sexta-feira, 16 de outubro de 2020

E termina aqui a história da mulher invisível, do velho careta e da fresca

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«Arranjaram-me um quarto-atelier numa casa de artistas e conto sair até ao fim do mês. As contas estão pagas.»

Foi com esta mensagem de telemóvel que comuniquei ao senhor A que iria deixar o alojamento que ele me proporcionou nestes últimos quatro anos. Quatro anos numa ilha. Estou prestes a ser obrigado a mudar de designação, estou prestes a deixar de ser ilhado. Vou para uma casa de três andares, o andar do meio será meu, e no de cima fica a cozinha, a sala e a marquise. Vou ter vista panorâmica para o rio do ouro. Reparo que estão a civilizar a encosta em frente, a construir estrada, enredar a escarpa de terra, arbusto e rocha, a recuperar com fins turísticos (poderia lá ser de outra forma?!) as casas ribeirinhas, existe já cais para barcos-prisões e projecto de hotel de luxo e circuito pedonal e ciclovia.

Ainda não dormi na nova casa mas abrir as janelas e observar da marquise a paisagem sempre que vou lá deixar mais uns quantos quadros, uns quantos livros, uns quantos discos de vinil e cd, faz-me lembrar do meu pai há uns anos na sua marquise ao fim da tarde observando a paisagem, as árvores dos quintais interiores e os pássaros e insectos, enquanto eu o espiava e o imaginava a pensar nos incêndios na mata angolana há cinquenta anos, sendo ele jovem soldado, enquanto eu escrevia o poema-ódio, a carta-bomba à autoridade para quem eu pensava que, na opinião deles, eu era um importante rebelde, cheio de semente para destruir os alicerces do mundo que eu achava que me oprimia.

Foi no período de incubamento do meu último internamento, uma coisa freudiana, o meu pai era o mau e eu era um jesus bandido, uma vítima. Muita coisa mudou. Eu mudei e o meu pai também, e eu já não penso como pensava nessa altura, afinal acho que o meu pai está do lado do bem e eu talvez esteja agora a tentar convergir para o bem, sabendo que o caminho é longo.

Às vezes, a gente constrói muros à nossa volta, e muitas vezes são com a intenção de nos defendermos, de levarmos as mãos aos ouvidos para não ouvirmos os insultos que nos dirigem, é como a história que os Pink Floyd musicaram, criamos um espaço onde somos imunes à opressão da sociedade, fechamo-nos em casa e aumentamos o som da aparelhagem e desligamos do mundo.

É assim que eu aqui nestes últimos tempos na ilha me estava a sentir. É isso que eu digo ao senhorio quando ele vem buscar umas cartas que chegaram para ele.

-- Olhe, eu vi mais mulheres bonitas nestes dias que tenho ocupado a mudar as coisas para a nova casa do que nos últimos quatro anos. Pelo menos, é um regalo para os olhos.

-- Você sai porque tem medo do Luis mas olhe que a um vizinho sempre se pode virar a cara e metermo-nos em casa ignorando-o mas já não é tão fácil fazer o mesmo a uma pessoa que vive connosco na mesma casa, há sempre as questões da limpeza, da cozinha e da higiene.

-- Tem razão. Mas o meu novo colega parece boa pessoa e é artista um pouco como eu também, e não pense que é medo do Luis, eu é que estou farto de viver aqui, até há pouco tempo tinha aqui a minha amiga e isso disfarçava, mas agora ela está para Lisboa... e sabe.... sabe que o Luis ameaçou os vizinhos de pancada se falassem comigo?, partiu o nariz ao Giuliani como vingança e este agora só fala comigo às escondidas, no café ou assim, o oficial de obras que mora com ele também fala de vez em quando comigo mas só vem falar para pedir trocos, os outros que restam são o que eu chamo de «criaditos do luis comandante que não sabe nadar iô», que vivem ao sabor do vento, para onde mija o comandante as notas ou o resto do charro ou do caneco de coca é para onde eles se dirigem, às vezes vou de metro e, no final das escadas rolantes, ele vira à direita e eu sigo em frente... e nada, espiamo-nos mutuamente e nada, nem ele me dirige a palavra porque o comandante não deixa, nem eu quero saber mais dele para nada e até fico aliviado por ele já ter esquecido todas as histórias que lhe contei quando ele vinha para minha casa ouvir música e fumar charros. Ele agora é big business, a coca é a raínha dele, até já esqueceu a namorada e diz que se o filho nascer pelo menos tem uma mãe rica. Quero lá saber que ele vira à direita, eu sigo em frente.

