quarta-feira, 29 de julho de 2020

Gémeos





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R Capítulo X
John Coltrane: Be

O professor O abre o livro que C comprara um dia para lhe oferecer como suborno de nota e começa a ler:
Eu não esqueço.
Estou em casa de uns amigos a ver televisão, a ouvir música, a fumar charros e a discutir o cansaço dos festivais de Verão. Aparece uma mula toda boa que, apesar do meu olhar desligado em frente das suas pernas esculturais, resolve interessar-se por mim.
Alguns dias depois, mudo novamente de alojamento. Agora tenho uma cozinha equipada. Após jantar no MarchPush, vou ao Blitz tomar café e volto a encontrá-la. Está com uma amiga e mais um colega. Fica decidido irmos fazer a inauguração do meu novo quarto.
Quando chegamos, verifica-se um pequeno imprevisto, o de não haver luz pelo que nos pomos à procura de velas na escuridão. Improvisamos uma com um prato de barro, uma garrafa de óleo e um saco de algodão. A luz produzida é fusca e reminiscente de tendas rastas e malabarismos com fogo, cria claro-escuros oníricos e ilumina o estilo, por vezes romântico e à maneira dos avós, do meu quarto que contém uma cama de casal, uma mesinha de cabeceira, um guarda-fatos de três portas, uma escrivaninha e, na parede, um espelho vertical. Ela faz um desenho como taxa de sacrifício e deixa o número de telefone, a amiga diz que se deveria encher o tecto de estrelas.
Vamos ao Armenia beber uma cerveja e, após levar toda a gente a casa, ela e eu beijamo-nos no seu carro e combinamos encontrarmo-nos amanhã no meu quarto ao início da tarde.
No dia seguinte, sou acordado pelo meu colega que me diz que está uma maria à porta a perguntar por mim. Quando ela entra, pego-lhe na mão, ponho o trinco na porta e, sem uma palavra, levo-a de encontro à cama beijando-a, ouvindo-a tentar recusar. No fim, beijamo-nos enrolados no edredão e tocamos as folhas da pereira que chegam até à janela.
É tempo de ir para casa. No bar da estação de comboio, quando peço dois rissóis e um leite achocolatado tenho um certo brilho há muito tempo escondido do meu olhar, um brilho de felicidade pelo desejo renascido.
Dias depois estou no Armenia a passar música. Há uma ela que vem falar comigo e pede Miles Davis. Está com uma amiga. No final vamos até sua casa, a amiga estuda em Tirza, está de passagem, dormem juntas. Elas preparam o saco-cama para eu dormir no chão. Não sou capaz de dormir, está muito calor, acabo por me vir embora mas, neste momento, experimento um outro tipo de olhar, bem mais etéreo, bem mais feliz.
Merdra! Mais uma vez a ela desejada duplica-se e do acto de Onan passa-se rapidamente ao de Baco. Hmm… tenho que escolher uma das duas. Sabendo já as linhas com que me coso, opto pelo olhar etéreo, o olhar que deixa coisas em aberto e não sei… nesta fase parece o melhor olhar.
Estabelecemos poesia. Levantamo-nos para ir às aulas, passeamos pelos lagos, pontes e ruas, estudamos juntos, fumamos charros à noite, dançamos no quarto, dormimos juntos. Conto-lhe coisas, mostro-lhe o que faço e aquilo que escrevo, ela conta-me as suas histórias de fadas. Vamos ao teatro ou vamos ao cinema ver o Crash, caminhamos à meia-noite por lugares sem nome com a única protecção das estrelas e chegamos a um miradouro natural onde nos sentamos a observar a natureza lunar. Vamos ver concertos de piano solo, vamos a esplanadas nocturnas no cimo de prédios e, por entre a erva misturada no tabaco de enrolar, inventamos personagens, duplos de nós dois, cores e sentidos, jogos de expressões... o signo dos cinquenta por cento numa pizaria numa noite de Domingo vale dois pontos a meu favor, são símbolos e linhas de amor.
As manhãs tornam-se nostálgicas e aborrecidas, pois temos que ir às aulas. Às onze, estamos sentados a beber café. Olho-a e vejo um certo brilho, ela está bonita. Por detrás, o vidro da janela enquadra-a a três quartos deixando uma impressão de luz e sombra na sua pele fina, na sua cara geométrica, no seu olhar púrpura e violeta, nos lábios finos, no cabelo escuro caindo-lhe sobre os ombros. Tivesse eu uma máquina fotográfica para gravar este momento.
Uma vez, fomos ver uma peça de teatro que acabámos por não gostar. Estava mal representado. Não! Eu minto... era uma peça satírica e rimo-nos até ao inferno. Fomos ao Itapens, aproveitamos para comer dois rissóis, ler o jornal e comentar com uma amiga o filme biográfico sobre Camille Claudel, uma sereia que ficou sem água num filme sobre escultura.
