terça-feira, 22 de março de 2022

Aquela imagem desconcertou-o

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Aquela imagem desconcertou-o, não estava à espera dela, afinal... como poderia ele pensar nisso?, é tão vago, não tinha sido ensinado na escola, mas aquela imagem, como dizia, impressionou-o: ela ali junto ao rio naquele morro lavando as pernas cheias de varizes, algumas veias azuis, salientes, lavando os calcanhares, os dedos dos pés, raspando com sabão, pedra pomes, tirando o surro, o sarro, enfim... aquela imagem impressionou-o e pensou: afinal de contas... afinal de contas esta imagem é contra... é contra o espírito do tempo, é como se esta imagem, esta mulher, esta lavadeira do rio, da zona ribeirnha do rio da cidade, na parte mais pobre do morro... esta imagem impressionou-o, ia contra a máquina do tempo, era como se a máquina do tempo não tivesse ali valor, regredisse, não quisesse avançar, porque esta imagem ia desaparecer e ele sabia que seria a última vez que veria esta beleza, esta naturalidade, esta humanidade de uma pessoa anónima, neste mundo lavando-se no rio, porque em casa dela no morro junto ao rio na parte pobre da cidade não tinha... não tinha casa de banho, não tinha uma banheira, não tinha nem sequer um polibã, quanto menos um bidé, um lavatório, e então, a senhora tinha de se lavar no rio, tinha que raspar, tinha que raspar raspar, tirar a sujidade à frente de toda a gente, à minha frente, eu: um construtor, um construtor a seguir o projecto de um arquitecto para demolir um bairro... e nem sequer eles quiseram saber dos buracos onde estas pessoas viviam, para onde vão elas agora viver, vão sair daqui e irão para onde?, para onde irá esta lavadeira, esta senhora que se lava em público?, e que aos meus olhos me choca, e que nunca mais a vou ver, para que buraco irá ela viver?, será casa de pedra?, será bairro camarário?, a minha vontade é rasgar o projecto e chegar à beira dela e dizer-lhe: anda comigo.

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Claudio Mur


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