu te digo quando tenho uma folga e combinamos para te pagar os dez euros, está bem?
-- Não te preocupes. Beijinhos.
-- Beijinhos.

FIM
'






anónim@s do século XXIII

Sem comentários:

Enviar um comentário