Violência e criança significa pesadelos ao vivo
Quando uma criança de qualquer idade sofre uma violência traumática, uma violência que pode ser episódica ou contínua, ela mais tarde ressurge na forma de pesadelos vivos e ao vivo, como se estivéssemos a viver um filme no momento. Não falo apenas de dormir mal mas de viver dia após dia atormentado por sentimentos aos quais a gente não consegue dar uma expressão dita racional, dita «normal» num mundo cada vez mais violento, um mundo que nos obriga a ser competitivos, iguais ou melhores do que o nosso semelhante. Isso muitas vezes significa não perder logo na entrevista de emprego a vaga de trabalho, significa competir pelo saco de arroz na promoção do Dia do Trabalhador no hipermercado, significa ficar ou não dependente de um benfeitor que quase sempre acaba por se aproveitar da necessidade de quem pede ou de quem procura o que não tem: um pão mas também um carinho, uma palavra que alivie a angústia que oprime, que nos oprime.
A necessidade gera abuso e o abuso é violento e depois do abuso e depois da violência que se sofre, surge um período de esquecimento, uma calma que se compra com promessas e chantagem de quem pretende continuar a abusar porque, ao que parece, a pessoa violentada até pareceu gostar: ai!, os seus gritos eram tão sexys...
Toda a gente sofre, como as pessoas constituem o mundo logo todo o mundo sofre, o mundo fica doente, ganha medos e fobias, combate-os vingando-se no mais fraco e mais próximo, lembra-se que um dia, novo ainda, sofreu e hoje, às vezes, acorda a suar de frio, acorda angustiado e não sabe porquê, esqqueceu e se se lembra: afunda-se na medicação legal ou ilegal, e nunca mais viverá sem essa rotina, surgem as doenças o tédio, a vida sem cor e o medo de morrer, o medo de ir embora deste mundo deixando tudo para trás, sem remédio, sem remissão, directo ao Inferno dos crentes, porque na hora de ir todos viramos crentes cheios de culpa, já não se sabe de quê, que mal lhe fiz eu?, eu gostava dela mas ela enganou-me, a pequenita deixou-me bruto, tive que lhe dar um filho para que ela não esquecesse o meu rosto... começo a imaginar coisas, começo a confundir, começo a não saber se as li, se acordei com elas, ou se acordado as vivi, assemelham-se a fantasmas, seres difusos, luz humana, nevoeiro, fumo sussurrando-me ao ouvido, dando-me conselhos e ordens, tornam-se a voz interior, a autoridade que nos comanda, torna-se o tradutor dizendo que sou mau porque me fizeram mal, e que alguém tem de pagar pela maldade, com a vida ou com algo maior que a nossa vida, a vida da pessoa que mais amamos no mundo, como se essa vida fosse um último sacrifício, a taxa de admissão a um mundo sem fantasmas. Até ao próximo fantasma.
E quando esses fantasmas se tornam avassaladores e as ordens surgem transformando-se em imagens mentais, a solução para não ser engolido pela loucura é extirpar o mal, esse inocente.
O que custa é santificar o primeiro, depois e no final: morreremos todos.
ZMB
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