É claro que não disse tudo isto ao senhor A. Estou imaginar uma espécie de diálogo, mas não deixa de ser tudo verdade. Também podia falar da família feliz que vive na primeira porta da ilha: bisavó, avô e avó, filho, e neta de agora quase quatro anos, nasceu por alturas da minha chegada à ilha. Recebi uma carta para essa menina por engano na minha caixa de correio, saí de casa e bati-lhes à porta e disse: «isto é para si» e entreguei-lhes a carta. É costume os carteiros, principalmente os mais desconhecedores da ilha, enganarem-se nas caixas de correio. Houve cartas que não me foram entregues, foram deixadas no muro à entrada, porque essas cartas eram colocadas por engano na família feliz e estes por vingança não mas entregavam. Eram retaliações de vizinhos, lembro o que escrevi na altura:

«Aconteceu-me algo parecido quando precisei de ajuda oficial, perguntaram pelo telefone da minha mãe. Ainda hoje vejo pessoas na rua que me agridem só por eu existir, um dia destes uma cabeleireira vinha a descer a rua com a companheira e um pequeno cão, o cão ladrou-me, ela afastou-o e disse: -- Ainda se fosses comer Alguém. Eu nada disse, o que ela queria era que eu respondesse para que dali surgisse a algazarra dos ditos e contos, se eu lhe respondesse qualquer coisa como «És linda como a noite, tens penteado muitos camones?, eles não te dão que chegue?, precisas de me incomodar?» Viriam certamente acusações em altos berros para todo o bairro ouvir dizendo isto e aquilo como aconteceu a semana passada quando, por causa de um cano da água, tive o vizinho a chamar-me de porco e de pintor da droga e o filhinho, aprendiz de gorila de claque, a querer bater-me. Pouco faltou para que eu entrasse em casa e pegasse no martelo e fosse lhes responder à letra dizendo «andem cá agora, quem são vocês para me insultarem!», mas foi melhor não ter feito nada porque o senhorio, ainda assim, veio e disse-me que «a corda parte sempre pelo lado mais fraco», pelo que eu engoli a mensagem. Não deixa de ser irónico porque o cano pertencia ao senhorio e eu estava a defender o seu património, é!, as pessoas odeiam o meu modo de vida, pisam no mais fraco e lambém o cu ao mais forte.»

Foi a partir desta altura que eu fiz amizade com a ilha, com aqueles que eu chamei de comunidade por oposição à família feliz, esqueci os maus, apaguei-os da narrativa e eles sempre a retaliarem com o estraviamento do correio, e abracei a comunidade do Giuliani e dos amigos, o Luis até caiu das escadas quando me vinha cumprimentar vendo-me entrar em casa com quadros pintados... e ele a dizer «nós também somos artistas!»

Belos artistas sem dúvida, uns artistas da merda, o Giuliani a dar-me livros dele para eu os rever e preparar para edição de autor dele, e perguntar-me se não há nada neles que o envergonhe... e eu: «não Giu o que tu escreves é verídico és tu próprio és genuíno» e eu a pensar «ele mudou o nome das gajas para o nome da mulher pela qual está platonicamente embeiçado, ele isto e ele aquilo, coisas vergonhosas que escreveu, quero lá saber, vou-me embora, quero lá saber do Luis técnico de electrónica, de som e de concertos, baterista e guitarrista, quero lá saber, a única vez que o vi tocar bateria vi-o furar a pele do tambor com a baqueta, há meses o Vermelho diz que viu fumo a sair de trás da aparelhagem e por isso o incêndio não alastrou, havia sido o comandante que decidira fazer um shant às colunas para cortar os graves e fazer de equalizador... élou! Só mesmo artistas seriam capazes de tal obra de arte, não quero saber, vou-me embora.

Mais uma semana e já durmo na nova casa.

-- Mas o Luis faz o quê mesmo?, pergunta o senhor A.

-- Não faz nada, vive à custa da mãe rica, sabe que ele quando houve a guerra, depois dos insultos e tentativa de arrombamento, andou a falar com a patareca da dona Teresa para ver se arranjava aliados contra mim, para ver se eles falavam todos consigo para você me pôr fora, e eu a pensar: logo a dona Teresa que, quando o Luis se passou da cabeça, ela mesmo perguntou à irmã do Giu se não queria chamar a polícia para levar o Luis de cana... essa mesma patareca velha que se vira para o agrónomo antropólogo que vem fumar com o Luis e lhe diz «o Luis é bom home.» É tudo demasiado decadente, a mãe do Giu... a verdadeira dona das casas onde a comunidade vive, a mãe do Giu gosta mais do Luis do que do próprio filho, o Luis ao telefone é só salamaleques, diz que fez obras na ilha e que no próximo mês lhe faz a transferência bancária e manda beijinhos e cumprimentos, enquanto que o Giu quando fala com a mãe é só choro e insultos e queixas contra a mãe... não dá senhor A, eu tenho mesmo de me mandar daqui para fora, esta casa parece uma prisão, estou bem cá dentro, mas mal saio porta fora a complexidade da comunidade e da família feliz e de todos os que vêm cá fumar e ser indrominados me atinge, quero derrubar o muro, se não o derrubo translado-me para outro lugar. Por isso, lhe digo, mais uma, duas semanas, e corto a água e a luz depois de mudar tudo, e só venho cá no fim do mês pagar a conta da luz e da água e entregar-lhe a chave, quero ver também se lhe limpo a casa, quero deixá-la com estava quando vim para cá, é certo que as paredes vão ficar cheias de buracos por causa dos pregos arrancados mas...

