sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Se tivesse sido um homem respeitável, um desses homens que ostentam cuecas de flanela...

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Quando acordei, tinha a boca pastosa e uma dor de cabeça extraordinária. Caminhei pelo corredor em direcção ao refeitório dos oficiais. Ninguém. Abri um trinchante, e descobri um frasco de cerveja e um prato com manteiga salgada e pão negro.
Logo a seguir, vendo-me casualmente ao espelho, reparei que estava completamente nu, o que era fácil de explicar, pois no momento em que descobrira o couraçado foi tamanha e tão extraordinária a minha alegria que não me lembrei nem remotamente da roupa que deixara pendurada a secar ao sol. A corda com que me atara abrira-me uma ferida na cintura. Deu-me para pensar que, por mais fantasmal que fosse o couraçado, por decoro não podia andar nu entre os espectros. Sabe-se lá o que podiam pensar de mim. Tais eram os meus escrúpulos terrestres. Meditativo, ocupei a poltrona à cabeceira da mesa e, enquanto barrava cuidadosamente uma fatia de pão com manteiga, disse de novo para mim mesmo que só o meu irregular comportamento me pudera arrastar para tais aventuras. Não tinha desculpa. Se tivesse sido um homem respeitável, um desses homens que ostentam cuecas de flanela, em vez de me achar agora sozinho e perdido a bordo de um barco fantasma, encontrar-me-ia no seio da minha família, possivelmente sentado a uma mesa real, usufruindo dos bens concedidos aos homens honestos. Recordei os conselhos que na escola comigo desperdiçara uma santa e digna professora, lembrei-me dos avisos que as companhias de seguros metem nos eléctricos. Avisos desses em que se vê um progenitor acompanhado por dois catraios escrupulosamente penteados, sentados a uma mesa. Estão a acabar o seu lanche em harmonia, e de súbito os meninos apontam ao pai, pela janela, um truculento vagabundo que pede esmola porque não praticou a santa virtude da poupança, e bati involuntariamente no peito com ambas as mãos. O meu desespero não me impediu de dizimar o pão com manteiga. Não era eu, de certo modo, a representação daquele vagabundo? Tudo aquilo me aconteceu porque tinha deixado de me dar com pessoas respeitáveis e começara a relacionar-me com um marinheiro bêbedo e louco. Agora encontrava-me a bordo de um fantasmagórico couraçado, entre oficiais esqueléticos, quando a esta mesma hora podia estar a uma mesa de café, a beber vermute na companhia de dois respeitáveis senhores que me falariam do estado das suas respectivas senhoras ou da engorda paulatina dos seus primogénitos. A tais extremos conduziam as más acções. Eis o resultado de não ter princípios morais nem religiosos. Aquilo afligiu-me tanto que insultei Deus repetidas vezes, mas como as minnhas inauditas blasfémias não podiam remediar a situação e estava mais nu que Adão, determinei que a primeira dificuldade a resolver era arranjar roupa, e então, saindo do divã de couro, dirigi-me à camarata onde, em noites anteriores, se encontrava o oficial espectral a estudar a carta náutica.
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páginas 229-231

''Escritor Fracassado e outros contos''
Roberto Arlt
Tradução de Miguel Filipe Mochila
Edição Livraria Snob


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