Amo-a tanto que esqueço tudo o resto. Demonstro-lhe a toda hora, a todo o momento. Escrevo-lhe bilhetes, trocamos pequenos guardanapos com pequenos jogos e símbolos, diagramas de cumplicidade em cafés e bares e guardo-os numa vulgar caixa de fósforos. Esqueço tudo, a minha escada deixa de fazer sentido, tenho o seu número de telefone arrumado entre os bilhetes de todos os concertos memoráveis que vi e que guardo junto da carta de condução. Começa, aliás, a ser difícil conduzir-me para as aulas e prestar atenção, falar com os professores, tomar notas só se for às janelas, por onde entra o sol filtrado, perante o desejo de ir ter com ela e gravar os nossos beijos com o gravador de cassetes debaixo da protecção da palmeira prateada e da flauta que encanta a serpente.
Recomeço a pintar, agora maiores formatos, o quarto tem o tecto elevado e, assim, as paredes são cavaletes onde coloco papéis e tecido, arranjei uma mesa velha onde tenho os copos de vidro de iogurte a servir de godés, as tintas, os pincéis, o óleo de linho e, mais tarde, a terebintina que dá uma leveza pura e emotiva. Como protecção de ecrã do meu computador 486 sem dispositivo de cedê tenho a correr uma imagem animada onde estabeleço uma conjugação simbólica entre hardware, software e hipermodernismo utilizando o seguinte aforismo copiado de algum lado: Não me uses porque sou doente.
Um dia, aborreço-me por algum motivo e quebramos por dois dias e, quando fazemos as pazes, chegamos à conclusão que deveremos estudar mais e fazemos esforços nesse sentido para encurtar a distância em relação à matéria dada. Dias depois, vamos ter um com o outro caminhando tarde pela rua escura e amarela da luz eléctrica, chuvosa, fotográfica, sonora, simbólica, surreal, hipermodernista, incerta, um pós-Armenia e ainda o certo desejo de dizer que se alguma vez desaparecermos desapareceremos juntos, indo para algum lado donde o retorno só é possível em teoria, uma profissão, uma caravana, uma floresta negra, Barcelona, Veneza e os museus de arte, o acto de fazer amor e os animais com força e desejo mais forte que o acto, um certo amor, a naturalidade, um certo livro O Erotismo que me custou a modesta quantia de seiscentos escudos e que não lemos porque achamos que já sabemos tudo, os discos de poesia, todas as tabacarias do mundo às vezes interrompidas abruptamente com música pimba para cortar os efeitos da depressão dos dias, no êxtase sabemos aquilo que queremos, sabemos que é necessário desistir por uns longos momentos da música, da poesia, da pintura, da ganza por causa de… tu sabes como é o mundo de merda, que se fodam todas as letras.
No final dos exames intermédios, estamos os dois a tomar café macambúzios e perguntamo-nos se acertámos na resposta à única pergunta que não sabemos se acertámos. Noites de delírios se seguem e regressamos das férias de Natal mais cedo, vamos a Serralves, vamos ao Majestic tomar café como se fôssemos ricos holandeses em viagem, oferecemos a mesma prenda ao outro mas em edição diferente, a grande Ode Marítima, a grande Tabacaria, fazemos o jantar, abrimos a porta para receber as janeiras de duas meninas pré-nubentes cantando, mostro-lhe um início de quadro em pastel chamado Mudar de Vida, é meu desejo expandi-lo durante este fim-de-semana, o último deste ano, pequenas silhuetas no meio das letras, os restos de um filme chamado M. Butterfly, bares de jazz em Baz, ganza e filmes bonitos ad aeternum.
Só há uma coisa que funciona mal em mim e que afecta a minha vivência de nós, o único SE, a disjunção entre a engenharia e a arte de pintar, o desejo de pintar, cada vez mais pintar e, depois, todo esse tempo que se perde em sítios aborrecidos em que chove, e eu não trouxe guarda-chuva pois, como diz o Tom Waits e a Marianne Faithful, there is always one around, e onde está ela para me ajudar a concentrar? Hoje, ela não está, não pôde vir e eu também devo ser capaz de estudar sozinho. Há excesso de informação à qual é preciso dar atenção, nunca te conseguirei dar tudo, não terei tempo, e o que seria isso que nunca to formulei?, não sei bem mas qualquer coisa como um futuro comum, qualquer coisa desse género, as coisas complicam-se, os estudos não correm bem, o profe põe-me a pensar que sou um falhado ou, mais secretamente, um gato falhado, não sou capaz de concluir o trabalho, não dou para isto. Prefiro pintar e não sou rico ou, se calhar, sou mais egoísta que tu, sim, somos esse ser bonito, ao mesmo tempo frágil e forte, misantropo e egoísta mas com muito para dar a quem gostamos.
Dizes que te dissera que te amava quando estava inconsciente nos teus braços, e talvez perguntes se era verdade... e eu respondo-te que não me lembro de o dizer... era assim tão importante num desmaio eu lembrar-me?, e, depois, disse-to tantas vezes que, pelos vistos, nunca acreditaste, e tu nunca mo disseste, não tinhas a certeza talvez, ou disseste-o uma única vez em francês num teatro natalício com o qual nos divertimos dentro da tua cama de ferro, essa voz apareceu gravada numa cassete.