-- Você foi um bom inquilino, só a atenção com o meu correio, sabe que vieram cá famílias com filhos, mesmo dois filhos e me diziam «mas que casa bonita!» e eu nunca aluguei, chegavam a fazer fila à porta, eu metia o anúncio e combinava o encontro aqui. Mas você agradou-me. E agora, quando recebi a sua mensagem, até comentei «e eu a pensar que lhe estava a fazer um favor».

-- E estava, mas as coisas mudaram na minha vida e não vou para um sítio muito mais caro do que aqui, e preciso de uma nova mudança na minha vida, e novas pessoas, novas vidas às quais me ligar.

-- Ok, espero que tudo lhe corra bem.

-- Obrigado, e espero que, num futuro que espero que não aconteça porque seria um mau sinal, mas espero que se eu precisar no futuro de alojamento lhe possa ligar.

-- Você só apaga o meu número se quiser, mas também é preciso ver que aqui já poderá estar alugado, eu vou pôr anúncio...

-- Sim claro, quem diz aqui diz noutro lado.

-- Aqui, eu gostava de você aqui.

-- Obrigado pelo apoio, senhor A, e até ao fim do mês.

E muito mais coisas poderia ter dito ao senhorio, poderia ter-lhe falado de mais razões para sair daqui. Não foi só a questão da guerra contra os vizinhos da ilha, sejam eles a comunidade ou a família feliz, eram também os motivos da guerra, eu próprio tinha pensado «o Luis merece ser fodido» quando vi a atitude que ele tomou quando não me pagou o trabalho de ajudante nas obras naquele dia, dizendo que não tinha dinheiro ao mesmo tempo que escondia uma nota de cinquenta euros. Era toda uma cultura da farsa, toda a falta de cultura de uma comunidade de indivíduos que nasceram em berços de ouro e que de alguma maneira se desgraçaram aos olhos de toda a gente, e comeram o pão que o diabo amassou e continuam a comê-lo, ressabiados contra tudos e todos e com inveja de quem tem as condições mínimas que, mesmo essas, eles deixaram de ter, a saber: tiveram criados de sala de jantar e cozinheiros privados em casa dos pais e, hoje, vê-los comer com os dedos dá quase nojo; terem entrado para o programa de recuperação da hepatite c e terem tomado as pastilhas com vinho enquanto falavam com o comandante pelo telefone dizendo «olha agora estou a roubar o Estado em mais dois mil euros» e morrerem de cirrose um ano depois e todos chorarem e fazerem luto, deixarem o vinho com cerveja e meterem-se na poeira e na branca, e quando um deles entra também no programa, toma as pastilhas durante três meses fumando a coca, as pastilhas acabam e não vai fazer o teste de despistagem para ver se se curou da hepatite porque poderá acusar droga, e assim não quer saber se está curado ou não... tudo isto são coisas que eu preferiria não ter sabido, preferiria continuar inocente e pensar que somos sempre nós as vítimas e que quando nos desgraçamos a culpa é sempre dos outros, eu em alguns momentos fui parecido com eles, e nada do que com eles partilhei lhes foi útil.

Não fui professor e talvez tivesse querido sê-lo. Por isso, agora está na altura de ir partilhar para outro lado. Também com a minha amiga nada mais há a partilhar. O período de férias acabou. Ela, depois de uns dias em casa da Sandra, voltou para casa do Cá, que lhe voltou a oferecer abrigo de graça, eu aqui precisava de algum do seu dinheiro para suportar o aumento da renda e da despesa mensal. Ela preferiu o Cá. Vi-a há dias na estação do metro, continua perdida. Já não a consigo ajudar mais, ela não faz o suficiente por ela própria, quer comprar tudo feito, alguém que lho pague, foi isso que a convivência neste período de férias que passámos juntos me mostrou, ela cansou-se de mim e eu cansei-me dela.

 

E termina aqui a história da mulher invisível, do velho careta e da fresca, sendo que a fresca é a farsa da obra ou as obras. Obra imperfeita e bruta como só assim poderia ser por mim contada.

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Claudio Mur

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