quinta-feira, 8 de outubro de 2020

«Afinal, vocês têm muita sorte em possuírem olhos».

 '

O bufarinheiro dirigia-se precisamente para Verrières. E, quando se conhece a estrada que sobe até lá, fica a gente a perguntar-se como é que ele faz para trepar até la acima, assim cego e rodeado pelo mau tempo e, às vezes, pela noite.

Respondera-lhe que, para ele, era sempre noite.

-- Imagina tu! -- exclamou Honoré.

-- Bem sei -- respondeu Bobi. -- E ainda existem coisas mais extraordinárias. Por isso mesmo é que devemos ter confiança.

-- Nessa altura -- continuou Honoré -- disse-lhe: Já que vais para Verrières, importas-te de prevenir o compadre Ricardo? Conhece-lo? -- Se o conheço! Mora na quarta casa da rua, que fica por trás da fonte, na esquina da mercearia. Noutros tempos, havia nessa direcção uma velha amoreira, que depois cortaram. -- Disso não sei -- disse-lhe eu. -- Respondeu-me: «Sei eu. Não te rales!» -- Pedi-lhe, pois: poderás prevenir o Ricardo? -- Prevenirei o Ricardo, sim. Mas não posso ir dizer-lhe apenas: «previno-te.» De que é que o hei-de prevenir? -- De que a gente irá falar com ele. -- A gente, quem?

Sentia-me um tanto atrapalhado, sem saber se lho havia de dizer ou não. Perguntava a mim próprio «Vais dizer-lho?» No fundo, que arriscava eu? Respondi-lhe, pois «Trata-se de irmos apanhar corças à floresta de Nans.» Nessa altura, retorquiu-me: «Não contes comigo!» Afirmei-lhe: «Estou a pedir-te um favor». A sua resposta foi: «Não; estás a pedir-me uma coisa indecente. E eu não faço coisas indecentes. Poderia fazê-las a porcalhões como tu e aos teus iguais; mas, quanto ao que me dizes, não.» Olhei para ele, vi-lhe o rosto de velho e perguntei: Uma coisa indecente, porquê?» Respondeu-me: Mais indecente seria ainda o explicar-to. E, além disso, tenho que me ir embora.» Levantou-se, dizendo ainda: «Tu tens olhos. Todos vocês têm olhos. Eu sou cego de nascença. Por isso mesmo, não sei o que é que vocês chamam «ver com os olhos»; mas, a avaliar pelo que fazeis, não deve ser grande coisa. Ou, então, vocês não passam de uma cambada de sacanas. Porque ( -- e, nessa altura, caminhava já, e ter-se-ia ido embora, se eu o não retivesse?, porque vocês trazem sobre o corpo os efeitos disso.»

Puxei-o pelos braços e disse-lhe: «Senta-te. -- Não. -- Senta-te! -- Não». E procurava dirigir-se para a estrrada, onde a chuva... só vos digo isto! Por fim, sempre lhe disse: -- «Estás enganado. -- Não estou, não. -- Estás, sim, porque se trata de uma coisa extraordinária. Uma coisa que nem sempre acontece. Se to disser, ficarás a sabê-lo. Se to não disser, vais inventar, como é vulgar, e enganas-te. Senta-te, que quero dizer-to. E verás se não vale a pena.» Ia eu dizer que «olhou para mim». Impossível, porque é cego. Mas voltou os olhos para mim e eu pude ver, então, os seus olhos vazios, assim como a estrada, a chuva e o próprio mundo -- tudo vazio. E juro-vos que me pus a pensar cá para mim: Não. O mundo não é vazio.

«Senta-te». -- Querem matá-las? -- perguntou. -- De maneira nenhuma. -- Querem apanhá-las vivas para as venderem depois? -- Também não. -- Pois se as querem meter em jaulas, ainda é mais indecente.

-- De forma menhuma. -- Nesse caso, não compreendo. -- Alegra-me ouvir-te isso. Vou explicar-te o que há!