Anos de análise introspectiva dizem: uma vez mais as incompatibilidades. Mas desta vez, invertem-se os papéis. Sou eu que deixo a Maria G Joana, não sou deixado por ela como quando, ao escolher Maria e preterir Joana, ela me deixara no fim. A posteriori, digo que escolhi mal porque o futuro que imaginei com Maria não se concretizou. Nesse futuro, estaria cheio de rebentos se os preservativos estivessem furados ou a transmissão enviasse vírus em rede com destino à lua do útero. E hoje teria os filhos a dizer mal de mim.
Esta frase que acabo de escrever mostra o quanto eu quero denegrir esse futuro de família feliz que nunca aconteceu. Senti-me abandonado logo no momento em que percebera que queria construir algo em conjunto com Maria e me deixara de distracções exteriores como a Joana e a Berta. Perdi o céu e, no purgatório, voltei a perder a confiança no futuro e na mulher quando me deixei obcecar pela Dina de lunetas verdes. E quando a Maria Joana agora me aparece paradisíaca, ela deseja e quer-me homem, e eu deixo-a devido à pressão de ser apenas um palhaço tão divertido como depressivo, deixo-a devido ao falhanço iminente nos estudos, deixo-a talvez devido ao desencarnar o conteúdo traumático transportado pelo sentimento merdoso: eu quebro contigo porque outra quebrou comigo.
Há ainda mais história para contar um ao outro, o modo como uma conjugação de factores, estalidos, paranóias, vómitos à porta de um restaurante originará a minha obsessão futura e eterna, até ver: eu arrependi-me de te ter deixado, quero-te de volta. É o inferno.'


Claudio Mur

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