domingo, 13 de fevereiro de 2022

Conversa ideológica

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Agora os almoços estão menos ruídosos. A tevê avariou, dá som mas não dá imagem. Pensamos que seja devido ao disjuntor de fase no quadro eléctrico ter disparado três vezes em cinco minutos: porquê? Foi-se ver: forno ligado, bico eléctrico ligado e termoventilador ligado: pum, luz abaixo, tevê off, como se diz na terra: deu o peido e enquanto não vem uma substituta temos comido em silêncio ou ao som da Antena 1: através do meu telemóvel ou mesmo o som da RTP2 que tem um programa de ecologia do qual o meu pai gosta porque fala da natureza, vulgo o campo, e ele sente nostalgia do seu tempo de criança. Sempre é melhor que ouvir o meu pai criticar os jornalistas, que para ele só dizem mentiras e as repetem até nos dias seguintes, às vezes, lembramo-nos de qualquer coisa ou começamos a comentar o que o som diz, este Sábado foi assim:
-- A casa fica perto da igreja do cristo-rei?, pergunta o meu pai.
A minha mãe diz: -- Sim, fomos a casa dessa senhora que quer dar os livros para o Banco Alimentar reciclar.
A minha mãe gere uma pequena loja associada à igreja daqui e que entre outras coisas distribui comida doada pelo Banco Alimentar, todos os meses lá vai a carrinha da loja ao armazém do banco buscar as paletes com bens alimentares que muitas pessoas doam no supermercado, depois, o meu pai, a minha mãe e mais alguns voluntários fazem as listas, marcam dois dias do mês, avisam quem tem direito a receber a ajuda e distribuem-na, eu sou sempre céptico, digo: -- Vocês não recebem pelo vosso trabalho mas as directoras do Banco e a presidente, o contabilista do Banco, o dono da sonae e do pingodoce, todos esses recebem, depois temos casos de paletes de azeite pesadas ao kilo e embalagens de vidro, mais pesadas mas só com meio-litro de azeite! em vez dos vulgares 75 centilitros.
O meu pai concorda mas acaba por ser pragmático e quem se lixa é o carenciado que recebe menos azeite, ele já disse à doutora do Banco quando ela veio à loja isso mesmo mas ela não quis saber, por isso e quando se falou hoje em entregar livros para o Banco estragar, eu disse:
-- Eheh, já tenho que fazer hoje: vou à venda roubar ums livros ao Banco Alimentar eheheh.
A minha mãe que sabe do meu vicio por livros, sorriu e disse: -- hoje não é bom dia, os livros ainda estão na garagem da loja...
-- Está bem, disse eu.
Depois o almoço continuou: cozido à portuguesa: a minha mãe disse: -- Esta comida é boa mas faz mal!
-- Porquê, mãe, desarranja-te os intestinos?
-- Não, a gente fica enfartada.
-- Quando se come bem... Sabes do que me lembrei? Olha, do Zé, o Zé tem azar, arranjou emprego como servente, ao segundo dia aleijou-se no ombro, depois teve covid, meteu baixa, ontem recebeu a carta para o fundo de desemprego...
-- Ele não tem direito a subsídio...
-- Eles mandaram na mesma, mas como não accionaram o seguro, o Zé diz que vai na 3a-feira à ACT fazer queixa.
A minha mãe nada diz, sabe tão bem como eu que não vai dar em nada, eu continuo: -- Por outro lado, o André arranjou emprego, diz que começa Segunda na distribuição, não sei de quê... Ainda bem, deu-lhe a telha e despediu-se das obras depois que o chefe o mandou acartar sozinho os mármores todos até ao sétimo andar escadas acima, vá lá!, uma semana depois conseguiu novo trabalho, menos mal, já tem emprego, parece que o desemprego está nos seis ou sete porcento, no tempo do Passos estava nos 14...
-- Mentira!, diz o meu pai.
-- Atão, estava em quanto?
-- Não sei.
-- Ah, não sabes mas dizes que eu estou a mentir..., disse eu e levantei-me da mesa para vir fazer café, já na cozinha ouço o meu pai dizer:
-- É, o Costa é bom e o Passos era mau...
Não respondi à ironia, pus a cafeteira no fogão, fui ao WC, lavei os dentes, voltei à sala porque o café ainda demora cinco minutos a ferver, o meu pai diz: -- Vai aí ao Google, e pesquisa os números do desemprego em 2014...
-- Vou sim, já viste tu?
-- Eu estou sem óculos, a tua mãe que diga...
-- Quanto, mãe?
-- 4,8%
Eu fui ver e pesquisei por <taxa desemprego Portugal 2014> e encontrei uma tabela, a mesma que eles viram, eu disse então:
-- Pai, tens aí os óculos? Pois foi de 14,8% e não 4,8%... Eu há bocado exagerei, pensei que fosse só 12 porcento e olha, olha aqui no observador e também no ine: 13,9%, ó ó.
Mostro a meu pai e ele cala-se, a minha mãe vai lavar a louça porque daqui a meia-hora tem de ir para a loja, eu bebo o meu café, o meu pai recomeça a falar, ele agora fala comigo, está bem melhor que antes, fala muito da tropa, às vezes da infância, eu fico contente, tenho o meu pai de volta, mesmo que perfilhemos ideias políticas antagónicas, mas eu não posso viver em casa do meu pai e dar-lhe porrada como se fazia nos anos 30, o meu édipo já cegou: a bem da minha sanidade mental: prefiro conhecer agora que estou a caminho da meia-idade o que ainda puder do meu pai e dos porquês de ele ser um conservador católico que votou nos fascistas, quero pensar, por engano, deixo-o falar, dizer como ia para o monte com as ovelhas e com medo dos lobos, ouço-o dizer: -- Os meus pais importavam-se lá,  o meu irmão mais velho quis casar e o nosso pai deu-lhe um pinheiro e disse agora constrói a tua casa.
Quem vive o olho por olho, o dente por dente, a lei da selva acaba a desejar que os outros passem o mesmo que eles passaram.
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Claudio Mur


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