-- E vou dizer-te a verdade -- continuou Honoré, dirigindo-se a Bobi. -- Dir-te-ei tudo quanto lhe disse, embora não saiba nada do que pretendes fazer.

-- Que é que tu lhe contaste? -- perguntou Bobi.

-- O que me pareceu mais razoável.

-- Nesse caso, deve ser precisamente isso o que eu pretendo fazer -- respondeu Bobi.

-- Aí tens -- continuou Honoré. -- (Nessa altura, continuava a olhar-me com os seus olhos vazios.) Disse-lhe: «sou do planalto Grémone». -- conheço. -- A vida não é muito bela... E juro-vos que ele me respondeu A vida é muito bela. -- Comprámos um veado. Eu disse comprámos. Foi só o Jourdan, mas eu disse: comprámos.

-- Fizeste muito bem. exclamou Jourdan.

-- Comprámos um veado. -- Para quê? -- perguntou ele. -- Para nada -- respondi, depois de ter reflectido. -- Para nada, como? -- Para o termos ao nosso lado.

-- E é a verdade verdadeira -- interrompeu Bobi.

-- Mas foi muito difícil fazer-lhe comppreender isso.

-- Que é que ele não compreendia?

-- Que o veado era livre. Perguntava-me: «Vocês fecham-no em qualquer sítio?» -- Não. -- Vai para onde quer? -- Vai. -- Sempre? -- Sim. -- Anda por todo o lado? -- Anda. Vai visitar uns e outros, olha para todos e põe-se a correr. E nós vemo-lo a correr. -- Deve estragar-vos os campos! (E eu pus-me a pensar: Para o que resta deles! A chuva continuava a cair, nessa altura, como se quisesse esmagar a terra, e eu pude ouvir os regatos a correr pelos Ubacs, arrastando as sementes). E respondi-lhe: «Isso pouco nos importa!»

Ficou algum tempo a remoer essa ideia na cabeça. E, depois, fiquei com a impressão de que já não se dirigia a mim, quando falava, mas sim talvez ao cavalo. Este encontrava-se ao nosso lado, em cima das folhas e mexia-se, agora e logo, quando a água fria lhe tombava na espinha.

-- Aí está uma coisa nova! -- exclamou ele. -- Jamais se poderá adivinhar o que acabarão por fazer. Acabarão, talvez, por encontarem a coisa certa.

Dirigiu-se-me. «E, então, essa corças?» Respondi-lhe: «Essas corças são para ele, pois então!» -- Para que sejam mesmo dele? -- Sim. -- E livres? -- Pois claro! -- Quereis apanhá-las à rede, levá-las vivas para o planalto, deixá-las aí, onde ele as encontrará, se assim o quiser? -- É essa precisamente a nossa ideia. -- E depois?»

Foi, então, que comecei a inventar. «Depois -- disse eu --, não há mais nada. Terão corçazitas e veaditos: primeiro um, depois dois, depois quatro, depois dez - e bem desejaríamos que chegassem aos cem. E todos eles hão-de correr pelos campos. -- E que farão vocês deles? -- Nada. Isso é tudo. Contentar-nos-emos com isso.

-- Afinal, não inventaste nada -- interrompeu Bobi.

-- Então, é isso que vamos fazer?

-- Precisamente isso -- afirmou Bobi. -- E que disse ele?

-- Ficou calado, durante algum tempo, após o que respondeu: «Afinal, vocês têm muita sorte em possuírem olhos».

Em seguida, a chuva abrandou. Devia ser cerca das dez horas da manhã. Perguntei-lhe: «Posso contar contigo? -- Poderão contar comigo, todos quantos vocês forem, pois darei o recado».

'


páginas 162 - 165


''Que a paz seja connosco'' 

Jean Giono, livro de tiítulo original em francês; ''Que ma joie demeure''

edição Porto Editora (sem data)

Sem comentários:

Enviar um comentário